MUITO
Fé nas entidades
Por Tatiana Mendonça

Uma fila de pessoas vestidas de branco estende-se por uma ruazinha residencial do bairro de Piatã. Aguardam pacientemente a distribuição de senhas que começaria dali a pouco, às quatro da tarde, para participar da sessão do Centro de Umbanda Místico Oxum-Apará, o Cumoa. A cena repete-se todas as terças-feiras, quando acontece a oferta de passes e aconselhamentos espirituais das entidades que trabalham por lá. Quem mora perto pega o papel e volta para casa, mas a maioria prefere ficar ali mesmo, numa longa espera de pelo menos três horas.
Nas noites das sessões, que começam às 19h, o Cumoa costuma receber 400 pessoas, mas já beirou as 500. Algumas, sem encontrar lugar para sentar no barracão, espalham-se pelas escadas da grande casa de dois pavimentos. Resignada, a sacerdotisa Taiane Macedo, que comanda o centro ao lado de Raimundo Nonato, o pai Rai, conta que em breve terão que alugar outro imóvel, para abrigar o movimento crescente. Em 1969, quando Hebe Macedo – mãe de Taiane e esposa de Osmar Macedo, criador do trio elétrico – fundou o Centro Luz do Mestre, como o lugar se chamava, dava para contar nos dedos os familiares e amigos que apareciam por lá para consultar-se com ela.
Hoje, mais de 40 médiuns prestam os atendimentos, incorporados em pretos velhos, caboclos, pombagiras. Quem chega ali pela primeira vez baralha a vista ao encontrar num único lugar representações e oferendas de tantas entidades e deuses. A profusão é marca da umbanda, religião de origem afro-brasileira mais prestigiada no Sul e Sudeste do país do que em terras soteropolitanas.











Uma das explicações mais comuns para o fenômeno é a força do candomblé em Salvador. No último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2.855 moradores da cidade disseram-se umbandistas, contra 24.806 candomblecistas. Outras 28.019 foram abrigadas na categoria sincrética “umbanda e candomblé”. O Mapeamento dos Terreiros de Salvador, lançado em 2007 pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e Secretaria Municipal de Reparação (Semur), também exibe em números essa disparidade. Dos 1.155 terreiros localizados na pesquisa, apenas 20 eram de umbanda. O mais antigo deles indicou ter sido fundado em 1950.
Para dar visibilidade à religião e seus fundamentos, além de reunir seus praticantes, o Cumoa irá promover em 18 de novembro o 1º Umbahia – Encontro de Umbanda da Bahia, que contará com o apoio do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac). “Quando nós fomos apresentar o projeto, o diretor falou que tinha se encantado porque lá ele não vê nada de umbanda, só de candomblé”, conta Taiane. O local para o evento ainda não foi definido, mas a data foi escolhida em função da proximidade com o 15 de novembro, instituído em 2012 pela ex-presidente Dilma Rousseff como Dia Nacional da Umbanda.
Polêmica de origem
Já imaginou uma religião que tem dia, mês e ano de fundação, e por isso pode até se dar ao luxo de comemorar aniversário? Para muitos, é assim com a umbanda. O mito de fundação da crença ampara-se numa reunião em um centro espírita carioca ocorrida em 15 de novembro de 1908. Ali, teria se manifestado pela primeira vez o Caboclo das Sete Encruzilhadas. Irritado pela insistência dos kardecistas em dispensar os espíritos de negros escravizados e índios que apareciam por lá, considerados inferiores e atrasados, Sete Encruzilhadas teria anunciado, por meio do médium Zélio de Moraes, que era chegada a hora de acabar com aquela discriminação. Agendou para o dia seguinte, na casa de Zélio, a reunião inaugural de uma nova religião, a umbanda, na qual as entidades poderiam trabalhar em paz, tendo como missão a prática da caridade.
