ABRE ASPAS
“Formar plateias é formar cidadania”, defende Zeca de Abreu
Coordenadora de Teatro da Funceb fala sobre políticas públicas, espaço e formação de público

Por Gilson Jorge

Atriz, diretora, professora, produtora teatral e fundadora da Ouroboros – Companhia de Investigação Teatral, Zeca de Abreu é, desde a última quinta-feira, a coordenadora de Teatro da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb). “Existe um entendimento de que é necessário repensar os critérios dos editais e das políticas de fomento, levando em conta o tempo de carreira, a contribuição artística e o papel formativo não apenas dos artistas veteranos, mas também dos grupos de teatro, artistas independentes e festivais que têm sustentado a cena baiana ao longo dos anos”, diz ela. Nesta entrevista, respondida por escrito, a nova gestora comenta as principais reivindicações do setor e as articulações que planeja fazer.
Como a senhora recebe esse convite para assumir a Coordenação de Teatro da Funceb?
Recebo esse convite com senso de responsabilidade. Tenho 35 anos de carreira, comecei no Grupo Cereus e, desde então, dediquei minha vida inteira ao teatro como atriz, diretora, professora e produtora. Essa trajetória me ensinou a ver o teatro não apenas como arte, mas como uma forma de vida, de resistência e de construção coletiva. No mês passado, participei do Encontro Nacional de Políticas para o Teatro, em Fortaleza, um espaço histórico que marcou o início da construção de uma política nacional articulada para o setor. A partir dali, começou-se a desenhar o que pode vir a ser uma política setorial do teatro, prevista nos Sistemas Setoriais e no Sistema Nacional de Cultura, dentro de uma visão mais ampla e integrada de política pública para as artes.
Acredito que esse é o caminho mais consistente: articular a política do teatro à construção de uma política para as artes como um todo, fortalecendo o diálogo entre linguagem, estrutura e território. Venho com a força e o repertório do Movimento Teatro Profissional da Bahia, que já construiu um diálogo importante com o Estado. Esse é o momento de centrar energia na mediação e concretização das demandas do setor, dentro desse curto espaço de tempo que temos até o final do ano.
O objetivo é garantir que as ações em andamento se consolidem e que novos marcos possam ser deixados como base para o futuro. Um dos resultados desse diálogo será a entrega da Casa do Teatro da Bahia, previsto para março de 2026, na antiga Casa 14 — um espaço simbólico que volta a pulsar como lugar de criação, memória e encontro. Recentemente, tivemos também uma reunião muito significativa com a diretora-geral da Funceb, Sara Prado; a diretora de Artes, Gabriela Sanddyego; a presidenta da Funarte, Maria Marighella; a chefe de gabinete da Funarte, Laís Almeida, e Francisco Guerreiro, chefe de gabinete do Ministério da Cultura, que esteve conosco a pedido da ministra da Cultura.
Essa aproximação entre Funceb, Funarte e Ministério da Cultura representa um passo importante para o futuro das políticas públicas voltadas ao teatro, dentro de uma lógica federativa e colaborativa. Mais do que anunciar novidades imediatas, o foco é qualificar a articulação institucional e fortalecer essa rede, garantindo estrutura, continuidade e escuta ativa com resultado prático.
Qual o orçamento da coordenação? Há perspectiva de incremento de verbas para o próximo ano? Quais são as prioridades?
Ainda não tenho acesso aos dados orçamentários da Coordenação de Teatro, e seria precipitado fazer qualquer afirmação sem esse diagnóstico. Meu primeiro movimento será compreender a estrutura interna, o que está em execução e o que já está previsto até o fim do exercício. As prioridades neste momento são as ações continuadas, o fortalecimento dos editais de fomento e circulação, e a articulação com as demais áreas da Secult e demais unidades, como a Diretoria de Espaços Culturais, para pensar o teatro de forma sistêmica, conectada à rede estadual e aos territórios culturais.
