MUITO
História viva: 189 anos da Revolta dos Malês
Os quatro homenageados estavam entre as dezenas de homens negros que se reuniram na noite de 24 de janeiro de
Por Gilson Jorge
Nesta terça-feira, 14 de maio, acontecem dois eventos em homenagem a quatro homens negros que foram executados a tiros em 1835, no Campo da Pólvora, pelo Estado da Bahia, em função do envolvimento no principal levante contra a escravidão no Brasil, a Revolta dos Malês, que no ano que vem completa 190 anos.
No próprio Campo da Pólvora, às 14h, a Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen) realiza um ato relembrando os executados: o liberto Jorge da Cruz e os escravizados urbanos Gonçalo, Joaquim e Pedro.
Cinco horas mais tarde, às 19h, o Fórum de Entidades Negras da Bahia (Feneba) realiza, na Rua Alaíde do Feijão, antiga Rua das Laranjeiras, uma Roda de diálogo sobre a execução dos mártires da Revolta dos Malês.
Os quatro homenageados estavam entre as dezenas de homens negros que se reuniram na noite de 24 de janeiro de 1853, no sobrado de número 2 da Ladeira da Praça, de onde planejavam sair no dia seguinte para derrotar a elite branca e escravagista com um ataque surpresa, com o reforço de escravizados vindos do Recôncavo, e tomar o poder.
Mas a informação vazou e chegou até às autoridades. Forças de repressão foram enviadas ao imóvel e os combates começaram na própria Ladeira da Praça, espalhando-se pelo centro de Salvador, cidade que, à época, contava com cerca de 65 mil habitantes, dos quais 80% eram negros. Mas os malês, como se chamavam os nagôs islamizados, se concentravam nas imediações da Ladeira da Praça, na Barra e no Corredor da Vitória.
A importância da Ladeira da Praça na revolta levou o historiador João José Reis a sugerir, em 2013, em artigo escrito para o repertório da Unesco sobre Lugares de Memória da Escravidão, que o logradouro passasse a se chamar Ladeira dos Malês. O texto foi republicado no site Salvador Escravista e chamou a atenção de lideranças negras.
Em 2022, a vereadora Marta Rodrigues deu entrada em um Projeto de Lei alterando o nome do logradouro para Ladeira Revolta dos Malês. Aprovado pela Câmara de Vereadores, o projeto foi sancionado pelo prefeito Bruno Reis no último dia 2 de maio.
Mas o que haveria acontecido à Bahia se os planos dos malês não tivessem sido denunciados? A historiadora e antropóloga Lisa Earl Castillo ressalta a força do movimento e avalia que, não fosse a delação, a revolta teria consequências sérias para a população senhorial, os brancos que mantinham negros escravizados.
Um dos pontos importantes da revolta é que, apesar da liderança muçulmana, negros de diferentes nações estavam envolvidos na revolta, a maior e última de uma série de rebeliões negras iniciada na Bahia em 1807, três anos depois da vitória dos negros haitianos na luta contra os colonizadores franceses.
Os movimentos de revolta na Bahia começaram ainda com os haussás, o que levou os traficantes de escravizados a buscar outras etnias. Mas os nagôs islamizados, os malês, também tinham tradição guerreira e um bom senso de organização.
"Houve um grande planejamento que envolveu gente escravizada e liberta de Santo Amaro também e africanos de várias etnias", destaca a pesquisadora.
Presidente do Fórum de Entidades Negras da Bahia, Raimundo Bujão destaca a estratégia adotada pelo movimento: "A Revolta dos Malês acontece justamente na véspera de uma festa que acontecia no Bonfim, a Festa de Nossa Senhora da Guia. Toda a aristocracia da época se deslocava para lá. Eles queriam pegar a cidade desguarnecida para ocupar e tomar o poder".
Mas, em caso de vitória dos rebelados, haveria a possibilidade de implantação de um califado islâmico com restrição à liberdade das mulheres e perseguição ao Candomblé?
Califado
Crítico à mudança do nome, o historiador Jaime Nascimento faz restrições ao movimento liderado por muçulmanos. "A revolta dos malês foi um erro ideológico, político e estratégico, devia ser cancelada. Sharia islâmica, lá ele", afirma Jaime.
Para o historiador, os malês escravizados em Salvador queriam provocar uma sublevação com o intuito de instalar um califado, com um território de ideologia exclusivamente muçulmana.
"Não haveria liberdade religiosa alguma. Isso não é uma prática do Islã. Em todo e qualquer país governado por muçulmanos, as pessoas têm que se voltar para o Islã, para Meca", afirma Jaime Nascimento.
O pesquisador defende a tese de que os negros que não seguissem o islamismo seriam mantidos escravizados e a implantação do culto monoteísta redundaria igualmente na perseguição ao Candomblé.
"Lá, no passado, e hoje, existem muçulmanos negros na cidade do Salvador. Eles não se misturam, não querem contato. Eles iriam submeter todos os outros negros e obrigar a conversão. O povo do Candomblé seria o mais afetado, porque os católicos iriam lutar e as forças do império brasileiro viriam em socorro", afirma o pesquisador.
