MUITO
Fantasias no barro de Gabriela Joau e Marlice Almeida
Em tempos de desmaterialização da arte, muitos artistas continuam preferindo se expressar em três dimensões
Por Luiz Freire*
Em tempos de desmaterialização da arte, muitos artistas continuam preferindo se expressar em três dimensões. Gabriela Joau Veloso precisou de um longo tempo para revelar as imagens de seu inconsciente através da cerâmica. Iniciou suas atividades pedagógicas aos 16 anos na condição de professora leiga, em uma escola pública rural na Ladeira do Paiva, na Caixa D’Água. Na década de 1950, essa área era ocupada por fazendas.
Em seguida cursou a escola normal, formando-se em 1974, aos 19 anos, no curso do magistério no Iceia – Instituto Central de Educação Isaías Alves, entretanto, não seguiu carreira, pois em 1975 estava cursando medicina por influência do pai médico (Antônio Murta Veloso), e concomitantemente Belas Artes, por sugestão do tio, o pintor Emídio Magalhães, diretor da EBA.
Concluiu apenas o curso de Belas Artes, fazendo a especialização em Crítica de Arte, criada pelo professor Romano Galeffi. Na Escola de Belas Artes, conheceu e dedicou-se à técnica do bico de pena influenciada pelo professor Ailton Lima, não se interessou pelo atelier de cerâmica, que à época era ministrada por Buck. Foi da geração dos estudantes e ceramistas Manuel Messias e Osmundo Teixeira.
O interesse pela cerâmica foi despertado na oficina do Palacete das Artes, quando levou os netos para participar. Como ficava sem nada fazer, o professor convidou para fazer também, daí por diante passou a praticar na oficina de cerâmica do MAM - Museu de Arte Moderna da Bahia, com Betânia Vargas, que lhe ensinou a colar os trabalhos quebrados.
Em uma visita à Escola Parque, encantada, ofereceu-se ao diretor Gedean Ribeiro para ensinar na escola referência, mas o diretor exigiu habilidade específica. Gabriela tratou de se inscrever em cursos de cerâmica, como o de Bárbara, vindo a substituí-la na oficina de cerâmica com torno na referida escola.
O processo criativo parte de um tema, retirado dos livros, de leituras realizadas em vários tempos, interpretadas com boa dose de imaginação. Por exemplo, A barca de Odé inspirou-se na mitologia nórdica/celta dos Elfos, o resto é invenção da artista. Em uma barca de formato não convencional, que carrega estrelas e umas formas macarrônicas emaranhadas, que Gabriela diz ser espirro de dragões, entre outras coisas que o mercador imaginado vendia pelos mares.
Ao pegar em uma porção de argila, a artista se deixa conduzir pela intuição e de suas mãos vão surgindo formas, nem sempre coerentes com o projeto, ou o primeiro pensamento. Há uma dose de experimentação e inventividade grande, sobretudo no cromatismo, surtindo, por vezes, resultados adversos, não previstos e não aprovados pela criadora.
Os títulos dados às peças soam engraçados, dialogando com o humor das figuras, como em Tia Vivi espevitada. Além da cerâmica, Gabriela se expressa pela técnica do Boro & Sashiko, que conheceu na escola primária no bairro da Caixa D’água através da sogra do diretor, uma japonesa que estendia as toalhas de retalhos de tecidos no varal e, diante do interesse suscitado, explicou que a técnica provinha do montonai – desprezo ao desperdício, dando uma aula sobre a cultura do remendo de roupas rasgadas em um Japão quinhentista fechado, com muitas carências. Boro é o remendo, o sashiko é o desenho feito no tecido pela costura para unir as partes do remendo, de modo que a peça original vai se transformando e mudando de utilidade, sem que seja descartada. Gabriela não faz exatamente o boro, ela faz algo parecido, reinventa, o princípio do remendo é mantido e faz várias peças utilitárias, os desenhos ela vai criando enquanto costura, improvisando.
Suas peças zoomorfas constituem-se de bocas que riem, pássaros pousados nas cabeças, dorsos, convivendo com flores coloridas pelos esmaltes brilhantes. Os formatos fogem do convencional, por vezes se aproximando das soluções infantis, girafas, cachorro, rinocerontes são atribulados com outros seres vegetais e animais.
