ABRE ASPAS
“Há projetos que não sobrevivem sem apoio do Estado”
Confira a entrevista com a atriz Rita Assemany
Por Pedro Hijo
Um dos nomes mais reconhecidos no teatro baiano, a atriz e diretora Rita Assemany reconhece que se sentiu assustada ao entrar nos Estúdios Globo, no Rio de Janeiro. Durante parte do ano passado, ela mergulhou na personalidade moralista de Ingrid, personagem que interpreta em Justiça 2, que estreou em abril na Globoplay. A aclamada série é escrita por outra baiana, a autora Manuela Dias, com quem Rita contou para compor a personagem. Nesta entrevista, a premiada atriz fala ainda sobre a importância do incentivo ao teatro baiano, o período difícil de isolamento causado pela pandemia de Covid-19 e sobre novos projetos. Rita sobe este mês no palco do Teatro Molière da Aliança Francesa com o espetáculo Chiquita com Dendê, recital satírico sobre as diversas culturas da Bahia, de 11 a 26 de maio, sábados às 19h e domingos às 18h. Nessa temporada, o espetáculo vai contar com convidados especiais a cada dia, como a cantora lírica Eneida Lima, o cantor Denny Palma com a filha Juju, e os atores Bruno Roma e Carlos Betão. O dia da estreia será com a percussionista e compositora Mônica Millet, neta de Mãe Menininha do Gantois.
Como foi o período da pandemia para você?
Quase desesperador! Ainda hoje estamos sofrendo efeitos da pandemia, psicológica, emocional e financeiramente. Nós, artistas, fomos a primeira classe profissional a ser paralisada, no entanto, fomos e estamos sendo a última a conseguir restabelecer as atividades. Para mim, especificamente, foi uma loucura, porque eu estava fazendo dois espetáculos, Chiquita com Dendê e Surf no Caos, numa salinha pequenininha para um público de 20 pessoas, uma coisa íntima. Exatamente o extremo oposto do isolamento que a pandemia nos impôs naquele momento. Mas o público me fez companhia durante a pandemia. Uma empresa me procurou e comprou meus dois espetáculos para transmissão online aberta e gratuita. Um respiro! Depois, vieram os editais da Lei Aldir Blanc, que me permitiram produzir uma série deliciosa de 12 saraus, revisitando e adaptando roteiros de Aninha Franco da época dos saraus do Theatro XVIII. Foi divertido e emocionante, principalmente, porque desse projeto participou muita gente. Muitos colegas, artistas, técnicos... Nós nos salvamos! Eu saí de uma sala onde cabiam 20 espectadores para esse espaço universal de milhares de olhos e bocas – e também de abraços virtuais.
Nos últimos anos, a classe artística tem sido sistematicamente atacada. O que é preciso para garantir o direito à arte no Brasil?
Falar sobre arte num país em que a educação não é valorizada chega a ser 'artigo de luxo' para o cidadão comum. Soa estranho ser democrático na cultura enquanto a mesa posta, a alimentação segura, é um privilégio para poucos. E aí vem a confusão, a conversa torta sobre a Lei Rouanet 'feita para enriquecer artistas'... Muita gente realmente não compreende – alguns, talvez, nem queiram – que há projetos que simplesmente não sobrevivem sem apoio do Estado. E isso está na voz da nossa Constituição Federal de 1988. Grandes companhias de balé e de teatro e orquestras são projetos que instrumentalizam o acesso à dignidade, à memória, ao reconhecimento e construção de identidades. Eles produzem senso de pertencimento, colocam todo mundo ativo e pensante e oportunizam trabalho e renda. Mas um projeto dessa dimensão que é a cultura, em que se insere a arte como ferramenta, não pode ser executado exclusivamente por editais. É desproporcional! Propostas de trabalho interessantíssimas e inteiramente pertinentes não são contempladas. Existimos no contexto de uma lógica de mercado perversa, mas também convivemos com políticas públicas culturais míopes e não efetivas. Localmente, a verdade é que o teatro profissional baiano foi totalmente esquecido e desvalorizado pelos órgãos de cultura. Tem muito artista sem trabalho, sem oportunidade, sem perspectiva. É preciso esforço, trabalho, para reposicionarmos o teatro baiano e o recolocarmos no seu devido lugar, lugar de destaque no cenário do teatro brasileiro. Um esforço conjunto, de gestores públicos responsáveis, da iniciativa privada sensível e antenada, dos artistas e do público.
Você tem se dedicado a Chiquita com Dendê, que é um tratado íntimo sobre a Bahia. Como esse recital tem mexido com a sua relação com a Bahia?
Olha, desde muito cedo, eu recebi convites para morar no Sudeste. Nunca quis. Se a Bahia, onde nasci, me escolheu, eu a escolhi de volta. Esta terra, mesmo tão maltratada, continua tendo seus encantos e fazendo suas seduções. Sabe aquela história do jeito de corpo que canta Caetano Veloso? Do cheiro de dendê no ar, do som dos tambores que faz um borogodó na alma, da água morna de sua baía e das saias brancas se arrastando pelo chão dos terreiros de Axé. Gosto de cantar e contar minha terra. Gosto de sempre fazer alguém se encantar por ela. Eu conto a Bahia assim. Mas não vou mentir para ser porreta, de um tempo para cá, por causa de trabalho, cheguei a pensar na possibilidade de me mudar. É que eu ponho fim ao pensamento, e acabo me dizendo “afinal, alguém tem que ficar!”, e vou ficando.