Alguns pesquisadores, porém, contestam essa versão. Entre eles está Bruno Rohde, que escolheu a umbanda como objeto de estudo no mestrado em cultura e sociedade da Ufba. Para ele, a ideia de situar o nascimento da umbanda no contexto do espiritismo foi uma maneira de um grupo de “indivíduos brancos de classe média” assumir o protagonismo e legitimar práticas na verdade muito mais antigas, com raízes profundas em cultos afro-brasileiros, especialmente o calundu. Esse, por sua vez, seria o embrião dos candomblés da nação Angola e teria surgido ainda no período colonial, quando negros escravizados aproximaram-se dos índios, compartilhando deuses e rituais.
“Na época em que foi empreendida essa articulação política e identitária-discursiva para legitimar socialmente a umbanda, um dos principais desafios dos intelectuais envolvidos nesse processo era afastar física e simbolicamente da religião umbandista todas as práticas que se assemelhassem aos rituais ‘bárbaros’ e ‘primitivos’ da magia negra, significando o oposto da umbanda, a magia branca e pura”, escreveu Bruno no artigo Umbanda, uma religião que não nasceu.
Curiosamente, as pesquisas de Bruno centraram-se nas práticas de um centro umbandista no interior do Rio Grande do Sul, onde morava. A invisibilidade da umbanda em Salvador reflete-se também na academia, onde há pouquíssimas publicações sobre o tema. Na Universidade Federal da Bahia, ao longo de todo o século 21, só dois trabalhos estudaram rituais de terreiros umbandistas soteropolitanos, e ainda assim voltaram-se exclusivamente às práticas musicais. O levantamento foi realizado pela historiadora Mariana Moura, que, reparando o vazio, sentiu-se instigada a esmiuçar este universo. “Há esse entendimento entre os pesquisadores de vincular o candomblé à ideia de pureza. A mistura da umbanda costuma ser vista como algo negativo”, conta Mariana. Em 2013, ela tornou-se mestre em antropologia com a dissertação Umbanda em Salvador (BA): memórias e narrativas. Para o trabalho, visitou terreiros da cidade, conversou com lideranças e pesquisou reportagens publicadas no jornal A TARDE.
Na pesquisa, encontrou um poema intitulado Mãe Preta, publicado em 1935, que já trazia a palavra umbanda, e reportagens que sugeriam a existência de centros de umbanda em Salvador ainda na década de 1920, contemporâneos, portanto, das casas que são consideradas pioneiras no Rio de Janeiro.
Orixá não fala
Há sempre uma história mágica por trás do surgimento de um centro de umbanda. No mais das vezes, é uma entidade, um caboclo, que depois de algum tempo incorporando num médium pede um lar para os seus trabalhos. Com José Bispo Cerqueira, sujeito esguio e de fala apressada, foi um pouco diferente. A ordem também veio do alto, digamos assim, mas materializou-se na forma de uma manga, o fruto, que caiu da árvore precisamente no bolso do seu paletó enquanto ele mostrava um amplo terreno no Cabula, cheio de verde, para um comprador interessado na área. Bispo, que não é médium nem nada, não fechou o negócio e recebeu depois o aviso de que teria que fundar ali a Casa de Lua Cheia. “Ele estava marcando o lugar, compreendeu?”.
O centro foi aberto em 1977, mas antes disso Bispo já promovia sessões em sua casa, na Federação. Católico, “como todo mundo”, não se assustou muito quando sua mulher começou a manifestar o caboclo Lua Cheia. Já estava acostumado com o Preto Velho do seu avô, que rezava madames na balaustrada do Rio Vermelho. Preocupou-se mesmo foi com a quantidade de gente que passou a acorrer às consultas, com risco até de a laje ceder, daí a necessidade imperiosa, reconhecida pelas forças espirituais, de arrumarem um lugar maior.
Hoje as reuniões no Cabula acontecem no primeiro domingo de cada mês. A próxima será no dia 8 de outubro. O caboclo que dá nome à casa não aparece mais já tem uns anos, desde que Bispo separou-se da mulher, mas outras entidades se manifestam por lá, para atender sem cobranças de dinheiro as cerca de 100 pessoas que costumam aparecer buscando consolo ou conselho para esses problemas nossos de amor, de saúde, de emprego.