Gabriela ainda dirige um projeto denominado Corisco – Corte, Risque e Cole. A sede fica em Vera Cruz, mas hoje ele está espalhado por vários municípios da Bahia. Nesse projeto havia o Leviar – Levando a vida com arte, consistindo em recolher orquídeas, cactáceas e bromélias de áreas destruídas pelas queimadas e recolocá-las em vários lugares, inclusive em Salvador.
Encontros
Gabriela e Marlice constroem suas criações no mesmo espaço, se conhecem desde o magistério no Iceia. Depois de se distanciarem por um tempo, voltaram a se encontrar na Oficina de Cerâmica do Palacete das Artes, no bairro da Graça. Marlice e Murilo Ribeiro se conhecem desde a Escola de Belas Artes, e com ele possuía um espaço no Pelourinho.
Trabalhou no Instituto Mauá até o ano de 2011, contribuindo para a edição do livro Saberes e fazeres e uma exposição no Museu de Arte da Bahia. Em movimento para a aposentadoria, recebeu um convite de Hilda Salomão e Lica Moniz para fazer um curso de Raku no Museu de Arte Moderna da Bahia.
Raku é uma técnica da cerâmica tradicional japonesa de alta temperatura. A partir desse curso, a artista ficou à disposição do MAM, em 2011, transferindo-se em 2015 para implantar a Oficina de Cerâmica no Palacete das Artes, a convite do diretor, Murilo, pois já havia um forno que nunca tinha sido usado.
Os objetivos da oficina é o de desenvolver a cerâmica experimental, criativa, artística, sem desprezar os ganhos terapêuticos. O alunado tem um perfil de gente que gosta de conviver com arte e tem um público que vem à oficina para livrar-se da solidão. Há também jovens que estendem o aprendizado para a Escola de Belas Artes. Marlice mesclou o aprendizado artesanal e acadêmico na sua formação, aprendendo inclusive a construir fornos, valorizando sobremaneira o aprendizado com as artesãs tradicionais.
Já fazia cerâmica antes do estudo superior na EBA, suas primeiras incursões foram fomentadas pelo Sr. Vitorino e Nilton, ceramistas de Maragogipinho, e muitas ceramistas que conheceu no trabalho de cadastramento, agenciamento, assistência e coleta de acervo que o Mauá fazia nos centros produtores da cerâmica tradicional da Bahia.
Com o barro faz tudo que quer, de utilitários a esculturas, desenvolve formas racionalistas, geométricas, aproximando-se muito do construtivismo artístico. Sua experiência no Mauá começou na CCA-Coordenação de Fomento ao Artesanato, em 1978, sob a direção de Mercedes Kruschewski, professora de escultura e primeira diretora mulher da EBA.
Em seguida, foi fundado o Mauá dando-se prosseguimento às ações que contemplavam toda a produção artesanal do estado. Aí trabalhou na Gerência de Estudos e Pesquisa e na Gerência de Promoção. Em 2015, o Mauá foi dissolvido, ficando os servidores lotados na Secretaria de Administração do Estado da Bahia (Saeb).
Acresceu a oficina do Palacete de mais um forno e dirige o ensino a um público variado, constituído de profissionais liberais, adultos, jovens, um público que gosta de arte, alunos de arquitetura que querem ir para Belas Artes e interessados no convívio artístico e na experimentação.
Contígua à oficina do Palacete fica a loja em que a produção da oficina é permanentemente exposta à venda, atraindo muitos visitantes compradores.
Na loja podemos ver algumas peças de Marlice e Gabriela e de outros aluna(o)s nas prateleiras. Nas esculturas de Marlice é notável as combinações de sólidos geométricos inteiros e seccionados e outros com fileiras de pontas que lembram espinhos.
Da trajetória de formação e pedagógica das duas artistas, constatamos o quanto é importante o apoio das esferas governamentais à criação e manutenção das oficinas de cerâmica, os fornos de alta temperatura são caros, pesados e consomem bastante energia elétrica, o que inviabiliza a aquisição e tê-los nos exíguos espaços de moradia atuais. A ação governamental para garantir o aprendizado e a prática é essencial, conforme verificamos na trajetória dessas duas artistas do barro.
*Doutor em História da Arte, professor da Escola de Belas Artes (Ufba) e museólogo
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