MUITO
Humoristas fazem sucesso nas redes sociais com histórias do cotidiano de bairros populares
Por Alessandra Oliveira
Um celular na mão e uma ideia no cotidiano. É assim que, em uma versão moderna dos dizeres do cineasta baiano Glauber Rocha, humoristas têm produzido conteúdo com situações corriqueiras nas suas casas e vizinhanças. Repletos de gírias e trejeitos das periferias, os vídeos têm atingido milhões de seguidores nas redes sociais.
“Salve, família”, cumprimenta Cristian Bell, 22, em seus stories no Instagram, onde faz um diário virtual sobre sua rotina, a da mãe, irmãs, sobrinho, dos vizinhos mais chegados e até dos distantes.
No feed, publica os conteúdos planejados, brincando com o modo de vida da favela. No vídeo Qual sua praia?, o humorista compara: “O filho do pobre é tão gente boa que se eu levar ele aqui agora, ele vem comigo, ele não sabe nem quem eu sou. O filho do rico, se eu pegar na mão dele, ele pega uma infecção, uma bactéria, e morre”.
Sua atuação online começou aos 16 anos, quando criou a página Realidade do Gueto, no Facebook, para “perturbar a galera”. A ideia “bateu certo” na Liberdade, bairro onde morava, e ele criou a página Humor Cyclonizados, atraindo fãs de outros locais de Salvador e de outros estados. “Era irreverente, não tinha nada parecido”.
Humor Cyclonizados lhe rendeu convites para fazer stand-ups, e as apresentações ajudaram a diversificar seu público. Hoje tem 1,1 milhão de seguidores no Instagram, incluindo o ator baiano Lázaro Ramos. “Ele postou falando que me acompanha. Tenho print se quiser ver”, diz com orgulho.
Dos seus personagens, destacam-se os irmãos Julielson Potoke, que faz o estilo “maloqueiro”, e Cristian, o “pau-mandado” da esposa Suelen, que tem ataques de ciúmes. “Suelen representa algo que existe. Já vi mulher que deu facada no marido, jogou ácido na amante. Óbvio que existem mulheres incríveis, a maioria, mas essa é a realidade que vivi”.
Riqueza criativa
Quem interpreta a esposa do Cristian fictício é Bel Daltro, irmã do Cristian real. Após o sucesso da trama, ela se tornou influenciadora digital, assim como outros parentes e uma dezena de amigos do comediante.
Para aumentar a visibilidade deles e revelar outros talentos, Cristian lançou, em fevereiro, a websérie Condomínio, que tem média de um milhão de visualizações por episódio no YouTube.
A história se passa no condomínio do programa federal Minha Casa, Minha Vida, onde Cristian mora hoje. Para formar o elenco, pensou: o que não pode faltar na favela? “O ladrão, crentes, a fofoqueira, candomblecistas, o gay, o mudo, mulher ciumenta, homem descarado, as crianças perturbadas... O gueto é um lugar rico em personagens”.
Na sua próxima série, Escolinha do Professor Tabaco, vai contracenar só com crianças. Esse lado empreendedor criativo do humorista, aflorado aos 12 anos, quando vendia pó de mico no colégio, só cresce. Ele já escreveu 30 músicas, das quais vendeu 20, que são cantadas por nomes como Tayrone, La Fúria e Kart Love.
Agora, está só esperando passar a pandemia do novo coronavírus para inaugurar o bar e espeteria Point dos Foveiros. Pensa, ainda, em abrir o salão Estúdio de Belleza. “O negócio é estudar o que o povo gosta e colocar em prática”.
O nome do bar faz jus ao título que ostenta com orgulho: Rei dos Foveiros. “Foveiros” é uma gíria usada para se referir, geralmente em tom pejorativo, a alguns moradores de periferias: homens que usam boné aba reta, correntes e roupas de marca ou suas imitações e mulheres com short curtinho e cabelo alisado.
