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MUITO

Fala, Raul!

Zezão Castro

Por Zezão Castro

01/07/2015 - 14:49 h
Raul1
Raul1 -

Os tambores foram batidos. O copo não girou na mesa. O baralho dos espíritos, com seus ases, damas e valetes enfeitiçados, ficou mudo. Nada de novo no front. Ele não respondeu ao chamado. Pirraça pura do Caboclo Mata Virgem. A barba do profeta continua grisalha no seu rosto ressequido. O seu tumbão, sob a lápide sepulcral n º 1647, tá lá, inserindo Brotas no turismo rock. Talagadas de cachaça serão derramadas sobre a mórbida grama hoje, amanhã e sempre. Falar mais o quê? São 70 anos, bicho. Na verdade 10.070 anos seriam completados se, neste dia 28 de junho, seus olhos estivessem pestanejando... Morre o homem, ficam os discos. A mosca ainda zune, capturando a atenção de quem ouve, solfeja e reproduz seus manifestos (canções?). O home tá é vivo! Mortos estão os que não o escutaram. Quem tiver olhos que leia. Quem não tiver, peça a vizinha para soprar no seu ouvido as palavras de Raul Seixas, especialmente costuradas aqui nesta pálida e sincera homenagem. Publique-se e cumpra-se!

Para começar a jogar o xadrez das perguntas e respostas, como você se define?
Eu sou canceriano e meu signo ascendente é leão. Leão luar de câncer. Louco de nascença. Filho da Bahia que já não faz mais a minha cuca (...). Graças aos demônios, deuses, totens meus, eu nasci um louco. Dou graças a Deus. Como um anormal, não durmo de noite. Não tenho mais medo.

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Aí do alto, como você tem visto a atual política do país?
O governo dum país foi bolado para dar segurança ao povo, mas os tempos mudaram. Inverteu-se o processo. Agora o povo cheio de medo trabalha para o sustento do governo, esse sujo gigolô.

E o velho rock'n'roll ?
"Quando eu era guri, lá na Bahia música para mim era uma coisa secundária. O que me preocupava mesmo eram os problemas da vida e da morte, o problema do homem, de onde vim, para onde vou, o que é que eu estou fazendo aqui. O que eu queria mesmo era ser escritor". O que me pegou foi tudo, não só a música. Foi todo o comportamento rock. Eu era o próprio rock, o Teddy boy da esquina, eu e minha turma. Porque antes a garotada não era garotada, seguia o padrão do adulto, aquela imitação do homenzinho. Mas quando Bill Haley chegou com Rock Around the Clock, o filme No Balanço das Horas, eu me lembro, foi uma loucura pra mim. A gente quebrou o cinema todo, era uma coisa mais livre, era minha porta de saída, era minha vez de falar, de subir num banquinho e dizer eu estou aqui.

Qual a importância de encontrar o Mick Jagger em Salvador, em 1968?
Ele me antecipou os valores morais que estavam vigentes naquela época e que não tinham chegado ao Brasil. Me antecipou o que estava acontecendo musicalmente, culturalmente, em matéria de comportamento... foi interessantíssimo. Fiquei impressionado e me valeu para modificar os meus valores - eu era baiano arraigado, aquelas coisas em que você fica meio pendurado.

Após o término da banda Raulzito e Os Panteras você teve que voltar para Salvador. Como é que foi segurar essa onda?
Eu estava pirado. Comecei a estudar filosofia de novo. Ficava trancado no quarto, acendia uma luz fraquinha, vermelha, o que acabou de vez com a minha vista. Ficava lá o dia inteiro, não falava com ninguém. Quem me sustentava era minha mulher, que ensinava inglês no Yázigi. E, quando juntou uma bolada de dinheiro para comprarmos um apartamento, para que pudéssemos sair da casa de meus pais, eu comprei uma motocicleta. Saía pelas ruas às 5 da manhã, gritando debaixo da chuva.

Antes de se tornar artista solo, você foi produtor na CBS. Qual a importância do Sérgio Sampaio na sua vida artística? Vocês se conheceram lá?
Produzi muitos discos nessa gravadora. Produzi a dupla Tony e Frankie, o Trio Ternura e um amigo chamado Sérgio Sampaio, que foi o primeiro artista anônimo que eu realmente descobri. Acreditei muito nesse cara. Acreditei tanto que ele me incentivou a voltar a ser artista outra vez. Você produz bem, por que não produz a você mesmo?, dizia ele a toda hora, e fiz isso.

Como você explica seu processo de criação?
Enquanto o galo canta de madrugada, o cigarro queima no cinzeiro, a mosca zumbe no silencioso quarto onde minha mão trêmula escreve o que me requer no papel em branco duma frágil culpa duma consciência barata tonta cheia de moinhos para fazer girar... Minha filha dorme.

De bate-pronto. Literatura?
Você fala correntes, não? Eu sou mais pelo surrealismo.

Pintura?
Dalí.

Música?
Todas que me agradam.

Esportes?
Nenhum.

Religião?
Deus é o que me falta para compreender o que não compreendo.

Livro de cabeceira?
O Despertar dos Mágicos, de Powels e Bergier.

