CRÔNICA
Fala a cabocla
Confira a crônica deste domingo
Por ró-Ã*

Quem já tomou anestesia que apague, até numa endoscopia, não deveria ter medo de morrer. Tudo se escoa em tranquilidade: prazeres e dores, preocupações, delícias. Volta-se ao mesmo alheamento de antes de ser parido. Ou concebido, segundo alguns pensares.
Quando Michael Jackson adormeceu no Propofol, meu pai anestesista garantiu: abençoada morte! Mas depois que Godard decidiu que “estava exausto”, pensei: aí, sim, uma bênção de rocha, porque lúcida e deliberada, ainda por cima satisfazendo nosso desejo de ter algum controle.
Ao contrário do cineasta, imagino que MJ tenha chegado ao Além totalmente zonzo. Como quando fui atropelada na estrada ainda de barro que dava acesso à Praia do Forte, perdi os sentidos por um instante, acordei sem metade de um dente e mais tarde me ocorreu que teria despencado sem noção em outro plano. E o motorista do Fiat cor de pitanga passaria o resto de seus dias de boa, pois não parou pra conferir se meu pulso ainda mexia.
Embora não seja adepta do espiritismo, me atrai na doutrina a possibilidade da reencarnação, polindo arestas até nos tornarmos irretocáveis. Gostaria de um dia ser perfeita. Deve ser o máximo não precisar mais de reparos e só ajudar quem continua ralando. Existir cheia de defeitos eu acho peba.
A primeira vez que compareci a uma reunião espírita – online, durante a pandemia – todos os irmãos expressavam seu agarramento a esta vida. Ué!? Por que o terror em abandonar a condição de condenados a provas e expiações? E a felicidade não está aqui? Os que foram fdp na Terra continuarão sob porrada, a não ser que se disponham a consertar seus erros na próxima encarnação. Quem foi do bem teria menos contas a acertar. Os apavorados se suspeitavam fdp? Ou estavam ali de gaiatos, apenas pela promessa de perpetuação?
Frequentar esse grupo me confortou num momento de profunda tristeza, até perceber uma contradição que não pude acomodar: o povo exaltar Jesus enquanto apoia outro filho de Deus cujo ídolo foi um torturador, acreditando não haver conflito nisso. Justifiquei assim meu afastamento; argumentaram que sou do tipo que quer que todo mundo pense como eu.
Confortável, sim, se todo mundo pensasse como eu, porém não pretendo convencer ninguém de coisa alguma. Se há quem entenda que não existe desacordo entre a palavra do Cristo e a exaltação ao ódio, eu que vá procurar minha tchurma.
Minha intenção nesta crônica, no entanto, é falar do aqui e agora - embora, num certo sentido, eu tenha sempre penado semimorta, querendo ir deitar à noite sem nenhuma pendência a me esperar no dia seguinte. No entanto, os Por Fazer insistem. De um tempo pra cá, expio crimes ou faltas cometidas através dos Tecle 1, Tecle 2, Tecle 1000, sem às vezes conseguir falar com outro ser humano também passando por perrengues. Parecendo que já habito Nosso Lar - que nada tem a ver com Kardec - e tá rúin entrar em contato com os encarnados.
Detesto robôs, portanto. Em relação à I.A., que ameaça escangalhar o mundo, é claro que será utilizada para manipular corações e mentes a favor de quem manda, mas isso sempre houve e resistência idem. Quanta gente se descabelando, enquanto estou certa de que tudo será como antes, feitas algumas adaptações. As novas gerações seguirão, ignorando o sumiço de meio dente de alguém. Meio dente é muito pouco se comparado ao progresso da Humanidade.
E nem fui eu que escrevi tudo isso. Foi minha cabocla, Suzana. Queria ter seus longos cabelos pretos e fartos, grana suficiente pra nunca entrar no cheque especial, saber com certeza que o espírito persiste. Ela diz que o que nos cabe é tornar nossa vida e a dos outros menos difícil enquanto respiramos. Mas sem levar patada. De estranhos, blz, porém não de quem diz gostar de nós. Não admite ser maltratada por supostos coligados. Ainda que o amor possa se expressar de maneiras diversas, as maneiras perversas não nos interessam.
Suzana costumava baixar quando eu tomava uns goró com o querido Beto, que a birita transformava em Diogo, mas faz anos que não enchemos a cara juntos. Vou perguntar a ele se o caboclo ainda o acompanha, porque Suzana se manteve colada ao meu espírito, sóbrio ou não, sempre me lembrando de que lado queremos estar.
*ró-Ã é autora de Dor de facão & Brevidades
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