MUITO
Fátima Freire: "Meu pai me influenciou justamente não me influenciando"
Por Tatiana Mendonça | Foto: Shirley Stolze | Ag. A TARDE
A pernambucana Fátima Freire acredita que “todo educador é um devedor”. Que deve repassar tudo que aprendeu e, se possível, melhor ainda do que recebeu. Imagine, pois, a responsabilidade que ela carrega, sendo filha de Paulo Freire (1921-1997), patrono da Educação no Brasil e terceiro pensador mais citado em trabalhos acadêmicos pelo mundo. Sua mãe, Elza Maia Costa Freire (1916-1986), era também educadora, e é a ela que Fátima credita a maior influência por ter seguido esse mesmo caminho. Ainda miúda, costumava acompanhar a mãe na escola pública onde trabalhava como diretora pedagógica, e adorava. “Nesse sentido, recebi tanto, mas tanto do meu pai e da minha mãe que vou para a cova me matando de trabalhar, porque não aguento parar. Não consigo parar”. Foi com esse sentimento que ela veio participar de uma palestra no Instituto Anísio Teixeira em comemoração ao Dia da Educação, celebrado em todo o mundo no dia 28 de abril. Graduada em pedagogia pela PUC de São Paulo, em filosofia pela Universidade de Coimbra, em línguas romanas pela Universidade de Varsóvia e em psicopedagogia pelo Instituto Jaques Rousseau, Fátima conversou com os professores baianos sobre as marcas que quem educa deixa no corpo do outro, tema do livro que lançou em 2007. À Muito, ela contou como se sente com o projeto do governo Bolsonaro de “expurgar a ideologia de Paulo Freire” das escolas brasileiras e de possíveis saídas para problemas crônicos da educação no país, como a alfabetização na idade certa.
As propostas de governo do então candidato Jair Bolsonaro não tinham metas muito definidas. Mas estava lá, explícito, o plano de “expurgar a ideologia de Paulo Freire” da educação brasileira. Os ataques ao educador continuaram após as eleições. Como é para a senhora, pessoalmente, acompanhar esses posicionamentos, essas críticas?
Fácil não é você conviver com… Como é que eu chamaria isso? É uma perseguição política, e uma perseguição ignorante, porque tem muita falta de conhecimento aí, pela qual as pessoas são movidas. Porque eu não quero acreditar que as pessoas que o criticam tanto, com os motivos que estão a criticar, possam tê-lo lido e possam tê-lo compreendido. Não, é impossível, porque isso seria a própria pessoa dar um atestado de burro, sabe, de burrice, de ignorante, e acho que ninguém quer se dar um atestado desse teor. Então, eu quero crer que é por ignorância mesmo.
E o que há na obra de Paulo Freire que faz com que ele seja tão temido, na sua opinião?
A força dele, a força do meu pai, da filosofia do meu pai reside na capacidade de quem é educado desta forma. A pessoa termina se configurando, se sentindo e se percebendo um ser capaz de transformar, com um entendimento político da realidade, do desvelamento da realidade, que não interessa nem nunca interessou a nenhuma classe dominante. Nenhuma. Nem nunca vai interessar. Então, em princípio, é de se esperar que reajam dessa forma. Agora, o que eu acho de uma burrice do lado deles é que quanto mais luz negativa eles põem, mais o meu pai brilha. Então, é de uma burrice total. Me dá uma tristeza humana, assim, me comove estar diante de tanta ignorância.
Como a senhora está vendo as idas e vindas no Ministério da Educação? Há muitas discussões sobre doutrinação, embates ideológicos, mas se fala pouco ainda em como fazer avançar os índices educacionais do país, que são trágicos.
Neste país, ser brasileira e atuar na área de educação... Sempre me vi remando contra a maré. E nos dias de hoje, não é mais contra a maré, é contra um tsunami. É realmente um absurdo tudo isso que está acontecendo. Não dá nem para nomear. É inominável. É tamanhamente dramático... Não dá para dizer, escolher um nome que se adéque totalmente à realidade.