O desafio maior não é apenas orçamentário, é estrutural: é consolidar uma política de artes integrada, onde cada linguagem e cada espaço se fortaleçam mutuamente. Essa visão é o que garante coerência e sustentabilidade para o setor. E quando falo em formação, penso também no encontro entre educação e teatro. Essas duas áreas precisam caminhar juntas. O teatro é uma ferramenta pedagógica poderosa – desperta sensibilidade, pensamento crítico e pertencimento. A própria Funarte tem um programa voltado para educação e teatro, e acredito que podemos fortalecer esse eixo também na Bahia, construindo pontes entre escolas, espaços culturais e ações formativas.
O Governo também tem o Centro de Formação em Artes da Funceb, que deverei trabalhar em parceria na área do teatro, desde a formação até a qualificação. Formar plateias é formar cidadania – e isso é parte da política pública. Vemos essa intenção nas entregas das Escolas de Tempo Integral, com equipamentos que provocam a formação. A portaria interministerial entre o MinC e o MEC que prevê arte e cultura na educação de tempo integral também é um passo importante, e estamos formatando internamente sua execução.

Uma das queixas da classe artística é a falta de apoio para atores veteranos. Em uma discussão setorial há pouco tempo discutiu-se o formato desejável dos editais de teatro, levando em conta os mais experientes. Como enxerga essa questão?
Essa é uma pauta que o Movimento Teatro Profissional da Bahia já vinha tratando com a própria Funceb. Existe um entendimento de que é necessário repensar os critérios dos editais e das políticas de fomento, levando em conta o tempo de carreira, a contribuição artística e o papel formativo não apenas dos artistas veteranos, mas também dos grupos de teatro, artistas independentes e festivais que têm sustentado a cena baiana ao longo dos anos.
A experiência não é passado, é presença, memória viva e potência criadora. O desafio é criar mecanismos que reconheçam as diferentes fases e formas de trajetória – quem começa, quem se consolida e quem já construiu uma obra – sem perder de vista que o teatro é um organismo coletivo. Essa discussão também precisa estar conectada a uma visão de política setorial: o fortalecimento do teatro não pode ser visto de forma isolada, mas como parte de uma estrutura maior de política das artes, articulada com o Sistema Estadual e o Sistema Nacional de Cultura.
Quando o teatro cresce, todas as linguagens se fortalecem e vice-versa. O que buscamos é uma política de continuidade e de ações permanentes, que valorize tanto a inovação quanto a permanência, fortalecendo os grupos, artistas e festivais que compõem a espinha dorsal do teatro baiano.
Tem gente com história no teatro baiano mas que não consegue se manter em cartaz de forma regular, por falta de pauta. A coordenadoria pode colaborar de alguma forma na mediação entre artistas e espaços privados? Qual seria o melhor caminho para planejar a temporada?
O primeiro passo é realizar um mapeamento real da rede de espaços, grupos e artistas independentes que estão atuando hoje em todo o estado. Precisamos entender onde estão essas pessoas e quais são as condições de trabalho de cada região, para pensar políticas coerentes de ocupação e circulação. Eu venho de um tempo em que um espetáculo podia ficar em cartaz por mais de um ano, e é impossível não sentir a diferença.
Hoje os tempos de pauta são curtos, os custos aumentaram e a divulgação é limitada. O desafio é reverter esse quadro, e isso passa por difusão, política de pauta, comunicação e circulação. É fundamental investir em divulgação massiva. Precisamos de uma agenda cultural unificada, que esteja nas ruas e nas redes, mostrando os nossos artistas baianos. Essa visibilidade é parte da política cultural. Um plano de mídia permanente, articulado em parceria com veículos públicos e privados, pode ajudar a reconstruir o vínculo entre público e teatro. Durante a pandemia, o teatro sofreu profundamente, como toda a população. Foi um tempo de medo, silêncio e afastamento.
