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Gláucia Lemos: "Escrever literatura é uma coisa mágica"

Por Alessadra Oliveira | Foto: Raul Spinassé / Ag. A Tarde

29/10/2019 - 10:28 h
Homenageada pela Flica deste ano, a escritora publicou seu primeiro livro há 40 anos
Homenageada pela Flica deste ano, a escritora publicou seu primeiro livro há 40 anos -

O quarto entupido de livros, nas estantes, na mesa, no piano, no guarda-roupa, reúne os preferidos e os autorais de Gláucia Lemos, 89. Leitora voraz desde a infância, nunca pensou em estudar letras e não o fez. Graduou-se em direito. Bastou, porém, participar de um concurso semanal do Jornal da Bahia para se descobrir e ser descoberta no caminho literário. “Eu não vim aqui para ser advogada, vim para escrever”, sentencia. O destaque no periódico lhe rendeu a publicação do seu primeiro livro, Era uma vez uma rosa que virou mulher, há 40 anos, completados em agosto. Também em 2019 “acumulou o presente” de ser a homenageada da 9ª edição da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), que terminou no domingo, 27. Apesar de ter maior reconhecimento pelos livros infantis que escreveu, 21 exatamente, são 41 obras autorais ao total. Dentre eles, quatro romances adultos premiados: O riso da raposa, A metade da maçã, As chamas da memória e Bichos de conchas. O último é o seu preferido, confessa tímida, com a culpa de uma mãe que escolhe um filho predileto. Coisa que não faria em se tratando dos seus frutos hereditários. Faz questão de abarcar todos: “Cinco filhos, sete netos e três bisnetos”. A escritora e pós-graduada em crítica de arte recebeu a Muito em seu apartamento para falar sobre o início e o futuro da carreira, a escrita literária e a relação de suas obras com sua família.

Como recebeu essa bonita coincidência da homenagem da Flica e o aniversário de 40 anos de Era uma vez uma rosa que virou mulher?

Pois é, foi uma coincidência mesmo, porque o pessoal da Flica não estava sabendo. Fiquei muito feliz. É como se estivesse acumulando um presente por estar fazendo 40 anos de literatura sempre com êxitos, graças a Deus, e modéstia à parte, não tem preço a alegria.

E como começou essa história com a literatura já depois de graduada em direito?

Na década de 1970, havia um concurso permanente de contos no Jornal da Bahia. Qualquer pessoa podia escrever e mandar durante a semana. Apenas um era publicado no domingo. Um dia, mandei e meu conto saiu. Passada uma semana, saiu de novo. Resultado: nas quatro vezes que mandei, sempre foi o meu que saiu. Então o jornal me fez uma cartinha delicada pedindo que eu não mandasse mais (risos) porque precisava dar oportunidade a outros que estavam concorrendo. Fiquei meio frustrada porque era minha oportunidade de publicar, mas o professor Carlos Eduardo da Rocha, que na época era do conselho de cultura da Fundação Cultural, lia meus contos do jornal, me procurou e disse: ‘Junte 15 contos rapidinho daqui para o fim do mês e leve na fundação para publicar’. Eu não acreditei, mas ele disse que ia publicar. Era um livro de contos centrado na mulher. Eu já era casada, tinha filhos e conhecia de perto a luta doméstica. Tudo isso foi refletido no livro. A partir daí, deixei de trabalhar em advocacia, fui somente escrever em jornal e cultivar a minha literatura.

Em que momento a literatura infantil apareceu? Acaba que hoje você é mais reconhecida pelas publicações para esse público.

Foi assim, eu comecei a ter netos, né? Um dia o neto do meu afilhado, com uns 5 anos, chegou da escola e disse: ‘Vó, apareceu lá em casa um papagaio’. Ele nunca tinha visto um na vida. ‘Você conhece?’. Eu disse: ‘Conheço. Na minha infância tinha muito’. E ele: ‘Quero que você faça um livro para mim que tenha um papagaio e uma baleia’. Na época, ele estava aprendendo a nadar. Imaginei: ‘Meu Deus, como é que eu vou juntar isso?’. Papagaio é tão terrestre e a baleia, do mar. Eu tive que bolar. Neto pede, é uma ordem. Coloquei o papagaio como sendo de um capitão de um navio que naufraga. Ele voa, vê um rochedo e posa. Mas o rochedo se mexe. Era uma baleia. Ele começa a viajar no dorso da baleia. Comecei a pesquisar sobre ilhas, povos que vivem em ilhas... Acho que um livro infantil não tem que ser para passar ensinamentos, mas se passar informação, tem que ser verdadeira. Então, pesquisei bastante. O papagaio viajava para a terra, tinha aquela vivência, voltava para o dorso da baleia e contava as coisas que tinha visto. Naturalmente, contando muitas aventuras mentirosas em que ele era o herói. Isso dava o tom engraçado do livro, que as crianças gostam.

