REGGAE É CULTURA
Filme sobre Bob Marley reacende os laços entre Bahia e Jamaica
A sonoridade do reggae e as cores do pan-africanismo se encaixaram perfeitamente na Bahia
Por Gilson Jorge
Em 1996, o Bloco Muzenza ganhava as rádios soteropolitanas com "Brilho de Beleza", música que fazia menção à morte de Bob Marley, ocorrida em 1981. "O negro segura a cabeça com a mão e chora, sentindo a falta do rei", decreta a canção composta pelo baiano Nego Tenga, sobre a perda do jamaicano que se tornou o primeiro músico do terceiro mundo a se tornar um ídolo global, quando nem se sonhava com redes sociais.
Marley, que voltou a ser assunto internacionalmente este ano, com o lançamento do filme biográfico One Love, em cartaz em Salvador, influenciou fortemente a cultura baiana. O Muzenza, por exemplo, foi fundado em 5 de maio de 1981, seis dias antes da morte do líder rastafári. "O reggae estava explodindo em todo o mundo e também nas periferias baianas", conta Jorge Santos, presidente do bloco, para quem após a morte do ícone criou-se uma forte identificação entre o rastafarianismo e o Muzenza.
Mas a disseminação do reggae na Bahia começou nove anos antes, quando Caetano Veloso e Gilberto Gil voltaram do exílio em Londres, imposto pela ditadura militar. Na capital do Reino Unido, os músicos baianos haviam conhecido o ritmo jamaicano em um local chamado Porto Bello. Caetano mencionou o lugar na música "Nine out of ten", do disco Transa. E Gilberto Gil trouxe discos de reggae para Salvador dois anos antes que surgisse o primeiro bloco afro, o Ilê Aiyê, um momento em que a juventude negra baiana, inspirada pelos negros norte-americanos dos Panteras Negras, buscava referências para a valorização da negritude. Em 1979, Gil lançaria com grande sucesso "Não Chore mais", versão de "No Woman, no cry", de Bob.
A sonoridade do reggae e as cores do pan-africanismo (verde, amarelo, vermelho e preto), conceito difundido no Brasil pelo ativista Abdias do Nascimento, se encaixaram perfeitamente na Bahia, onde essa música virou sinônimo de diversão. Como cair no reggae. Mas não se trata só de música.
A cultura do reggae tem matizes e inclui os rastafáris, os reggaemen e reggaegirls, que são as pessoas que vivem da música mas sem necessariamente os compromissos espirituais e filosóficos e os admiradores, que vão a shows, usam pulseirinhas tricolores, mas não têm um maior engajamento com a cena, que gerou negócios específicos, como excursões, programas de rádio, moda e outras coisas que apontam para um estilo de vida peculiar. "Com muita militância nossa, os órgãos públicos já entendem que o reggae é uma cultura, não apenas música ", afirma a produtora cultural Jussara Santana.
Dona há mais de 30 anos da Casa Cultural Reggae, no Centro Histórico, Jussara é casada com um rastafári, mas ela mesma não professa a religião. Jussara conhece a cultura do reggae na Bahia como poucos. Ela contabiliza 176 bandas do gênero em todo o estado. Muitos dos quais já se apresentaram no palco ao ar livre com vista para a Baía de Todos os Santos, privilégio da casa cultural.
Acostumada a hospedar em casa convidados rastafári de outros países e estados brasileiros, Jussara pretende adaptar parte do imóvel que abriga a Casa Cultural Reggae para criar uma residência artística.
A produtora cultural começou a gostar de reggae ainda na adolescência, quando ouviu Jimmy Cliff. Mais tarde, conheceu o comunicador Lino de Almeida, que comandava o programa Rasta Reggae, na Itaparica FM, e o levou para conversar com seus vizinhos, na Estrada das Barreiras, Cabula. "Desde cedo, o reggae mexia comigo, mas eu não sabia o que ele queria dizer", afirma.
DIGNIDADE E ORGULHO - Como alguém que vive o reggae intensamente, Jussara se preocupa em combater os preconceitos em torno da comunidade. Escolhida pela produção do filme One Love para distribuir 350 ingressos a pessoas que julgue necessitar ver a obra, ela concorda com a ação da polícia pernambucana, que retirou da sessão do filme jovens que tinham acendido baseados. "O procedimento foi correto. Não se pode associar a sessão do filme ao fumo liberado. No cinema não se pode acender nem cigarro", observa a produtora cultural.
Jussara esteve pessoalmente com Julian Marley, filho de Bob, em uma das visitas que o músico fez à Bahia. E considera que sua presença no estado contribuiu para o crescimento do reggae. "A presença de qualquer cantor jamaicano aqui na Bahia é um fortalecimento para o reggae, não só os Marley", afirma a produtora.
Jimmy Cliff, seu ídolo da adolescência, aliás, morou em Salvador e teve uma filha baiana. Mas Jussara lembra também da visita de Rita Marley ao Percpan, em 2000. "Foi muito gratificante vê-la de perto", afirma a produtora, que declarou ter se emocionado com a história de Rita e sua importância na vida de Bob, quando assistiu One Love.
Mas por que essa cultura importada da Jamaica cresceu tanto na Bahia, a ponto de inspirar Neguinho do Samba a criar o samba-reggae? Autora do livro Reggae em Cachoeira: produção musical em um porto atlântico, a antropóloga Bárbara Falcón considera que houve uma grande aceitação dos baianos ao reggae desde a sua introdução na cena local. Sobrinha do cantor Nengo Vieira, um dos precursores do reggae no Recôncavo e que produziu Édson Gomes, Bárbara resolveu pesquisar a força do gênero e aplicou um questionário aos entrevistados. "Ao mesmo tempo em que, como fã, eu sentia essa identificação, tive a necessidade de trazer uma resposta científica. E todo mundo citou a identificação com o reggae ", afirma a antropóloga, assinalando que não se trata apenas da musicalidade, mas de uma cultura que veio ao encontro da valorização da estética negra. Como deixar o cabelo crescer e não alisá-lo, por exemplo.
