Histórias e belezas do subúrbio | A TARDE
Atarde > Muito

Histórias e belezas do subúrbio

Publicado domingo, 03 de janeiro de 2021 às 08:44 h | Atualizado em 03/01/2021, 08:55 | Autor: Yumi Kuwano e Adriano Motta
Antiga fábrica de tecidos São Braz, em Plataforma | Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE
Antiga fábrica de tecidos São Braz, em Plataforma | Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE -

O Subúrbio Ferroviário de Salvador é um território com lindas paisagens, pleno de história, desconhecido de boa parte da população e, claro, por turistas. São espaços que quem mora, conhece ou admira a região luta para serem valorizados.

No início da colonização, portugueses se instalaram ali e foram construindo igrejas e engenhos. Séculos depois, vieram casas de veraneio e hoje o local é associado à pobreza e à marginalidade.

Mesmo com todas as transformações e avanços ao longo dos anos, um aspecto que ainda preocupa quem mora na região são as dificuldades enfrentadas diariamente por quem precisa se deslocar para o centro de Salvador.

O transporte ainda se mostra muito precário e ineficiente para a população local. Para se deslocar com destino ao centro, a trabalho ou estudo, é rotina ter que sair de casa com muita antecedência. À noite, então, não é nada fácil.

Mas essa realidade pode mudar em breve. A região contará com o VLT (Veículo Leve de Transporte), que vai substituir os históricos trens da região. Com os trilhos funcionando desde o fim do século 19, o trem tornou-se um marco para os suburbanos.

O caminho dos trilhos, da Calçada até Paripe, movimentou os moradores por décadas e também é garantia de um passeio turístico para quem gosta de apreciar belas paisagens.

O VLT, cujas obras devem iniciar em fevereiro de 2021, com conclusão prevista após 24 meses, chegará com a promessa de melhorar o transporte de mais de 600 mil moradores, com um trajeto maior, de 20 quilômetros: do bairro do Comércio até a Ilha de São João, no município de Simões Filho.

Historicamente, eram tropas de cavalo que levavam as mercadorias do subúrbio para o centro urbano. Depois, surgiu o sistema marinho e, após 1870, com a construção da estrada de ferro, o novo modal foi visto como algo que inovaria e contribuiria para o desenvolvimento da região.

No entanto, por causa do alto custo da obra, pessoas pobres não puderam utilizar o meio de transporte logo no início. E quando se fala de ônibus, só em 1990 todas as localidades do subúrbio começaram a ter coletivos, porque o trem só contempla a parte litorânea.

Com o passar do tempo, nove bairros principais passaram a formar o subúrbio: Plataforma, Itacaranha, Ilha Amarela, Cabrito, Escada, Periperi, Alto de Coutos, Paripe (o maior e mais antigo da região), e Fazenda Coutos. Atualmente, a prefeitura-bairro da região é responsável por 12 bairros e três ilhas.

O Subúrbio Ferroviário de Salvador tem registros de ocupação antes mesmo da fundação oficial da cidade, desde 1544, de acordo com o historiador Augusto Fiúza. Como a cidade era dividida em freguesias, no subúrbio duas se destacavam: a Nossa Senhora do Ó de Paripe e a de São Bartolomeu de Pirajá.

Igrejas e fábricas

A primeira igreja do subúrbio foi a Nossa Senhora do Ó, que data de 1560 e foi inicialmente chamada de Santa Cruz das Torres. Hoje, está em ruínas. Mas muitas ainda continuam imponentes, como a de São Bartolomeu, Nossa Senhora da Escada e a de São Tomé de Paripe.

A Igreja de São Tomé proporciona uma vista incrível para a orla – e também para a divisão de de São Tomé com Inema, a faixa de praia ocupada pela Marinha na qual os moradores não podem nem pisar nem pescar e que ganhou fama por hospedar presidentes.

Outra igreja bastante tradicional é a de Nossa Senhora da Escada, que ajudou a batizar o bairro. Ela recebeu o jesuíta José de Anchieta em 1556, quando ele veio se recuperar de problemas de saúde.

