MUITO
Hoje é dia de circo
Por Tatiana Mendonça

No próximo mês, a Escola Picolino de Artes do Circo celebra 30 anos. Em lugar de festa, anuncia a transformação de sua sede em uma arena a céu aberto
O normal é que os circos se movam, lonas, artistas e tralhas serpenteando para onde o respeitável público estiver. O Picolino, ao contrário, fincou-se. Está há tanto tempo assentado na orla de Pituaçu que é como se fizesse, desde sempre, parte da paisagem. Nos próximos meses, no entanto, irá se mudar, mas sem sair do lugar. Neste começo de setembro, a Escola Picolino de Artes do Circo completa 30 anos e vai virar uma arena a céu aberto, com vista para a lua e o mar.
O espaço será inaugurado em outubro, com um show ainda secreto. A ideia é que fique assim, despelado, até que consiga uma nova lona. No ano passado, a escola promoveu uma campanha na internet para reparar os estragos causados na cobertura pelo mau tempo e promover uma reforma geral, mas só conseguiu arrecadar R$ 24 mil dos R$ 138 mil previstos.
Nesse meio tempo, o cirquinho, que fica ali ao lado, será reestruturado para abrigar as aulas nos dias de chuva. Hoje, 70 crianças e adolescentes aprendem malabares, acrobacia, monociclo, trapézio e arame no Picolino. O trabalho é mantido pelo programa Conexão Vida, do projeto italiano Agata Smeralda. A parceria já dura 17 anos e é a única firmada pela escola hoje. Sem apoio do poder público e com poucos alunos nas turmas particulares, o Picolino assemelha-se hoje a um palhaço com o rosto desbotado. Dá certa tristeza de ver.
Anselmo Serrat, 67, caminha pelo circo como se estivesse em casa. E está. Por alguns dias na semana, ele dorme ali, num quartinho embaixo da arquibancada. É o diretor do Picolino e também um dos seus fundadores, ao lado de Verônica Tamaoki, com quem era casado.
Ele está negociando com uma empresa cultural para transferir a gestão do Picolino, com a diretriz de que o transforme num espaço de entretenimento, com variadas aulas durante o dia (circo, música, capoeira) e com programação musical à noite ou aos fins de semana. "Esse espaço é uma conquista para a cidade de Salvador e precisa ser ocupado com teatro, dança, música, exposições". Se o plano vingar, será como se o Picolino estivesse voltando às origens, três décadas depois.
Saltimbancos
Quando vieram de São Paulo para Salvador, em 1984, depois de um curso na Academia Piolin de Artes Circenses, a primeira escola de circo do Brasil, Anselmo e Verônica passaram a montar aqui as apresentações da trupe Tapete Mágico. "Trabalhávamos como saltimbancos nas praças, ruas, praias, condomínios... Qualquer lugar era um bom lugar", lembra Verônica, que hoje coordena o Centro de Memória do Circo da prefeitura de São Paulo.
Ao fim de cada espetáculo, uma ruma de meninos ficava por ali querendo brincar de fazer circo - entre eles, Luana Serrat, filha do casal, que nasceu cabriolando e aprendeu a andar de monociclo antes de saber se equilibrar em uma bicicleta.
Os alunos já existiam, faltava só criar a escola. Juntos, eles compraram uma barraca em Itapuã e passaram a oferecer ali oficinas circenses. No domingo aconteciam as apresentações, durante a semana, as aulas. Acabaram conhecendo os donos do mítico Troca de Segredos, em Ondina, e na semana seguinte já estavam instalados no circo. Entre uma aula e outra, organizavam shows musicais de artistas como Margareth Menezes e Luiz Caldas, num modelo similar ao que pode se repetir agora.
As turmas de artes circences também pipocavam no Troca de Segredos. "O que nos surpreendeu foi a aceitação por parte do público, o que levou em pouco tempo a dobrar, triplicar, quadruplicar o número de alunos", conta Verônica. As crianças, de classes média e alta, pagavam pelo curso, o que aliviava as finanças da dupla, que até então vivia de passar o chapéu.
Vendo como o comportamento dos meninos mudava quando pisavam no picadeiro, com o medo dando lugar à confiança à medida que caminhavam sobre o arame ou se aventuravam no trapézio, Anselmo quis estender o trabalho para aqueles que não podiam bancar as mensalidades. Procurou o Juizado de Menores (hoje Juizado da Infância e Juventude) e propôs uma parceria. Talvez quisesse provar que até os jovens mais "problemáticos" poderiam recuperar a disciplina e, principalmente, a alegria.
Nesta primeira incursão no mundo da ação social, o Picolino recebeu dez adolescentes infratores. "Era incrível o resultado que o circo provocava neles", conta Anselmo. A ação, infelizmente, durou só um ano. Ele foi em busca de outras organizações, mas volta e meia ficava frustrado pela forma brusca com que as parcerias eram interrompidas. Sentia falta de desenvolver um trabalho mais duradouro, consistente.