Para Bispo, esta é a grande diferença entre a umbanda e o candomblé. “O orixá não fala para o público, ele é fechado. E o caboclo não, ele atende esse pessoal todo que vem aqui. É mais próximo, mais dado, mais vocacionado. Chega junto”. Por isso, Bispo acredita que é só uma questão de tempo – e de divulgação – até a umbanda ser mais procurada.
Mas repare bem, por lá os orixás também são cultuados. Tem casa para Oxóssi, tem casa para Exu, tem fonte para Iemanjá, tem o espaço sagrado de Tempo, e Bispo já separou uma parte do terreno para construir o abrigo de Iansã. A todos prestam-se reverências, cumprem-se as obrigações, festejam-se os dias. Mesmo porque, diz Bispo, “os orixás são mais fortes”. A frase é emitida como um decreto, uma obviedade que dispensa maiores explicações.
Outra diferença marcante em relação ao candomblé é que nos centros de umbanda usualmente a iniciação dos filhos da casa não envolve reclusão, nem se raspa a cabeça do indivíduo. Alguns praticam um ritual iniciático chamado de bori, com oferendas para os orixás e cumprimento de obrigações. Os ritos podem ou não envolver sacrifícios de animais, de acordo com a linha seguida por cada casa.
Os caboclos, pretos velhos e pombagiras recebem agrados para lá de mundanos, como cerveja, charutos, mel, muitas frutas. Taiane, do Cumoa, conta que volta e meia desavisados chegam por lá com olhos arregalados nos dias de sessões, achando que irão presenciar “matanças”, e se assustam com a tranquilidade do lugar, mais próximo de um centro espírita do que de um terreiro de candomblé. “O espiritismo também tem a manifestação de espíritos desencarnados, mas não há a manipulação de elementos da natureza como temos aqui, as folhas, o fumo... Isso é algo que eles, os kardecistas, condenam”.
Além das sessões e das festas, o Cumoa também oferece consultas particulares, cirurgias espirituais e cursos de umbanda, para disseminar informações sobre a religião. Com o mesmo propósito, criaram um canal no YouTube. Enquanto o candomblé é rodeado por segredos, muitos centros de umbanda fazem questão de promover o estudo do culto entre seus pares, amparados por livros de autores como Rubens Saraceni e Alexandre Cumino. Numa busca na internet, dá até para encontrar uma plataforma de educação a distância da religião, a Umbanda EAD, que tem mais de 230 mil seguidores em sua página do Facebook.
Abraço geral
Entrar no Centro de Umbanda Caboclo Taperoá, que funciona numa rua apertada da Boca do Rio, é como mergulhar num oceano da fé humana. Além das imagens de caboclos, orixás, pretos velhos, dispersas em dezenas de altares, há também imagens de santos católicos, deuses indianos, símbolos budistas, divindades ciganas. Para Fábio Souza, o jovem pai Fábio d’Oxum, agregar é palavra de ordem. “A umbanda abraça tudo que traga edificação para a sua vida pessoal, emocional, familiar. Junta tudo que de alguma forma faça bem”.
Sua última aquisição, digamos assim, foi a incorporação do rito da Ayahuasca, passando a promover o que chama de umbandaime. “É uma ferramenta a mais de trabalho. Por ser algo novo, está sendo uma commotion. As pessoas estão muito satisfeitas com o resultado”. O centro tem um calendário extenso de atividades, que pode ser conferido no site e nas redes sociais da casa. Cerca de 200 pessoas costumam comparecer às reuniões. Há ainda os retiros espirituais, que já chegaram a reunir 120 fiéis.