Atores de cinema que lhe vêm à mente?
Peter Lorre, Perkins e Catherine Deneuve.

Diretores?
Polansky, tem muitos outros bons... eu...

Uma maravilha?
O universo. O que eu só sei que não sei. O que está lá. No outro lado do espelho. A mente. A vida. Os fenômenos inexplicáveis. Paranoia. Loucura. Sonho. Cosmos. Consciência cósmica.(...) Homo futurus. Velocidade vetônica.

Diga uma palavra que você tem birra?
Birra.

A vida?
Um jogo no escuro.

Diga agora o que vem à sua cabeça...
Automóvel. Urubu. Paranoia. Mente. Pente. Semente. Máquina a óleo diesel. Guarda-chuva. Cemitério. Máquina de costura... Criança sorrindo. Homem de negócios sério. Ele é muito sabido. É um homem de negócios e sabe disso. Quem vai dizer que ele está errado? O homem firme. Que tem presença de espírito e fala firme, vai para casa e toma uísque com os amigos (e falam de negócio) e dizem que alemão é uma língua muito gutural e dizem que vai chover amanhã, que dizem que vermelho combina com amarelo, que dizem que a solução dos problemas do mundo é isso e não aquilo, que dizem que a vida é dura e a gente tem que lutar para conseguir o que quer...

Que reflexão você faz sobre a sua condição de artista e de ser humano?
Por que eu vivo? Ser artista? Não fico feliz. Ser Caetano no final? Esse é o auge a que eu posso chegar? Não. Faço planos astronômicos. Investir muito para poder muito; cada vez que eu subo no palco, saber que está caindo uma estrutura, um edifício na Vieira Souto, um general está morrendo. Minha tristeza não tem limites. Eu sou triste até o cosmo. Deusa Tristeza! Dura tristeza! Não vivo, vegeto. O vegetal é mais feliz. Estou triste com Deus. Estou triste comigo mesmo. Eu realmente não sei nada.


Você tem um poema dedicado a seus pais muito bonito...
"A casa de meu pai tem quatro quartos / A dupla que fez cada um de nós/ Não gostaria de ver meu pai / Sem seu terno largo e folgado / Nem mamãe sem seus velhos ditados / Seu mundo tão correto / Eu não me arvoro a mexer / Aquela sala de estar sempre arrumada, polida / E que nunca é usada / Não há nada para trocar de lugar / Daqui, bem longe de lá / Onde eu faço meu lugar / Entre uma canção e um café expresso / Me falta a presença daquela gente / Meu velho conselheiro / Minha velha protetora / A falta de me entregar acriançado / Alegria de escutar a relíquia / De um disco antigo, mas inquebrável / O canto de ninar / Quando volto para lá não levo roupas estranhas / Visto-me de filho / Traje especial do qual não me desfaço".

Mudando de croissant pra rapadura, tá todo mundo falando da ditadura no Brasil, e alguns até evocando esse bicho-papão que você viu ruir. Lembre uma passagem sua desse período.
Me pegaram lá no Aterro do Flamengo, me botaram uma carapuça e fiquei uns bons três dias num lugar desconhecido. Aí vieram três pessoas: um bonzinho, outro mais inteligente que fazia perguntas e um mais agreste. Depois me mandaram para o aeroporto e fui para os Estados Unidos, fui parar no Greenwich Village.

Foi lá que você tocou com Jerry Lee Lewis?
Em Memphis, numa boate. Ele me acompanhando ao piano e eu cantando Long Tall Sally. Foi demais! Aí os americanos batiam palmas, pediam outra música enquanto eu pensava: que diabo estou fazendo aqui? Um baiano cantando rock em Memphis, Tennessee?

Você chegou a idealizar um disco de participações especiais, mas a morte te surrupiou do nosso convívio. Como seria?
Meus mestres. Um disco com duas vozes (Eu e o outro, 2ª voz): 1) Eu e Erasmo, 2) Eu e Caetano, 3) Eu e Gil, 4) Eu e Núbia Lafayette, 5) Eu e Roberto Carlos, 6) Eu e Leno, 7) Eu e Cláudio, 8) Eu e Kika, 9) eu e Luiz Gonzaga.


Para finalizar, você, que hoje é guru de multidões de loucos, não loucos e pseudoloucos, tema de documentário e tal, gostaria de dar um recado para a nossa querida juventude?
Não, é uma juventude sadia, alegre, sadia, satisfeita. Feliz e contente. Comendo alpiste. Amém.

Referências O Baú do Raul Revirado. Ediouro, de Kika Seixas e Silvio Essinger. Págs. 156, 149, 152, 75 (por ordem de citação) / Raul por Ele mesmo. Ed. Martin Claret, de Ana Maria Baiana. Pág. 12 / Entrevista a Sonia Maia. Revista Bizz. Ed. Azul. Março de 1987 / Gente do Século - Raul Seixas. Editora 3, de Luciano Suassuna. Págs. 39, 40 e 53 (por ordem de citação). / Entrevista a Gay Vaquer, 9 de agosto de 1972. / Revista O Pasquim. Ed Codecri. Nov. 73.

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