Na Igreja (e no bairro) também foi rodado a parte final do filme Tocaia no Asfalto, dirigido por Roberto Pires, em 1962. Na produção, é possível ver a igreja antes da sua reforma.

Fiúza afirma que até o final do século 19 a região ainda era completamente rural. Foi mais ou menos quando o Brasil deixou de ser Império que o desenvolvimento começou. Os empreendimentos que se instalaram no subúrbio foram fundamentais para esse processo.

O primeiro foi a São Braz, fábrica de tecidos construída em 1870, onde um dia existiu um engenho de açúcar em Plataforma, que contribuiu para o aumento da população e levou eletricidade para a região do subúrbio.

A partir de 1932, pertenceu ao industrial Bernardo Martins Catharino. Outras fábricas chegaram à região que foi o primeiro sítio industrial do país.

Pessoas em busca de emprego chegaram por lá para trabalhar nas fábricas e, posteriormente, no Porto de Aratu, ativo desde 1960. Nessa época, o local ainda preservava características de veraneio.

“Com a consolidação do porto, 10 anos depois, o subúrbio deixa de ser uma região boêmia da aristocracia da cidade e passa a ser ocupada pela população”, diz o historiador.

Antes habitada apenas na parte litorânea, no fim do século 20 começa o que o historiador costuma chamar de ‘ocupação ordenada’.

Ele não concorda com o termo ocupação desordenada, porque a região cresceu oferecendo o que outros locais de Salvador não oferecem para a população negra: oportunidades.

Mudanças

A educadora Joseni Marcelino, 60, ou tia Pretinha, como é conhecida pelas crianças que brincam na Praça do Sol, em Periperi, veio de longe, do Paraná, para morar com a família em Dias D'ávila. Mas foi parar no bairro para se banhar nas águas da Baía de Todos-os-Santos, seguindo recomendação médica para curar uma alergia que feriu todo o seu corpo: “E curou mesmo, graças a Deus”.

Moradora de lá há 55 anos, viu nesse tempo tudo mudar: a Avenida Afrânio Peixoto, a Suburbana, inaugurada em 1970, que vai da Calçada até Paripe; a feira de Periperi, que acontecia na praia, e o Rio Paraguari encher e invadir as casas.

“Aqui tudo era mato. De lá para cá eram casas mínimas, uma ou outra. Onde fica aquele mercadinho [aponta] era uma plantação de aipim, tudo era morro”, lembra.

A nostalgia da época vem associada à segurança de então. “Corríamos dos gansos que davam carreira na gente. A gente dormia com a porta aberta, as crianças brincavam na rua até tarde”.

Com o crescimento do bairro e a urbanização, como em outras localidades da cidade, a sensação de insegurança é grande. E, para ela, os acontecimentos noticiados na mídia tornam o local ainda mais perigoso do que, de fato, é.

“As pessoas que moravam em outras áreas vinham aqui, que era chamado de Barreiro, como se fosse o quintal para comprar aipim para tomar café de noite. Dá para acreditar?”, indaga.

Por ter acompanhado toda essa transformação, Joseni acha que tudo evoluiu rápido demais. O comércio, por exemplo, era só na Calçada mesmo. E era uma correria. Ela pegava o trem com ‘mainha’ e na volta tinha que colocar as compras no vagão correndo e descer correndo também enquanto as portas estavam abertas.

Nesse tempo, a Praça do Sol também foi inaugurada, o famoso relógio do sol mudou de lugar porque crianças costumavam brincar em cima dele e já teve peças de bronze furtadas. A drenagem do rio Paraguari valorizou a localidade, que deixou de ser o Barreiro, um lugar que alagava e ninguém queria morar, e atraiu novos habitantes.

Planta de junco

Durante sua graduação, Marcos Venicios Marcelino, filho de Joseni, tinha um grande desejo de fazer um trabalho sobre o bairro onde nasceu e foi criado. Publicado pela Editora Uneb, o livro se chama Periperi: planta de junco que tem história e foi o seu trabalho de conclusão de curso de jornalismo em 2012, com Ana Claudia Siqueira.