Dois mundos
Quando cansou de procurar, foi procurado. O Projeto Axé, criado em 1990, apareceu no Picolino com a ideia de que meninos e meninas saíssem das ruas de Salvador diretamente para o picadeiro. Edi Carlos Souza, 36, mais conhecido como Binho, fez parte da primeira dessas turmas. Ele tinha parado de estudar e vendia balas nas Sete Portas quando foi abordado por um dos educadores do Axé com uma pergunta para a qual só cabia uma resposta. Era claro que ele queria ir ao circo.
Binho tinha 11 anos quando pisou no Picolino pela primeira vez. Mais que os conhecimentos e habilidades de técnicas circenses, ganhou a certeza de que o circo era o lugar onde queria estar para sempre. Virou instrutor e nunca teve outro emprego, nem tem vontade. "Aqui, a gente trabalha rindo, brincando, de bermuda, descalço... No Picolino, eu me tornei um cidadão. Ganhei a consciência do que é ser livre".
Como é de se imaginar, nem todo mundo recebeu bem essa ideia de juntar crianças pobres com os filhos da elite soteropolitana. Alguns pais ficaram ressabiados, mas Binho lembra que nas aulas não havia qualquer preconceito ou divisão. "Menino é menino". Verônica conta que ficou impressionada de como os "bolsistas" tinham certa "superioridade corporal". "O que as crianças de classes média ou alta levavam meses para começar a executar, os meninos em situação de risco levavam apenas alguns dias ou horas. Isso fazia com que os mais ricos olhassem com respeito para os mais pobres".
Anselmo entendeu logo que eram esses meninos que dariam continuidade ao Picolino. "Os adolescentes de classe média saíam aos 14 anos, já preocupados com o vestibular. O Picolino acabava sendo uma terapia, uma coisa gostosinha... Para os outros meninos, não. Era uma questão de vida ou morte". Prova disso é que muitos deles se profissionalizaram e seguem dando aula por tudo que é canto do Brasil.
Outros foram ainda mais longe. Jailton Carneiro tinha 12 anos quando foi participar de um projeto da prefeitura de Salvador em parceria com o Picolino. Já tinha visto muitos amigos morrerem e serem presos, a mãe morria de medo de que ele fosse pelo mesmo caminho. No circo, descobriu que podia voar e apaixonou-se pelo trapézio. Como um caminho natural, passou de aluno a professor.
Depois de oito anos no Picolino, foi convidado para dar aulas em São Paulo e lá fez um teste para integrar a trupe do Cirque du Soleil, um dos maiores do mundo. Driblou o nervosismo e conseguiu ser aprovado. Jailton participou por nove anos do espetáculo Quidam. Em 2009, veio se apresentar em Salvador e viveu aquela emoção indescritível de brilhar entre os seus. Hoje, Jailton mora na Suécia, onde dirige ao lado da mulher uma escola de circo.
Apesar da distância, mantém o Picolino por perto. "Tudo que aprendi lá foi muito importante para mim. Sempre tive orgulho do meu berço. A Escola Picolino é um patrimônio cultural de Salvador. É muito importante que permaneça viva para seguir fabricando artistas e cidadãos". O Picolino já montou 29 espetáculos. Foi a primeira escola de circo do Nordeste e a terceira do Brasil. "Ele inaugura uma nova fase na história do circo nordestino, que era transmitido de geração a geração, de pai para filho", diz Verônica.
O ator Alê Casali, do premiado espetáculo O Sapato do Meu Tio, entrou no Picolino como um "clown" meio metido a besta, em 2000, e cinco anos depois saiu de lá assumidamente palhaço. "O circo completou minha alma e meu treinamento como artista. Consolidou e determinou minha escolha para toda a vida", conta Alê, que montou uma companhia circense no Capão, onde vive agora. Mas sente que também tem outro lar. "Toda vez que passo na frente do Picolino, falo imitando o E.T. do filme: 'Minha casa', com uma saudade que sei que nunca irá se acalmar".
Circo rural
Apesar de estar há 19 anos em Pituaçu - já tendo conquistado, inclusive, o direito à terra na Justiça, por usucapião -, o Picolino também teve seus dias de itinerância. A prefeitura derrubou o Troca de Segredos, sua primeira sede, no final da década de 1980, e eles tiveram que procurar outro lugar para ir. Passaram pelo porão da Biblioteca dos Barris, onde hoje funciona o Espaço Xisto, por um bar no Rio Vermelho e pelo terreno onde funcionaria o Aeroclube.
Há um ano, Anselmo montou no Vale do Jiquiriçá, cidadezinha com pouco mais de 14 mil habitantes, a 254 km de Salvador, uma espécie de filial do Picolino, no meio do mato, com o rio passando no fundo. Ontem e hoje, 42 crianças da zona rural apresentaram o primeiro espetáculo produzido no circo rural, com apoio de um edital da Funarte. Os meninos de lá e daqui querem continuar no Picolino. Anselmo não sabe ainda de que jeito, com que recurso, mas tem certeza de que vai descobrir. Acrobacia sempre foi sua modalidade favorita.
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