MUITO
Homenagem à resistência cultural no 6º Festival Paisagem Sonora
Na variada programação do festival, estão diferentes gerações de artistas negros baianos
Por Gilson Jorge
Seis anos depois da criação do bloco Ilê Aiyê, fundado em 1974 no Curuzu, o artista visual J. Cunha foi convidado a colaborar com o primeiro bloco para negros do Carnaval baiano. Surgia, assim, de sua criatividade, o Perfil Azeviche, a máscara negra que se tornaria identidade visual do Mais Belo dos Belos. Eram tempos duros.
O Ilê se erguia como bastião da luta contra o racismo que excluía a maior parcela da população soteropolitana dos desfiles. Negros não eram admitidos como integrantes das agremiações carnavalescas. E no final da década de 1970 e início da de 1980, ainda sob a ditadura militar, insurgir-se contra a opressão era bem perigoso.
"Nós fazemos parte de uma comunidade de resistência", qualifica o artista, cujo período de colaboração com o Ilê, entre 1980 e 2005, ganhou as páginas do livro J. Cunha e o Carnaval negro, com curadoria de Danillo Barata. A obra vai ser lançada na próxima quinta, dia 5, às 18h, na Galeria Paulo Darzé, mesmo dia da abertura da exposição J. Cunha - Ritmo e Revolução.
Ambos eventos integram a programação do festival artístico Paisagem Sonora, criado há 15 anos por professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e que, este ano, aporta na capital baiana com o tema Organizações da Resistência. O festival acontece de quinta-feira a domingo, com atividades gratuitas no Museu de Arte Contemporânea (MAC), na Graça, e na Galeria Paulo Darzé, na Vitória.
Na variada programação do festival, estão diferentes gerações de artistas negros baianos que, a seu modo, são símbolos de uma cultura que resiste, como Mateus Aleluia, Mariella Santiago e Viviam Caroline, entre outros.
Contexto
Sobre a ideia de ser da resistência, J. Cunha lembra o contexto de formação do Ilê, que completa agora 50 anos, em um momento em que o Governo Federal estava longe de incentivar as artes. Bem ao contrário, o setor cultural enfrentava perseguições e censura.
"A arte era praticamente proibida aos brasileiros. A ditadura tem ódio de artista, inveja de artista. Vai dizer que vida de militar é boa? Aonde? Ficar obedecendo ordens, com aquela roupa o tempo inteiro", pondera J. Cunha, emendando que os artistas desconstroem essas condições.
Co-curadora da exposição de J.Cunha, a galerista Thaís Darzé destaca a importância de homenagear um artista que é histórico mas também atual: "Ele está no ápice de sua produção, com uma qualidade muito grande". Ela sublinha a importância da presença do artista no Carnaval negro da Bahia também como um ato que vai além da arte. "Todos os pilares, o pensamento político, o pensamento estético, estão unidos dentro dessa obra", afirma a curadora.
Quando se fala em resistência na cena cultural soteropolitana na década de 1980, é difícil contornar a força do samba-reggae, criado por Neguinho do Samba, e a sua influência perene no Pelourinho, mas também em toda a cidade.
A música que catapultou o Olodum e trouxe a Salvador os ícones mundiais Paul Simon e Michael Jackson teve grande importância na manutenção de espaços negros no Centro Histórico. Uma área da cidade que, com a reforma dos casarões coloniais na década de 1990, passou por um período de elitização. Neguinho do Samba, aliás, foi mestre de percussão no pioneiro Ilê Aiyê antes de migrar para o Olodum.
Ex-integrante da Banda Didá, a percussionista, jornalista e pesquisadora Viviam Caroline estudou o samba-reggae no seu mestrado na Ufba e tem uma compreensão teórica e empírica do movimento.
"A minha pesquisa sempre observou o samba-reggae por esse olhar, pois para além do fenômeno musical há o fenômeno social, histórico, político e geográfico. É um conjunto de transformações que a comunidade do Pelourinho vivencia a partir da organização dos tambores feita por Neguinho do Samba", pontua a pesquisadora, ex-companheira do músico e que no dia 7 participa de um seminário sobre samba-reggae com o artista sonoro e pesquisador Edbrass e a antropóloga e pesquisadora Goli Guerreiro.
Uma das mudanças no Pelourinho destacadas por Viviam é a identidade dos percussionistas, homens e depois também mulheres. "Esse corpo que toca estava dentro de uma comunidade invisibilizada, marginalizada. Essa virada de chave tem o samba-reggae como protagonista, como trilha sonora da mudança", afirma a jornalista, que desde março deste ano está de volta ao Pelourinho com a nova sede da sua banda feminina, Yayá Muxima, na Rua da Ordem Terceira. A instituição oferece também cursos e oficinas para mulheres e crianças.
Viviam, que está se preparando para fazer um doutorado-sanduíche em Nova York, também sobre o samba-reggae, aponta a singularidade desse ritmo que está absolutamente vinculado a Salvador, a partir da ressignificação de elementos da ancestralidade africana. "Eu, que acompanhei Neguinho por 16 anos, tenho certeza que no modo dele viver e sentir o ritmo era fundamentalmente um resgate de identidade. Não algo sistematizado, mas empírico. Algo que o corpo dele como líder insistia que acontecesse", reflete a pesquisadora.