Mas, muitos talentos da arte têm saído da Bahia para ser reconhecidos em estados com mercados mais aquecidos. Falta para a Bahia reconhecer a própria potência?
Baiano gosta de baiano. A população prestigia as produções e os talentos locais. A questão é que as produções em larga escala acontecem fora daqui. O audiovisual é uma indústria. Criativa, mas indústria. E essa demanda está centralizada, ainda, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Eu passei o ano passado quase todo no Rio trabalhando. Aqui em Salvador, há décadas, só fui convidada para fazer um único trabalho, Ode, de Diego Lisboa. Ou seja, a Bahia, com sua vocação e seus profissionais, podendo se tornar mais um polo ativo da produção audiovisual, carece disso. Para o teatro, é preciso empreender os mesmos esforços. Precisamos e queremos uma Companhia de Teatro na cidade, a exemplo da Orquestra Sinfônica e do Balé.
Você publicou no seu perfil no Instagram que Justiça 2 foi um projeto desafiador. Como foi esse processo?
É desafiador porque não tenho intimidade com linguagem dramatúrgica e cênica da televisão. E, principalmente, porque Justiça é um projeto já consagrado pelo público e sublinhado pela crítica especializada; que tem o texto incrível da Manuela Dias, com atores muito talentosos. É pouco? Não é. E tudo faz parte do todo. Chegar pela primeira vez aos Estúdios Globo assusta, mesmo para uma atriz de 62 anos com a minha experiência – mas em teatro, pouquíssima na TV. O significativo disso tudo é que fui bem recebida por todos, aprendi muito e estou vendo o bom resultado do trabalho que fiz.
Como foi a preparação para viver Ingrid? Como foi se aprofundar num assunto que é tão importante para a sociedade como o abuso?
Quando li o roteiro, cheguei a ficar enojada com uma das cenas. Comecei a prestar mais atenção nas histórias sobre abusos que eu ouvia ou lia, e também a fazer anotações a respeito. É espantoso sabermos desses casos por pessoas estranhas ao nosso convívio, pelo noticiário, ou comentários nas filas e antessalas de espera. São as histórias anônimas. Na reunião com Manuela e Gustavo [Fernandez, diretor artístico da série], pensando a construção da personagem, falamos das tias de Nelson Rodrigues. Eu fiz uma tia de Nelson, em Toda Nudez Será Castigada, que me deu meu primeiro prêmio no teatro, e que agora me dá alguma coisa para Ingrid: uma mulher amarga, preconceituosa, meio cafona, fofoqueira, avarenta, moralista... e também solitária, totalmente dependente financeira e emocionalmente, infeliz. Miseravelmente humana. Uma 'mulher de bem' que a todo custo quer manter o verniz da 'família de bem'. No ambiente doméstico, onde lamentavelmente se abriga a maior parte dos casos de abusos e estupros, também está em um emaranhado dessas sutilezas relacionais e existenciais. E como dizer tudo isso com poucas palavras, ou revelar nuances em tão poucas cenas? Pedi ajuda! Acionei o ator João Miguel. Eu fazia a cena, chegava no hotel, enviava mensagem para João: "Jão, consegui” ou “Jão, acho que hoje eu perdi a cena”. E ele conseguia me acalmar e recalcular a rota.
Você filmou recentemente Máscaras de oxigênio (não) cairão automaticamente, para a HBO Max, que está prevista para ser lançada este ano. Como foi o projeto?
A série se passa na década de 1980, naquele período em que as pessoas começaram a adoecer e pouco se sabia sobre o HIV. Minha personagem é a Sonia, uma 'mulher do lar', costureira, casada com um homem que contraiu AIDS e a contaminou. Doente, pelo vírus e pela traição do marido, Sonia tem uma reviravolta e redescobre a vida. É uma personagem incrível. Foi muito prazeroso trabalhar com Marcelo Gomes e Carol Minêm [diretores da série]. E veja que interessante: Sonia é totalmente diferente de Ingrid. E fomos compondo as duas, eu com João Miguel, ele em São Paulo e eu em Salvador.
Fale um pouco sobre os próximos projetos. O que você está prevendo para o fim deste ano e ano que vem?
Estou desenvolvendo um projeto bacana com meu repertório de teatro. E também preparando um espetáculo inédito, que fala das coisas bonitas do Brasil. A gente tem tanta coisa boa para falar sobre nós mesmos. E quero viajar pelo país com essa peça. Levá-la às metrópoles e às cidadezinhas. Do Norte ao Sul, especialmente pelo Nordeste. Sei que vai ser surpreendente, como foi das outras vezes. E que as pessoas tornarão a dizer: “Mas de onde vem essa atriz? Como eu não te conhecia?”. E eu vou responder: “Como é que eu não conhecia vocês?”.
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