Fotógrafa e editora Arlete Soares lança virtualmente o livro Sobre Helen
Sentada em uma cadeira encostada à porta que dá acesso a um pátio, a fotógrafa Arlete Soares, 81 anos, tem a mão direita ocupada por um isqueiro e a esquerda por um cigarro que está prestes a ser descartado.
Os óculos escuros tornam menos legível a sua expressão facial, mas o esboço de um riso que não chega a se concretizar é a primeira reação quando instada a falar sobre a sua avó materna, a inglesa Helen Edington, personagem de sua estreia literária com Sobre Helen.
Arlete acha importante contar a história da estudante de medicina londrina que mudou-se para a Bahia em 1873, acompanhada do pai que veio trabalhar na Companhia Têxtil de Valença, apaixonou-se pelo pescador negro Manoel Azevedo, de Valença, rompeu com sua família e causou furor no interior baiano.
Tanto por ser vista como a médica estrangeira quanto por se dedicar a atividades então restritas ao mundo masculino local, como andar a cavalo.
Helen morreu aos 37 anos, de tuberculose, e não deixou muitos registros documentais sobre a sua existência. Mas histórias suficientes para que se firmasse uma imagem da mulher que um século depois seria uma referência feminista para a futura neta.
“Minha mãe sempre dizia ‘você puxou à sua vó’, em qualquer rebeldia, qualquer tentativa de independência. Chegou a um ponto que eu disse ‘poxa, essa minha avó era do balacobaco’”, conta. Os comentários que surgiram em tom de crítica e repreensão ganharam valor de incentivo para ela.
No livro, Arlete construiu um retrato da avó a partir da memória remota. “Quando eu estava na faculdade ia muito a Valença e ouvia as pessoas amigas de minha mãe e pessoas idosas que tinham conhecido a minha avó”.
Arlete diz que algumas pessoas descreviam Helen como uma mulher linda, de cabelos longos, que montava cavalo que nem homem, fumava, tocava piano, atendia todos os doentes.
E outras destacavam que ela tinha gerado uma grande tristeza no pai europeu ao se casar com um negro pescador e viver numa cabana na beira do rio. “Naquela época, a minha agenda era também um diário e eu anotei muitos desses ditos”, afirma.
Ouvir o coração
A fotógrafa considera importante destacar o mito que a sua avó virou, por causa de um feminismo que era novidade no Brasil, mas fervilhava na Inglaterra.
“Era o momento das sufragistas, mulheres que queriam votar e também serem votadas”, destaca Arlete, que se identifica com a mulher que contrariou o pai e ouviu o que o próprio coração queria.
O livro tem outro fator afetivo importante para ela. Foi o último trabalho como designer gráfico de Flávio Oliveira, multiartista do Santo Antonio Além do Carmo, que produziu poucas edições artesanais do livro pela editora Ateliê de Ofícios e morreu em março deste ano, vítima da Covid-19.
Ele será homenageado na Feira Miolos, com uma mostra na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, de 1º de novembro a 10 de dezembro, com curadoria de Cibele Bonfim, que era companheira de Flávio. E o livro de Arlete será lançado, virtualmente, no contexto dessa homenagem.
Aventuras
Arlete realizou ao menos duas grandes aventuras na vida que podem, em parte, evocar o espírito libertário de sua avó.
Uma viagem da Europa à Índia a bordo de uma Kombi com outras três amigas, na década de 1970, e a fundação da Editora Corrupio, em 1979, especificamente para publicar Fluxo e Refluxo, de Pierre Verger, rejeitado pelas editoras brasileiras sob o argumento de que livros sobre negros não vendiam.
A editora, que nasceu com um propósito pontual, manteve-se ativa até março deste ano.
Arlete, que conheceu Verger através de Jorge Amado, acabou se tornando uma pessoa fundamental para o retorno do fotógrafo à Bahia.
Foi ela quem trouxe de Paris os negativos do etnólogo e antropólogo francês e bateu pé firme na importância de que os livros de Verger sobre a Bahia estivessem traduzidos para o português.
“Como dizia Jorge Amado, Arlete era o cão, não só abriu caminhos como brigou muito pela publicação dos livros e pela manutenção do acervo”, declara Marcelo Reis, coordenador de Artes Visuais da Fundação Cultural da Bahia (Funceb).
ZAZ
A amizade com o francês, entretanto, começou a se estreitar em 1972, quando Arlete criou com amigos o Grupo ZAZ de fotografia, que passou a ser frequentado por ele. Foi um momento que ela considera especial porque lhe permitia fazer um coisa que gosta muito: exibir as fotografias em comunidades que não têm muito acesso às artes.
Em um Ford Rural, o grupo viajava por cidades próximas a Salvador, como Alagoinhas e Dias d’Ávila, estendia uma lona para projeção na parede de uma casa e começava a exibição. O grupo encerrou as atividades em 1976, quando ela embarcou para a viagem que a levaria à Índia.
Ao lado do babalorixá Balbino de Xangô, Arlete receberá, no próximo dia 4 de novembro, data de nascimento de Pierre Verger, o Prêmio Homenagem ao Percurso, instituído este ano pela Funceb.
Como resultado, 40 fotos de Arlete e 40 objetos pessoais de Balbino estarão expostos no Palacete das Artes durante a oitava edição do Prêmio Pierre Verger de Fotografia.
A exposição de Arlete, Nítida Bahia, com curadoria de Elisa Bracher, Goli Guerreiro e Marcelo Reis, apresenta fotos da Salvador dos anos 1970 e 1980 (30 impressões e 10 vintages), e será aberta no Palacete das Artes (Graça), às 18 horas, prosseguindo até o dia 30 de janeiro de 2022.
O livro Sobre Helen (100 p.; R$ 120), que vai ser lançado numa live no dia 2 de novembro no site feiramiolos.com.br, pode ser adquirido no site da editora independente A margem; press (amargempress.com.br) ou através das redes sociais do Acervo Arlete Soares @acervoarletesoares.