Fábio conheceu a umbanda aos 14 anos, quando um amigo o convidou para um caruru num terreiro no Vale das Pedrinhas. Antes disso, era evangélico. Cresceu frequentando a Igreja Batista, mas deixou de ir porque lá não aceitavam bem as visões que já tinha. Ao terreiro continuou indo, mas apenas para comer, confessa. “A visão que eu tinha era que tudo aquilo era demônio”. Sua percepção mudou definitivamente aos 17 anos, quando incorporou pela primeira vez o Caboclo Taperoá, que diz ter herdado da sua trisavó.
Foi quando passou a fazer consultas em casa, primeiro em Itapuã e depois em Amaralina, até sentar praça na Boca do Rio. Para dar conta do trabalho espiritual, largou o do mundo físico. Era concursado na prefeitura. Por dia, costuma atender cerca de 10 pessoas em consultas particulares e pagas.
Para ele, isso não vai contra o princípio da caridade da religião. “A caridade precisa ser feita para quem precisa. A gente distribui sopa na Av. Sete, distribui cesta básica aqui no bairro, mas temos as despesas do barracão e com os materiais ritualísitcos, que não são baratos. Não é só de prece que a umbanda vive”. As consultas acabam sustentando o centro, além da taxa mensal de R$ 30 paga pelos filhos da casa.
Já classificada como um “ecossistema de ideias religiosas”, a umbanda acolhe uma infinidade de práticas distintas. A marca comum a todas, acredita Fábio, é o culto aos caboclos. “Os caboclos são os mentores, os mensageiros. Dão as diretrizes da casa”.
Mesmo contando com essa unidade na diversidade, a religião acaba sofrendo uma espécie de fogo-amigo. Não é raro ouvir um centro falando mal de outro, alegando ser ele o mais verdadeiro, mais autêntico, mais puro. Para Raimundo Troccoli, o pai Raimundo de Xangô, mentor do Centro Umbandista Paz e Justiça, em Luís Anselmo, isso tudo é uma grande bobagem. “As pessoas falam, mas você nunca vai ouvir um espírito dizer isso. Mas a língua da matéria... É o chicote do corpo, como diz o ditado. O que existe são diferentes maneiras de professar a fé. Cada um deve buscar aquela em que se sente bem”.
Por ser de Xangô e pela casa ser “puxada” com o candomblé angola, Raimundo costuma participar das sessões, que acontecem às quartas-feiras, de túnica vermelha, e não branca, como muitos umbandistas. Nestes dias, o lugar costuma receber 150 pessoas, muitas delas turistas, que precisam descer as escadarias de uma rua estreita, já que lá não chega carro.
Raimundo frequenta terreiro de umbanda desde que se conhece por gente. Ia acompanhando a mãe a um centro em Belmonte, no extremo sul da Bahia, onde morava. Não gostava nem desgostava. Conta que seu sonho de pequeno era ser “padre e obeso”. “Obeso eu consegui”, ri. E também acabou virando sacerdote, o que lhe serve. Ainda trabalhava como coordenador-geral de disciplina no antigo Colégio Teresa de Lisieux quando começou a dar consultas no seu pequeno apartamento de dois quartos. Num dia, contou 21 pessoas na sala de casa. “A vizinha ficava cutucando lá de baixo com a vassoura”.
Em 1995, conseguiu um dinheiro e comprou a casa em Luís Anselmo. Hoje, o centro tem 58 “médiuns ativos”, conta Rai. Seu sonho maior é ver a umbanda resplandecer com a visibilidade que merece. Nisso encontra-se inesperadamente com o escritor Jorge Amado, que, apesar de ser de candomblé, costumava dizer que a umbanda seria a religião do futuro, por representar a possibilidade de união de vários credos. Vá que fosse uma profecia.
Vá lá
Cumoa R. Luciano Pachêco, 212, Piatã / (71) 3561-1067 e (71) 9-9381-7767
Casa de Lua Cheia Rua Silveira Martins, 500, Cabula / (71) 3384-1804
Centro de Umbanda Caboclo Taperoá 3ª Travessa Novo Paraíso, 26, Boca do Rio / (71) 3494-2305
Centro Umbandista Paz e Justiça Av. Heliodoro, 11, Luis Anselmo / (71) 3382-1860
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