Quando uma coisa pinga na cabeça da gente, transtorna. Ou você escreve, nem que seja um pedacinho por dia, ou então aquilo lhe persegue dentro da mente

Seu neto aprovou o livro?

Adorou! Hoje, a filhinha maior dele já está lendo. O livro já está perto de 30 edições. A editora que publicou, a Atual, fez um excelente trabalho de divulgação nas escolas. Em um ano, o livro vendeu três edições. Foi tal o êxito que o editor da coleção, Henrique Félix, pediu que eu escrevesse mais três livros de viagem para que cobrisse as quatro unidades de literatura dos colégios. Aí criou-se a coleção do Marujo Verde, com o mesmo papagaio e a mesma baleia. Foi meu passaporte para a literatura infantojuvenil e me levou para o território nacional. Sou mais conhecida em outros estados do que na Bahia, porque o livro teve uma penetração muito grande pelas escolas e eu fiquei rotulada como autora de literatura infantil, embora tenha cinco romances publicados e quatro deles premiados, que são livros adultos.

Você disse que costuma ir a escolas conversar com as crianças. Como funciona essa dinâmica?

A escola entra em contato com a editora através do divulgador depois de trabalhar o livro. Então a editora me convida, e eu aceito sempre. A receptividade é magnífica porque as crianças têm uma curiosidade pelo que seja um escritor, acham que é uma pessoa diferente. Acham que eles estão aqui e o escritor está lá bem longe. Às vezes, perguntam ‘como é que você vive?’. Os meninos fazem as perguntas mais interessantes. Não tem preço isso. Você não imagina o que é escrever para essa faixa etária, entre 9 e 16 anos. É uma coisa maravilhosa.

A recepção das crianças tem mudado com o tempo? Acredita que elas desconhecem o trabalho do escritor porque estão lendo menos?

Não. Acredito que estejam mais atualizados com isso do que seja um escritor. O trabalho das escolas trazendo o autor para classe funciona nesse sentido. Eles já entraram em contato com alguns outros escritores, já sabem que são profissionais como quaisquer outros. Esse é um trabalho que precisa continuar e ser feito mais. Já fui muito mais a escolas do que hoje.

Essa diminuição de convites tem acontecido somente na Bahia? Ou no Brasil?

Na Bahia. Fora daqui eu nunca fui a escolas. Digo que sou mais conhecida fora porque recebo cartas de crianças. Uma que me realizou muito foi a de um menino dizendo assim: ‘Eu não gostava de ler, mas depois que li o seu livro, descobri como ler é bom’. Chorei quando li essa carta. Me emociono ainda hoje. A resposta do leitor mirim é uma coisa espontânea. O adulto pode lhe dizer ‘eu gostei’ para lhe ser gentil, mas se a criança não gostar, ela não diz que gostou. Cada vez que acontece uma resposta positiva assim, penso que estou no caminho certo. Eu não vim aqui para ser advogada, vim para escrever.

Se você sente que é justo, sem prejudicar pessoa alguma, daí já tira força. É essa a resistência válida. Não é uma resistência que se mantenha pelo capricho.

Como escritora, como avalia nosso contexto político, em que o governo federal assume, constantemente, uma postura contrária à cultura? Eventos como a Flica são um modo de resistência?

A palavra é essa, resistência. É preciso continuar a acontecer, não esmorecer. A luta é grande? É. Mas é justa. Não se pode parecer vencido pelos obstáculos se você tem a consciência de que está fazendo uma coisa justa, não só para você, mas justa para sua comunidade, seu espaço, seu estado, seu país, para a humanidade... porque, indo nesse escalonamento, a gente chega à humanidade. Se você sente que é justo, sem prejudicar pessoa alguma, daí já tira força. É essa a resistência válida. Não é uma resistência que se mantenha pelo capricho.