Shows e debates
Tanto na parte de debates quanto de apresentações musicais, o Paisagem Sonora é fortemente marcado pela contribuição de repertório acadêmico e cultural entre um grupo de intelectuais e artistas que se relacionam há cerca de duas décadas.
O show da cantora Mariella Santiago, por exemplo, trará vestígios da convivência de Mariella com o professor e pesquisador alagoano Cláudio Manoel, um dos criadores do festival e integrante do Coletivo Pragatecno DJs, criado em 1998 e responsável pela disseminação da música eletrônica em Salvador na virada do milênio.
O repertório do show foi determinado a partir de uma residência artística que a cantora fez no Instituto Sacatar, na Ilha de Itaparica, entre março e abril deste ano. A residência desaguou no projeto Aqualtunes, que usa como referência Aqualtune, guerreira negra e uma das lideranças do Quilombo dos Palmares. "Temos essa correspondência semântica. Aqua remete a água no português. E ‘tune’ remete a canção, em inglês", explica a cantora.
O show da cantora terá duas canções compostas nesse período: Iyá Ori e Airada, além de músicas que integram o repertório de Mariella, como Eu Sou Negão, de Gerônimo, do primeiro disco da cantora, chamado Mariella. "Essa música tem a ver com a retomada da música dos anos 1980, que virou axé-music. E essa celebração dos 11 anos do Paisagem Sonora tem muito a ver com isso", declara a cantora.
O show terá duas loop stations, que são estações sequenciadoras portáteis. "Quando você insere a voz no dispositivo, muda o som da voz, brinca com ele de uma forma digital, com todos os efeitos que você pode aplicar numa guitarra, num piano. Você traz essa brincadeira para a voz", explica a cantora, que tem trabalhado na interlocução entre o analógico e o digital.
Um dos curadores do festival, o professor Claudio Manoel explica que dessa vez foi necessário pensar no formato a ser aplicado em Salvador, com uma retomada do modelo original. "Quando a gente fez a proposição dele, em 2013, havia o conceito de entender o Paisagem Sonora como algo mais complexo. Além do conceito mesmo de qualquer tipo de som na paisagem, a gente também trabalhou o tema da paisagem, entrando nos campos do áudio e das visualidades", afirma o pesquisador.
Antes da formalização como Paisagem Sonora, o grupo funcionou por quatro anos como Coletivo Xaréu, uma iniciativa do professor e artista Danillo Barata, com a participação de Claudio Manoel e dos professores Jarbas Jácome e Fernando Rabelo, todos professores da UFRB, que formaram uma banda, que posteriormente passaria a promover um festival.
Discurso
Sobre o tema do festival, As Organizações da Resistência, Cláudio destaca os 50 anos do Ilê Aiyê. "Eles que fizeram esse discurso das organizações da resistência, com a fundação de um Carnaval negro. E J. Cunha está lá presente na trajetória do Ilê como designer", assinala o professor.
Como o Paisagem Sonora, mesmo em Salvador, recusa-se a deixar para trás o Recôncavo, onde foi gestado, a curadoria trouxe para a programação o mestre cachoeirano Mateus Aleluia. "Ele talvez seja hoje o grande símbolo vivo dessa música coletiva, que vem de Os Tincoãs e da pesquisa diaspórica. Junto com ele, um outro destaque é Mariella Santiago, uma mulher negra, artista da Bahia, que sempre faz essa conexão entre os temas locais e os temas universais", afirma.
Na primeira edição do Paisagem Sonora, em 2013, o festival levou a Cachoeira e São Félix a mostra Retreks UnSung City, com artistas sul-africanos. "Essa mostra só tinha sido exibida como instalação em Joanesburgo, na África do Sul, e em Amsterdam, na Holanda. Com a parceria que a gente tinha com uma fundação holandesa, a gente conseguiu trazer essa mostra", lembra o professor, artista, curador e pesquisador Danillo Barata, ao salientar que o coletivo sempre quis aproximar o que o Recôncavo tem de potencial de artistas de outras partes do mundo.
Barata afirma que depois da pandemia o coletivo passou a pensar o Paisagem Sonora para além de um festival. "Pelo fato de estarmos ancorados em uma universidade, pensamos em ações formativas, com oficinas e seminários. Com o apoio da Funarte, ele virou um programa de longa duração", explica o professor.
A parceria entre as duas instituições foi firmada em dezembro de 2021 com o Programa de Promoção da Música do Recôncavo da Bahia. "Nós passamos a ter bolsistas e o Xaréu virou uma grande banda formada por estudantes do Recôncavo", afirma o professor, que também é curador da exposição de J. Cunha na Galeria Paulo Darzé. As atividades no Paisagem Sonora são gratuitas e não há necessidade de inscrição prévia. Mas para os seminários no MAC há uma capacidade limitada a 80 pessoas.
*Confira a programação completa do festival Paisagem Sonora no site www.festivalpaisagemsonora.org e no Instagram: @paisagemsonorabahia.
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