Mas o que mais nos feriu não foi apenas a ausência de trabalho, e sim a ausência do outro. O teatro é uma arte que só existe na presença. Ele nasce do encontro, da escuta, do olhar partilhado. E quando esse encontro se interrompe, algo da alma coletiva também se cala. Por isso, neste momento, retomar a presença é mais do que reabrir palcos, é reconstruir vínculos humanos e simbólicos. Acredito que o teatro pode ajudar a curar uma parte da solidão que ficou. Porque quando o público e o artista se reencontram, o país também se reencontra consigo mesmo. E talvez seja isso o mais político que o teatro pode ser: fazer o país voltar a se olhar nos olhos.
A montagem de Um Julgamento – Depois do Inimigo do Povo optou por improvisar um teatro em uma área voltada a eventos no Trapiche Barnabé. Ao longo dos últimos anos, a cidade perdeu salas de tamanho médio. O Teatro Gamboa, por sua vez, depende de uma vaquinha para a aquisição do imóvel, sob risco de fechar. A Funceb pode ajudar a encontrar alternativas?
A perda de salas médias é uma questão séria. Sem espaços, o ciclo de produção, apresentação e permanência se fragiliza. Mas há também ações importantes do Governo da Bahia em andamento. O Teatro Castro Alves está em reforma, com uma nova Sala Principal, mas também preparando o retorno da Sala do Coro e a entrega de uma nova sala de espetáculo para experimentações que chamamos Laboratório Cenográfico; teremos também um novo Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e uma nova Caixa Cultural que foram articulações do Governo e estão sendo requalificados diversos equipamentos nos municípios do interior como parte do plano da Diretoria de Espaços Culturais.
Sobre o Gamboa, o Governo do Estado, através da Secult e Funceb vêm dialogado sobre a possibilidade de visibilizar e apoiar ações de arrecadação para evitar o fechamento do equipamento. Essas requalificações fazem parte de uma estratégia de fortalecimento da rede estadual de cultura, que é uma prioridade do governo. Ainda assim, é fundamental olhar além dos palcos tradicionais.
O Trapiche Barnabé mostrou um potencial imenso para o teatro, a força da cena se adaptou e revelou o desejo do público de ocupar novos lugares. Assim como o Trapiche, existem outros espaços com vocação cultural que precisam ser identificados e ativados, por exemplo, desde a reforma do Teatro Vila Velha, o Museu de Arte da Bahia acolheu o trabalho do Vila explorando a vocação das artes cênicas no museu, e deve impulsionar essa experiência em outros museus, que passam a ser espaços também para o teatro.
Isso faz parte de um mapeamento mais amplo que pretendo realizar junto à Funceb e à DEC, buscando compreender onde estão esses lugares e como eles podem ser incorporados às políticas de circulação e ocupação. O teatro precisa de lugar, e cada espaço, seja histórico ou alternativo, é uma conquista simbólica e coletiva.
Parte da classe artística reivindica que o governo do estado destine 1% do orçamento para a cultura. Acha essa bandeira viável?
Essa é uma reivindicação legítima e histórica do Movimento Teatro Profissional da Bahia, que expressa o desejo da classe artística de ver a cultura tratada como política de Estado e eixo estruturante do desenvolvimento. É uma bandeira que sintetiza anos de luta e mobilização, e precisa ser olhada com respeito e responsabilidade. Por outro lado, é importante compreender que qualquer avanço dessa natureza exige planejamento e diálogo interno dentro do próprio Estado.
Antes de falar em valores, é fundamental ouvir, entender a composição do orçamento da Funceb e da Secretaria de Cultura, e me somar às equipes da cultura nesse esforço coletivo de disputar, fortalecer e ampliar gradualmente o investimento. O que posso afirmar é que a Funceb vem mantendo diálogo com o Movimento Teatro Profissional da Bahia, e acredito que, com continuidade e coerência institucional, é possível avançar de forma consistente nessa direção.
Mais do que um número, o 1% simboliza o reconhecimento da cultura como investimento essencial, e o teatro seguirá sendo uma das vozes mais firmes nessa construção.
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