Dentre os problemas que a gente enfrenta na área de educação, um dos mais graves é o da alfabetização. Mais da metade (55%) dos alunos de escolas públicas com 8, 9 anos termina o 3º ano do ensino fundamental sem saber ler adequadamente. Na escrita, são 34%. Por que isso acontece?
Repare, o problema da alfabetização no Brasil, e de por que as crianças de escolas públicas atingem o 4º, 5º ano analfabetas é mais do que nunca uma confirmação da falta de vontade política do governo brasileiro de investir na educação. E um investimento na educação, para transformar profundamente, tem que ser um investimento formativo nos educadores. Como é que eu vou culpar um professor que não consegue alfabetizar um aluno quando ele mesmo foi pessimamente alfabetizado? Como é que um professor vai sensibilizar seu aluno para ler se não gosta de ler? Se ele próprio não foi sensibilizado? Ou seja, o buraco no processo de alfabetização da educação brasileira faz parte da falta de vontade política. Porque, pense bem, nós somos incríveis, somos um povo muito rico intelectualmente, temos gente fantástica, pensadores fantásticos, educadores fantásticos, que são muitas vezes interditados de realizar a forma mais adequada pedagogicamente para educar o aluno porque têm uma cartilha, uma ordem vinda do próprio ministério, às vezes, exigindo um bitolamento, um emburramento das crianças e dos educadores. Quer dizer, tenha dó, não dá!
Quanto mais luz negativa eles põem, mais meu pai brilha. Então, é de uma burrice total. Me dá uma tristeza humana, me comove estar diante de tanta ignorância
Há um debate sobre o método a ser adotado na alfabetização das crianças. A nova Política Nacional de Alfabetização preconiza a adoção do método fônico, em vez do construtivista. Existe, de fato, um método melhor que outro ou é uma construção caso a caso, na sua opinião?
Isso é uma pergunta bastante pertinente e delicada, porque acredito que o processo de construção do conhecimento, de aprendizagem, está literalmente atrelado ao desejo e ao corpo da criatura. Tem criaturas que possuem um determinado corpo que não se adéqua a determinados métodos. Então, é muito complexo. Nós temos que dialogar com os alunos, saber um pouco mais deles, de como eles se relacionam, de como eles se posicionam nesse momento tão crucial de aprender a ler e a escrever. Onde eles se sentem melhor? A escola não tem por que ser obrigada e bitolada de usar ou o fonético, ou o esquelético, não importa! Que concepção equivocada de aprendizagem é essa que limita um método específico? Não, de jeito nenhum. Agora, óbvio, que tem todas as hierarquias e burocracias, e é evidente que num sistema educacional é dez milhões de vezes mais fácil ter um único método. É evidente, até porque se controla tudo. Agora, isso não implica que o professor seja formado, educado de uma forma a ter uma flexibilidade, um conhecimento corpóreo e intelectual que possa se adequar ao melhor processo para o aluno.
Então, não existe, a princípio, um método melhor do que outro?
Na minha concepção, não. O método melhor é o que dá resultado. Por isso é que tem que ser testado, por isso é que tem que ser problematizado, e os professores têm que ser livres para pensar e testar. Só que não são, porque são amordaçados, não é? É muito complicado.
Comumente se diz que a formação de professores no Brasil é muito teórica, distante do ‘chão’ da escola. A senhora concorda com essa visão?