“O livro trata do resgate do passado por meio de relatos dos antigos moradores”, conta. O título faz referência ao nome do bairro que se tornou Periperi por causa do povo originário, os Tupinambá, que habitava no território. Peri significa planta aquática de junco em tupi-guarani, facilmente encontrada na região. Como essas plantas eram grandes, daí a repetição da palavra, como regra da língua.

Apesar de ter muito conhecimento porque seus avós foram uns dos primeiros moradores do bairro, Marcos queria ir mais a fundo: “Eu tinha muita curiosidade em saber mais sobre o lugar que os meus avós ajudaram a construir. Aspectos como transporte, as ruas, o rio, tudo isso me interessava”.

Praias

É inegável que as praias sempre foram os principais atrativos do Subúrbio Ferroviário, embora não sejam os únicos. Como a região é banhada pela Baía de Todos-os-Santos, a maioria dos seus bairros conta com uma praia para chamar de sua. Plataforma, Praia Grande, Itacaranha, Lobato, Periperi... Cruzar a Avenida Suburbana é garantia de visões extraordinárias ao longo dos seus 14 km de extensão – sem contar com as que não ficam dentro da região cortada pela avenida.

É o caso de São Tomé, que é uma das mais conhecidas e, certamente, uma das mais tradicionais do Subúrbio. Inclusive São Tomé foi cenário para uma das obras mais famosas de Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos, um dos locais em que a protagonista passa a lua de mel.

São Tomé também foi cenário do primeiro filme derivado do livro, de 1976. O sobrado onde foram feitas as gravações ainda está na região, conservado, embora não esteja aberto à visitação.

Jorge Amado descreveu a praia como um lugar paradisíaco. Mas, de acordo com Augusto Fiúza, quem lê tal descrição no romance não imaginaria que lá no século 16, São Tomé era uma das três fazendas que se estendiam sobre o que chamamos hoje de Paripe.

A tranquilidade e a calmaria das suas águas contrasta com o intenso movimento na orla. Em São Tomé, à beira-mar, há muitos bares, botecos, chácaras e sítios próximos para aproveitar um passeio elaborado.

Um dos que vivem essa forte movimentação da praia é o vendedor e presidente da Associação de Pescadores de São Tomé, Mário Gonzaga, 61. Ele trabalha em São Tomé há mais de três décadas, e com seu barco a remo ainda hoje pesca e se orgulha de pegar corvinas, peixes que são raros de aparecer na região.

Ele também tem sua tenda, uma das mais tradicionais da praia, que toca músicas de Unha Pintada a louvores evangélicos, a gosto do freguês. “Aqui é uma praia do povão”, resume ele, que prepara uma mariscada agridoce que faz bastante sucesso. “Com frutos do mar, sei fazer de tudo”, orgulha-se.

Na opinião de seu Mário, São Tomé ainda carece de estrutura para atender uma demanda maior, como chuveiros e banheiros. Além do problema da criminalidade e as ações policiais que, acredita, afastam as pessoas da praia.

O grande movimento de turistas nos últimos dois anos, de acordo com Mário, está na Praia das Neves, que é acessível por São Tomé por meio de barcos que fazem a travessia para a Ilha de Maré em menos de meia hora.

A praia tem esse nome por conta da Igreja de Nossa Senhora das Neves, que foi fundada em 1552, onde era um engenho. Assim como São Tomé, a praia das Neves também conta com águas rasas e calmas. Na região da ilha ainda existem as praias de Santana, Itamoabo, Botelho, entre outras.

Nascido na ilha, Mário vê também os pontos negativos trazidos por essa procura dos turistas. “Essa divulgação virou uma obsessão. Os moradores sofrem nos fins de semana. Os canoeiros querem cobrar mais caro mesmo para quem é nativo da ilha. Hoje a vida é essa. Na ilha de Maré, só existe a Praia das Neves”, lamenta.

Publicações relacionadas