A literatura é sempre política?

A literatura político-partidária pode se tornar abastardada porque pode ser panfletária. Eu fujo disso. Primeiro, não sou política. Segundo, não sou militante. Depois, não acho que se deva usar a literatura para isso. A literatura é a arte das belas letras. O que é que a gente tem que fazer com ela? Passar a beleza, o prazer de se ler e, mais do que isso, o refinamento do espírito. Você não lê um livro só pela beleza da história, mas também pela sintaxe, pelo desenvolvimento. É muito mais como você conta do que o que a história conta. É se apurar no que escreve, não fazer o lugar-comum, ser fiel ao objetivo literário que é a estética. Tem um filósofo que diz assim: há literatura de fruição e de diversão. O leitor de diversão quer uma história boa. O de fruição lê para fruir o que tem de bom naquela literatura, na maneira de aquele autor se expressar. Acho ideal que a literatura seja de diversão e fruição ao mesmo tempo.

Essa literatura tem sido feita na Bahia?

Tem muita gente aqui escrevendo muito bem. Por exemplo, tem um rapaz que já está pronto para entrar na Academia de Letras. O nome dele é Tom Correia. Os contos dele são maravilhosos. Outro que acabou de entrar na Academia é aquele menino Marcos Vinicius Rodrigues. Eu fiz o discurso de recepção dele. Nunca tinha feito discurso de recepção para nenhum acadêmico. Mas fiz com tanta verdade. Acho que nunca escrevi uma coisa com tanta verdade. Então, há pessoas boas aqui. Em compensação, há outras que se supõem e não são essa coisa toda. Em todas as profissões se encontram dessas. Há o verdadeiro, que nasceu para aquilo e que a gente sente o borbulhar do gênio, como diz Castro Alves. Ele sente aquilo, ou escreve ou fica doido. Porque quando uma coisa pinga na cabeça da gente, transtorna. Ou você escreve, nem que seja um pedacinho por dia, ou, então, aquilo lhe persegue dentro da mente. Quando as minhas crianças eram pequenas, depois que eu punha elas para dormir, ia escrever alguma coisa. Era minha maneira de relaxar. Se não fizesse isso, ia ficar pressionada por aquela luta. Não parei de produzir mesmo na luta diária da domesticidade.

Você comentou no início da entrevista que seu primeiro livro foi inspirado nessa luta feminina doméstica. A inspiração dos demais livros também vieram desse cotidiano?

Com os outros livros eu estava mais fora de casa. As crianças cresceram, as moças casaram. Comecei a viver mais para fora, trabalhar na rua. Tive mais elementos que me inspirassem. A gente não tira do nada. Meus livros têm um fundo emocional sempre. Hélio Pólvora, na orelha de Bichos de conchas, disse assim: ‘Gláucia não escreve com palavras, escreve com emoção’. Ele sentiu a emoção no meu livro que, por sinal, dos meus romances, é o que mais gosto. Pensei que nunca teria um livro que gostasse mais, mas me coloquei demais nele. Não tem nada da minha história. Não coloco minha história em coisa nenhuma, mas a gente passa, nem que seja, assim, nossos desejos, sonhos. Quando pensa que não, a gente aporta ali uma emoção. Mas, às vezes, a gente pensa ‘por que escrevi isso?’. É uma das grandes surpresas de quem escreve também. Escrever literatura é uma coisa mágica. Só espero que Deus me dê lucidez e capacidade de dizer coisa com coisa por muitos anos até eu fazer 120. Eu faço 90 em abril que entra e ainda quero viver uns 30 anos escrevendo.

Tem planos de quais livros quer escrever nesses próximos anos?