Costumo dizer brincando, mas é de verdade, que aqui no Brasil, sobretudo na área de educação, nós juntamos o que deveríamos separar e nós separamos o que deveríamos juntar. O exemplo típico dessa separação que deveria estar junta é essa relação entre a teoria e a prática. Agora, pense como é difícil na área de educação, com o processo formativo que nós temos, eu não digo só nas escolas… Eu considero que nas universidades é pior do que nas escolas. Porque a universidade, que já é mais elevada, deveria ter a consciência e o preparo maior que um professor escolar. Pois muito bem, a maioria não tem! O que quero dizer com isso? Nós estamos, via de regra – eu não estou aqui a generalizar, de jeito nenhum, nem a querer simplificar as coisas –, mas na maioria das situações, e eu rodo pelo Brasil inteiro, e também fora do Brasil, e o que eu percebo é: raros são aqueles corpos que estão na área de educação que vivem um processo reflexivo da sua prática, do seu fazer pedagógico. Repare bem: ao não ter esse processo reflexivo do fazer pedagógico, eu não consigo teorizá-lo. Ou teorizo esse fazer deslocado, desconectado da minha prática. Quando vou para a sala de aula, repito isso. Então, o corpo do meu educador permanece, a maioria deles, constantemente com esse vácuo, com esse vazio. E esse vazio, dependendo do professor que você tenha diante de si, pode ser ou um vácuo teórico ou um vácuo prático! É triste, né? E, infelizmente, é assim que acontece. Às vezes, dou cursos e processos de formação em todo o país, e no início do processo é interessantíssimo perceber que as educadoras e os educadores ficam assim meio atônitos, porque ficam comumente querendo localizar, separar, o que eu estou falando de teórico e o que eu estou falando de prático. E eu digo: podem congelar, porque não é por aí. Acalmem-se, aprendam a perceber e a receber o conhecimento teórico e prático como um todo. Porque é dificílimo, os nossos corpos não estão habituados a isso.
Mas você vê caminhos de como a universidade poderia se aproximar disso que você fala?
Sim. Quer dizer, eu intuo. Porque eu só passo pela frente da universidade, visse, eu não entro nela (risos). Nesse sentido, puxei um pouco o meu pai. Talvez ele fosse menos radical do que eu, eu sou literalmente radical. Não frequento porque me faz mal. O ambiente universitário, a maioria deles – volto a insistir, não estou aqui nem especificando nem generalizado. Só quero dizer que eu passo muito mal enquanto educadora quando sou convidada para dar aulas abertas em universidades. Algumas vezes, dependendo das universidades, eu aceito, outras, agradeço e passo longe. E quando aceito, provoco uma tamanha contradição ali no corpo dos alunos que termina sendo muito positivo. Quer dizer, na minha visão... Repare, se eu fosse reitora algum dia – olha, que ideia doida –, eu instituiria na universidade momentos pedagógicos entre os professores universitários para que falassem das suas práticas e quais são as suas maiores dificuldades nos processos de construção do conhecimento de seus alunos. Acredito que a universidade não tem essa prática, porque, se tivesse, a gente teria menos aberração dentro das salas de aula. Eles estão soltos lá dentro e se acham os maiorais, fazem e desfazem didaticamente, muitos deles não têm didática, porque ou são específicos da área ou, sei lá eu, não têm a postura pedagógica, e muito menos de reflexão. Eu acho isso uma falta de respeito. E mais, sabe quanto é que está uma pós em São Paulo? Cerca de R$ 2.500, R$ 3 mil. Quem é que tem dinheiro para pagar uma grana dessa? E para receber o que recebe? Mas nem doida!
Como é que eu vou culpar um professor que não consegue alfabetizar um aluno quando ele mesmo foi pessimamente alfabetizado?
Outra crítica recorrente é que o governo investe muito no ensino superior e pouco no ensino básico. E nem mesmo existe essa ponte entre as universidades e as escolas públicas.
Poderia se aproximar, claro. Você acabou de dar outro exemplo do que a gente separa e deveria juntar. Nós deveríamos ter o que eu chamo do fio vermelho estrutural, sabe? O fio vermelho é o que une as estruturas que necessitam ser unidas para poder gerar vida, gerar organicidade, entendeu? Então, qual é o problema das nossas escolas e o problema educacional do Brasil? Ele é morto, ele não tem vida, e ele é desconectado entre ele próprio. Temos que trabalhar agora para resolver. Dentro dos meus sonhos, naquela ideia louca de que se eu fosse algum dia reitora, primeiro era ter essa obrigatoriedade que falei antes – teria que ter um pedagogo que conversasse com esses professores todos –, e a outra coisa seria o professor não poder dar aula se não tiver a vivência prática do conteúdo que está dando. Como é que ele vai fazer se só tem a conotação e a compreensão teórica da problemática? Por exemplo, ele quer dar cursos de projeto. Ok. Você já participou de algum, meu amor? ‘Ah, veja bem...’. Aí não, esse curso você não dá.