A propósito, as lideranças do movimento se comunicavam em árabe, o que impedia a compreensão plena de suas intenções.
Lisa Earl Castillo discorda dessa visão: "O que transparece nos autos, na minha opinião, é mais um efeito de reverter o quadro racial na cidade, de dar aos negros o controle. E, nesse sentido, deslocar essa minoria branca, que controlava praticamente tudo”.
A historiadora refere-se aos autos da investigação pela polícia, com interrogatórios dos réus e depoimentos de testemunhas, disponíveis no Arquivo Público do Estado da Bahia.
Especular
Autor de Rebelião Escrava no Brasil, o primeiro livro inteiramente dedicado ao levante dos malês em 1835, João José Reis afirma que os rebeldes não deixaram pistas sobre qual sociedade substituiria a da Bahia em 1835, caso vencessem, mas faz considerações a respeito.
"Especular sempre é possível, desde quando a gente não considere totalmente ruim se perder num beco sem saída. Como a liderança era muçulmana, imagino que ela tentaria reproduzir uma sociedade na qual tivessem mais voz do que africanos aderentes de outras religiões, mas sabiam que não poderiam governar sozinhos", pontua o historiador.
João Reis ressalta o fato de que a própria revolta não foi 100% malê, com muitos nagôs não malês participando: "Esse tipo de aliança acontecera também na África. Enfim, não eram fanáticos, como os ignorantes gostam de descrever todo e qualquer muçulmano, independentemente de tempo e espaço em que viveram, nas culturas e sociedades nas quais estavam inseridos".
Reis afirma que nenhuma religião, e sobretudo nenhum crente, existe "solto na metafísica espiritual" e que os religiosos fazem parte de sociedades concretas e têm experiências complexas com elas.
"Quando conquistaram a Península Ibérica, por exemplo, os muçulmanos demonstraram ser bem mais tolerantes do que a Igreja Católica, que tão logo os expulsou de lá, cuidou de persegui-los e a outros diferentes, através da Inquisição", assinala o historiador.
O historiador defende, por exemplo, que na África do século 19, o Islã dos malês era muito tolerante. "Os devotos dos orixás e eles conviviam pacificamente. Na Bahia, os malês conviviam pacificamente com negros adeptos do candomblé e do catolicismo, estes últimos reunidos nas irmandades de pretos. Essa coexistência pacífica foi reproduzida do lado de lá do Atlântico nas comunidades dos africanos retornados da Bahia", afirma o historiador, citando comunidades que se formaram em cidades como Lagos (Nigéria), Uidá, Porto Novo (República do Benin) e Agué (Togo).
"Pierre Verger escreveu sobre isso, e agora a historiadora Lisa Castillo está revisitando o tema com nova e cuidadosa pesquisa. Eu também escrevi um pouco a esse respeito no meu livro sobre a Revolta dos Malês", declara o historiador.
Sistema sinistro
De acordo com João Reis, os africanos circulavam por várias religiões na Bahia oitocentista. "Eles seguiam, mas não só eles, o princípio africano de acúmulo de energias espirituais de origem diversa, tudo que pudesse ajudá-los a atravessar o sistema sinistro do tráfico e da escravidão", declara o historiador.
Ele também assinala que, no núcleo duro dessas religiões, os seus sacerdotes procuravam manter uma certa pureza doutrinária, mas que entre os adeptos havia menos rigidez: "Eles frequentavam cerimônias para Orixás, viam a sorte com os babalaôs, usavam amuletos malês".
Quanto ao papel da mulher muçulmana na Bahia daquela época, João Reis aplica a mesma lógica. "Há relatos de que elas eram muito independentes nas comunidades malês que se formaram ao longo do século 19 na Bahia, em Pernambuco ou no Rio de Janeiro. Elas eram mais flexíveis do que os homens quanto às práticas e a doutrina, com frequência nem muçulmanas eram, embora seus maridos o fossem", destaca.
"Foi esse tipo de "sociedade malê" que o imã turco Al-Baghdadi, por exemplo, descreveu em meados da década de 1860, quando visitou o Brasil".
Para ele, a autonomia das mulheres, que incluía a sofisticação intelectual, existia desde a África. "Muçulmanas ou não, as mulheres dominavam os mercados locais e imensos aspectos das práticas religiosas. Algumas muçulmanas foram poetas, escritoras e conselheiras políticas", declara o historiador.
Autora do projeto de mudança do nome, a vereadora Marta Rodrigues defende a alteração e afirma que o nome Ladeira da Praça não diz muita coisa, além da conexão entre a Praça Municipal e a Praça dos Veteranos.
"Se aconteceu um fato histórico na ladeira, esse ato heroico, por que não alterar?", questiona a edil, que mantém vínculos com a chamada Bancada do Feijão, as lideranças negras que se reúnem periodicamente no Bar e Restaurante Alaíde do Feijão.
A mudança do nome da Ladeira da Praça para Ladeira Revolta dos Malês não é a primeira homenagem soteropolitana à maior rebelião negra do país. Já existe a Rua Revolução dos Malês. Naturalmente, no bairro da Liberdade.
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