Não, eu não faço planos. Pinta uma história, eu digo ‘ah, essa é infantil’, ou, então, ‘isso é um romance’. É como eu digo, a história se me conta. Eu não conto a história. Vou me divertindo com ela. Choro quando estou escrevendo, dou risada, fico parecendo uma maluca. Uma vez estava escrevendo e tinha uma empregada aqui, Célia. Era meu romance A metade da maçã. É a história de uma moça, filha de cigana, do interior, que foi criada na capital. Um dia, ela voltou para visitar a mãe. Quando chegou, viu a mãe varrendo o quintal, uma mulher simplória. A emoção... lá vou eu chorar... [risos com lágrimas nos olhos]... a emoção do encontro delas depois de muitos anos. Ela ficou olhando para a mãe e teve pena... Aí comecei a chorar escrevendo. Célia entrou no quarto, ‘dona Gláucia, o que é que a senhora tem? Quer que chame um médico?’. Ela ficou agoniada. Hoje é engraçado. Na ocasião, eu chorava, chorava, chorava, e ela agoniada. Até que eu pude dizer: ‘É a história que estou escrevendo’. Ela ficou olhando para mim, assim, como se dissesse ‘essa mulher é doida’. Mas quando a gente escreve é assim mesmo. Eu ri muito com As aventuras do marujo verde. O papagaio dizia uma coisa, que não fui eu quem disse, foi ele, e eu morria de rir. Tem dessas loucuras. Quando um autor que está começando vem conversar comigo, eu digo ‘bem-vindo ao hospício’, porque o que não falta é doidice. Nesse nosso reduto de escritores é muita coisa que a gente mesmo não entende.

Mas você arrisca uma explicação?

Penso que o subconsciente vai segurando coisas, segurando, segurando, e um dia ele começa a jogar, e vêm as emoções, boas e ruins. A vida não é um mar de rosas. Às vezes, tem rosas, mas tem muita marola também. Essas coisas vão se reunindo lá dentro e o subconsciente vai fazendo um caldeirão de bruxa e quando solta... a gente tem a oportunidade de chorar muito e sorrir muito também. Para rir, eu não preciso de muito. Ainda rio com desenho animado. Parece uma bobagem. Meu falecido filho dizia: ‘Minha mãe, quando é que você vai crescer?’. Eu respondia: ‘Acho que não vou crescer nunca porque vou me conservar assim’. Ele me trazia de presente bichinhos de pelúcia e bibelôs de criança. Uma vez, me trouxe um

Snoopy. ‘Ah, mãe, procurei uma coisa para te trazer, vi esse Snoopy e achei que parecia com você’.

Você gostou do presente?

Gostei! Está lá na minha estante do quarto. Hoje é uma lembrança tão grande dele. É outro pedaço ruim da vida. O pior que passei em minha vida.

O livro que lançou na Flica, Sonetos verdes e alguns versos brancos, é dedicado a seus filhos, assim como os anteriores?

Sim. É um livro de poesias. Não publico muita poesia porque acho que sou muito boa prosadora, modéstia à parte, e tenho receio de não ser tão boa poeta. Aí entra a vaidade, o narcisismo. Se tivesse certeza de que sou tão boa poeta, não hesitaria tanto. Publico poesia, assim, no Facebook. Uma de vez em quando. Mas não tenho essa certeza se isso é bom. Quando a gente acha que está muito bem, pode ficar vaidosa, começar a escrever bobagem.

Então é um desafio lançar esse livro agora?

Não, não acho que é um desafio. É uma comemoração. Como fazer poesia é uma coisa sublime, fazer poesia bem feita é luxo, quis me dar o direito de fazer esse luxo para comemorar meus 40 anos de literatura. Quando completei 30 anos, publiquei meu primeiro livro de poesia, Trilha de ausências. Uma edição pequena, não foi para o mercado, distribuí entre amigos, família. Hoje leio e digo ‘para que eu publiquei isso? Essa poesia não é boa. Esse livro não é bom’. Talvez daqui a 10 anos eu faça a mesma coisa com esse. Fico criticando os livros que já publiquei, tentando aprimorar. Agora mesmo estou com um livro de crônicas. Eu ficava publicando crônicas no Facebook e meus amigos começaram a falar ‘junta e faz um livro’. Nunca tinha pensado nisso. Comecei a juntar e agora tenho uma porção. O livro ficou enorme, com umas 200 crônicas. Já está pronto, mas ainda estou trabalhando nele. Fico assim, trabalho num livro, trabalho no outro. Ter sempre um trabalho é bom por isso. Estou também em um projeto que a editora Calango me convidou para participar, um livro de contos com seis autores. Eu aceitei, mas tenho tanta coisa para fazer. Como é que eu aceitei? Mas vai passar essa fase e vou ficar quietinha, escrevendo.

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