Um outro aspecto que a antropóloga destaca são as letras das músicas. "Por mais que as pessoas não soubessem falar inglês, elas buscavam uma tradução ou sabiam que havia uma exaltação da cultura negra", afirma Bárbara.
Uma curiosidade é que, antes de se tornar o principal cantor de reggae da Bahia, Edson Gomes, que esta semana teve sua música tocada em festa no BBB24, fazia voz e violão, com músicas autorais, no estilo Tim Maia. "Foi seu irmão que lhe mostrou um disco de reggae e ele então compôs Rastafári, em homenagem a Bob Marley", conta a antropóloga.
Em seu livro, a antropóloga aponta também o componente religioso dos cantores de reggae de Cachoeira e São Félix, a quem chama de os rastas de Cristo. "Eles leem muito a Bíblia e isso vai para as músicas. Há toda uma história em torno disso, Edson Gomes teria achado uma Bíblia no lixo, quando morava em Salvador e passou a ler o livro", conta Bárbara. Nengo Vieira, por exemplo, tornou-se pastor evangélico.
A comunidade do reggae tem especial cuidado quanto ao uso da maconha, que chamam de ganja, termo oriundo do hindu. Uma precaução que faz todo o sentido no momento em que STF e Congresso Nacional divergem quanto à descriminalização da posse para consumo. Na cultura rastafári, a ganja faz parte do sagrado, mas em universo em que comunidades periféricas são dominadas por facções criminosas o povo do reggae precisa ter jogo de cintura para não bater de frente com policiais ou traficantes.
Responsável por organizar festas de reggae, o DJ Ras Péu já passou pela experiência de ter jovens ligados ao tráfico comprando camisas para frequentar um evento. "Um deles me chamou e perguntou se podia acender um cigarro e eu disse que não. Ele aceitou", conta o DJ. Uma conversa que não é muito fácil de se ter. Como proibir que alguém use uma substância que você não considera nociva? "Há uma diferença entre fazer um evento para um público diversificado e para um público específico. Há pessoas que compram camisa e não fumam. Nesses locais em que o tráfico impera, se você permite que um acenda, os outros vão querer comercializar lá dentro. E pra pessoa que não quer ver isso é um pouco complicado", pondera o DJ.
Mas Ras Péu no geral diz que se sente respeitado como artista do reggae, afirmando que às vezes quando há operações policiais que confrontam criminosos a PM o trata com dignidade. Um quadro bem diferente de décadas atrás, quando homens com dreadlocks podiam ter seus cabelos cortados à faca por prepostos do estado.
A dignidade e o orgulho foram os motivos que levaram o especialista em TI Gilberto Júnior a enfrentar o pai na adolescência e se declarar negro, assumindo o reggae como parte de sua existência. "Meu pai dizia que não teve filhos negros, mas pardos, o que na cabeça dele era uma forma de proteção contra o racismo", declara Gilberto.
Quando jovem, no Nordeste de Amaralina, ele ouvia o programa de Lino de Almeida e sonhava ter seu próprio veículo. "Eu sou fruto dessa geração que ouvia Muzenza, Araketu e Olodum no rádio", conta Gilberto, que todas as quintas-feiras entre 14h e 16h emite seu programa de reggae na webradio Reggae Vibz. A imersão no mundo da música e a conexão com produtores de outros países o levaram a estudar inglês.
O reggae trouxe para a Bahia a filosofia rastafári, pregada por Bob Marley e Peter Tosh, entre outros. O rastafarianismo surgiu na Etiópia na década de 1930, como uma religião que tomou emprestados conceitos do cristianismo e do judaísmo. Um rastafári verdadeiro, por exemplo, é anticapitalista, não corta os cabelos, não consome álcool ou drogas sintéticas e busca uma alimentação natural, sem carnes vermelhas. O uso da cannabis sativa, por outro lado, é para os rastafáris uma forma de se conectar com a natureza e com a espiritualidade.
E o nome rastafári deriva do termo Ras Tafári, pelo qual era conhecido Tafari Makkonen (1892-1975), liderança etíope. Ras é um título de nobreza em amárico, um dos idiomas falados na Etiópia. Em 1930, Tafari se torna imperador etíope, sob o nome de Haile Selassie, e passa a ser visto pelo movimento rastafári como a reencarnação de Cristo, sendo a Etiópia a terra prometida. Curiosamente, a Etiópia, sede da União Africana, é o único país do continente que não chegou a ser colonizado por europeus, apesar de ter sido ocupada pela Itália de Mussolini entre 1936 e 1941.
Essa informação é relevante porque o mais antigo grupo rastafariano é o movimento Nyahbinghi, que toma emprestado o nome de uma rainha do povo Ancolé no século 19, que segundo as lendas em torno dela usou os elementos da natureza, como fogo, água e ar, para lutar contra os colonizadores europeus. Desde então, no universo rastafári, seu nome passou a significar morte aos opressores.
Rastafári desde os 17 anos, o músico Ras Mateus reafirma o ideal anticolonialista da religião e atualmente a opressão de outros sistemas, como o racismo e o capitalismo. "É uma música revolucionária porque é social e política", declara o músico.
Por isso, a despeito da ligação da Etiópia e do próprio rastafarianismo com o judaísmo, sobre as mortes em Gaza, Ras Mateus aponta o compromisso histórico de Haile Selassie com a criação de um estado palestino livre e soberano. "Não podemos abraçar o genocídio étnico e cultural que está acontecendo ", afirma o músico.
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