Nós ainda temos um modelo muito tradicional de ensino, com alunos enfileiradinhos e o professor lá na frente. E aí nós vemos esses modelos mais inovadores, na Europa, especialmente, nos quais os estudantes são mais protagonistas do processo de aprendizagem. A gente poderia pensar em migrar para esse modelo sem antes resolver nossos problemas que são tão primários?
Eu faria tudo junto. Tive uma experiência incrível na África Ocidental, na Guiné-Bissau, e não tinha nada no liceu. Eu dava aulas, e era um desafio pedagógico enorme, porque tinha 40 alunos na sala de aula, de todas as idades, porque era uma época belíssima da revolução... Isso foi em 1975, 1976. Tem muito tempo. Eles estavam a construir a noção do homem novo. E como todo mundo precisava se escolarizar, tinha o aluno de 16 anos e tinha outro com 40. Eram aulas do que é hoje para nós o ensino médio. E o liceu tinha possibilidades precaríssimas. Tinha vezes que a gente não tinha giz, papel, e nada disso nos impediu, nunca, de construir o conhecimento. Imagina, eu ia para o mato, a minha sala de aula era debaixo das mangueiras, todo mundo sentado no chão. Quer coisa mais bonita que isso? Não tem caderno, vamos escrever na terra! É que nós estamos muito mal acostumados. O professor chega e, se não tiver tal coisa, não faz. Ah, não, vai inventar! É obrigação do Estado criar uma boa estrutura, evidente. Se há verba e ideal político, é obrigação ofertar. Agora, se você não tem, você não pode, como educadora, considerar que o único local estruturado para você ensinar é a escola. Você dá o elã, você sensibiliza, você encaminha, e a pessoa vai para o mundo.
Qual foi a influência do seu pai no seu caminho como educadora? O que você aprendeu de mais precioso com ele?
Olhe, meu pai me influenciou justamente não me influenciando. Nunca percebi, nem senti vindo da parte dele… Agora, óbvio, minha mãe me influenciou dez trilhões de vezes mais do que ele, pela relação de mãe e filha, e segundo porque minha mãe era uma brilhante educadora, era uma excelente diretora pedagógica, de escola pública. Eu convivi com essa realidade com ela, porque ela me levava. E eu adorava aquela escola dela, adorava ver ela atuando. Então, nesse sentido, a influência foi muito mais da minha mãe do que meu pai. Gozado, né? Agora, tudo que ele me ensinou, tudo que me deixou é tanto que às vezes eu não consigo carregar. Aí vêm esses compromissos e essas exigências que a pessoa faz consigo própria de acordo com as marcas da sua vida. Por ter tido tudo isso. Acho que todo educador é um devedor. Ele deve. Ele tem dívidas. Sobretudo as dívidas do que recebeu dos outros e do que continua recebendo. Quando ele recebe essas coisas, tem que se responsabilizar a devolver. E devolvê-las, se possível, melhor do que as recebeu. E nesse sentido, recebi tanto, mas tanto do meu pai e da minha mãe que vou para a cova me matando de trabalhar, porque não aguento parar. Não consigo parar. É um sentimento, sei lá, de culpa, de responsabilidade. Haja análise para resolver! Não sei quantos anos já e ainda não resolvi. Estou com 70 anos, mulher, e eu trabalho… de manhã, de tarde e de noite, visse? A sorte é que os quatro filhos já estão crescidos, no mundo.
A senhora trabalha principalmente com formação, não é?
Com formação, com assessoria, com tudo. Minha formação também é em psicanálise. Em São Paulo trabalho com o que chamo de pedagogia da subjetividade. Trabalho com o eixo da pessoa do educador, com as marcas da vida dele que estão no seu corpo. Algumas dificultam a sua atuação enquanto educador, e ele necessita ressignificá-las. É muito bonito, modéstia à parte. Mas só para fechar a coisa do legado, o que ficou mais, de meu pai, foi a capacidade dialógica. Aprendi a dialogar com ele de um jeito muito profundo. Quando estou aperreada com os problemas educacionais, o diálogo é o que me salva. E também a capacidade de refletir. Ele sempre me desafiou muito.
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