Geraldo Rocha grava programa de auditório no quintal de casa | A TARDE
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Geraldo Rocha grava programa de auditório no quintal de casa

Publicado terça-feira, 23 de junho de 2015 às 11:33 h | Atualizado em 24/06/2015, 10:30 | Autor: Tatiana Mendonça
GERALD�O E O POVO / MUITO
GERALD�O E O POVO / MUITO -

No quintal há um galpão, no galpão há cadeiras brancas de plástico enfileiradas. Às oito da noite de uma terça-feira, quase todas estão ocupadas. Cerca de 50 pessoas olham para a frente e esperam. De repente, um senhor de roupa social, com direito a colete e gravata, pega o microfone, aponta para a única câmera e diz: "Vamos gravar".

Uma mulher liga o carro de som estacionado na garagem e o pensamento automático é se o barulho do motor não vai atrapalhar o que quer que aquilo seja. Erro de principiante. É justamente dali que sai a música que abre o programa. "Começou a festa, na televisão. Está no ar o programa Geraldão. É cidadão, é do povão, é da galera. Está no palco e também tá na plateia. Olha ele aí de novo, sacode, balança, hey!". Quando o som termina, o cinegrafista grita: "Aplauso, pessoal!". E eles aplaudem. Geraldo Mota da Rocha, o Geraldão de que fala a canção, anuncia com pompa: "Boa noite, gente! Estamos começando mais um Geraldão e o Povo, diretamente da Vila Letícia, aqui no maior bairro da América Latina. Cajazeiras, Salvador, Bahia".

O cenário do programa consiste numa tela de fundo onde está plotado o nome do programa, rodeado por plaquinhas dos patrocinadores. No canto direito, há um mostruário com temperos para a cozinha, de outro anunciante, e no canto esquerdo repousam uma cadeira velha e um banco com um telefone preto de discar.

No alto do toldo, meio apagado por uma tinta branca, ainda dá para ler o horário antigo em que o programa era exibido, mas Geraldão, 69, não nos deixa enganar: está no ar às segundas, às 22 horas, na Rede CNT, no canaaaal? "Dezoitoooo", o público responde, em coro. Tudo ali vira um coro. De repente, parece que estamos num circo mambembe, daqueles tão toscos que fica impossível não lhe ter afeto.

O programa de auditório tem meia hora de duração e alguns poucos quadros: um número musical, um espaço político, um outro médico, um sorteio de prêmios. Sorteio não, show, como o letreiro da TV informa. Cada pessoa sentada ali recebeu uma senha. Para o sorteio, Geraldão chamou ao palco uma menina, filha de um dos anunciantes. "Ela é linda. É ou não é?". "Ééééééé!". Ninguém tem o primeiro número que ela tira. "Chama outro, rápido!". E aí saem uma cafeteira, depois uma cesta com mais produtos para café, depois uma dúzia de copos, por fim - rufem os tambores! - uma cômoda de madeira para o quarto. "Olhaí, essa senhora que foi sorteada, já tinha ganhado um berço para a neta dela! E agora ganhou a cômoda para guardar as fraldas! Por isso eu falo, nunca diga que Geraldão te deu nada. Quem dá é Deus". Aplauso, pessoal!

Cama, sofá, geladeira

Deus criou Geraldão e o Povo há cerca de seis anos. Falou por meio do seu cinegrafista, Israel Queiroz, que certo dia perguntou: "E por que é que você não monta um programa seu?". Àquela altura, Geraldão amargava o ostracismo depois de aparecer por mais de duas décadas em atrações popularescas na TV Itapoan. Gostou da ideia e foi atrás de um canal onde pudesse exibi-la. Passou um tempo na TV Salvador e agora está na Rede CNT. Por mês, diz gastar cerca de R$ 10 mil com o programa - o maior custo é o pagamento pelo horário da televisão e o salário da "equipe": o próprio Israel, que também edita o material, e sua filha, a jornalista Letícia Rocha. Para ele mesmo, Geraldão diz que não sobra quase nada.

De audiência, parece não ter notícias, mas é, naturalmente, um promotor de si mesmo. Não é homem de traço. "Acho que estamos indo bem. Quando o programa vai ao ar, o telefone não para de tocar". E quando aquele número que anuncia à exaustão toca, é ele mesmo quem atende. Do outro lado da linha, a pessoa diz que tem um colchão, um fogão, uma geladeira, um sofá, e que gostaria de doá-los. Também é Geraldão quem vai buscar os móveis em tudo que é canto da cidade e os entrega em domicílio (tudo filmado, claro) ou então ali mesmo no estúdio.

Naquela noite, ele encerrou o programa pedindo uma cama para um homem que segurava uma sacolinha plástica. "Esse rapaz aqui... Você é donzelo? Sim? Não? Não importa! Esse rapaz aqui já ganhou um fogão para a mãe dele, mas agora está precisando de uma cama, porque está dormindo no chão. No chão!". Olha fixo para a câmara: "Eu sei que vocês não vão permitir isso!".

Sentada na última fileira, Rosângela dos Santos, 42, acompanhava a gravação pela sexta vez. Ela mora em Cajazeiras, leva menos de dez minutos para chegar à Vila Letícia - como Geraldão batizou seu complexo doméstico-televisivo, em homenagem à mãe e à filha.

Rosângela foi até ali na esperança de conseguir um emprego de "qualquer coisa", depois que a família com quem trabalhava como empregada doméstica mudou-se para Brasília. Foi sorteada para receber um prêmio - a cesta com coisinhas para café - mas não teve coragem de falar nada sobre trabalho. Ficou tão tímida que nem lembrou uma música que fosse do seu cantor preferido, Zezé de Camargo.

Um nome

Quando senta para contar a vida, Geraldo parece estar narrando um filme no qual coisas demais acontecem ao mesmo tempo. Foi vendedor de jornal, garçom, cantor, vereador, dono de circo. Morou em Alagoas (onde nasceu), Recife, Rio de Janeiro, Salvador. Conheceu Nelson Gonçalves, tocou com Djavan, dirigiu para o rei, Roberto Carlos. "Fui pegar ele um dia no aeroporto e aproveitei para mostrar o meu compacto, com a música Quem sou eu. Ele autografou e tudo. Guardo esse disco até hoje".

Para Salvador,  veio com a roupa do corpo. Ficou dormindo no banco da rodoviária até conseguir um emprego de garçom, num bar em Amaralina. Ali, passou a cantar. Conversa vai, outra vem, foi levado por um conhecido para a TV Itapoan, onde começou lavando carros. Quando surgiu o programa O Povo na TV, escalou-se para ir  buscar as doações que apareciam - como igualmente faz até hoje.

Em pouco tempo, aparecia com seu conjunto de música brega no programa de Tia Arilma, onde depois foi jurado. Ficou tão conhecido que tinha até uma atração sua,  Pé na Fogueira, na qual mostrava quadrilhas juninas. Mas seu sonho mesmo sempre foi ser cantor. Até hoje, faz um show ou outro. "Tenho um nome". Em Cajazeiras, encontrou-se com a fama, e isso ninguém há de negar. Aplauso, pessoal!

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