Gírias da favela
O sotaque e as expressões baianas, como essa, aparecem com frequência nos trabalhos dos humoristas. O vídeo Dicionário baianês (gírias da favela), de Leozito Rocha, 28, é o segundo mais visto no seu canal no YouTube, com mais de 1,2 milhão de reproduções.
Para quem não “tá ligado nas ideia”, ele explica que “tá batendo” é sinônimo de que algo está bom; estar “de quebrada” é igual a estar sossegado; e quem está muito assustado “tá vendo bicho”.
Leozito fala com a autoridade de quem nasceu na Liberdade e cresceu em Itinga, Lauro de Freitas. Lá nasceu o canal 10Ocupados, criado por ele e nove amigos em 2013.
O grupo narra tramas como O pestinha do bairro, Churrasco na piscina e Matando aula. O vídeo Tempos de arraia, publicado há seis anos, alavancou a visibilidade do canal ao falar sobre a brincadeira de empinar pipa.
Os temas são parecidos com os que Leozito aborda no seu perfil pessoal no Instagram, onde acumula 1,1 milhão de seguidores. A rede é o cartão de visita do seu trabalho. Por mês, faz cerca de três divulgações online e seis shows.
Para criar seus personagens, inspira-se em atores do ramo, de Eddie Murphy a Chico Anysio.
Outra influência marcante no seu trabalho é a música. Herança de quando tocava percussão em bandas locais.
“Vou deixar muita gente emocionada em casa agora, quer ver?”, dubla em vídeo imitando o cantor e deputado federal do DEM Igor Kannário. “Rodrigo, pirraça, vá!”, diz com uma garrafa de detergente simulando o microfone. A cena muda e ele aparece tocando uma guitarra feita de madeira, isopor e fita. “Se marcar com o tamborim, fica mais gostoso ainda”. Outra troca de roupa e o humorista batuca em latas de tinta enferrujadas.
A relação amiga com cantores e bandas de pagode, axé e arrocha é unânime entre os humoristas. Alguns até criam papéis artísticos, como Lukas Lele, 35, que interpreta o cantor Sucrilho Boladão.
O personagem lançou sua primeira música há um ano. “Eu vou pular, ah, ah, do lado do cordeiro, ah, ah. Daqui vejo direito, ah, ah. Sem tomar nenhum pau, vou curtir o meu Carnaval”, são versos de Vou pular do lado do cordeiro.
Música de massa
Hoje, Sucrilho Boladão tem mais de 30 composições, três clipes e já subiu no palco com o cantor Alexandre Pires. Nos vídeos do Instagram, aparece acompanhado de dois dançarinos, que são o irmão e um vizinho de Lukas.
Dos ritmos que toca, o pagodão sai na frente. “É a música da massa, do público da Bahia”, diz o humorista, que trabalhou em bandas do gênero desde a adolescência. De 2009 a 2015, foi baterista da Saiddy Bamba, onde realizou os sonhos de se apresentar em festas grandes de Salvador, no Carnaval, gravar clipes e viajar pelo Brasil.
Sua trajetória no humor começou no 10Ocupados há sete anos, a convite de Leozito. Agora, pretende investir mais na personagem feminina Lala. “Estou estudando a mulher, o feminismo. Quero que elas olhem e se identifiquem pelo lado positivo”.
Outro papel feminino de sucesso na comédia baiana é o de Neka. Ela tem uma relação amorosa conturbada com Kosko, um dos papéis mais conhecidos de Dum Ice, 28, que também começou a carreira de comediante no 10Ocupados.
Dum Ice sempre quis ser empresário. “Eu ficava um ano no trabalho e saía para tentar montar alguma coisa. Já tive lava-jato, vendi roupa”, lembra. Hoje, com o dinheiro do humor, comprou a dogueria Mr. Dog’s Hero, com sede na Cidade Baixa e no Imbuí.
O humorista fecha de oito a dez contratos pontuais por mês, além dos fixos. No Instagram, tem mais de 1,4 milhão de seguidores.
Na plataforma, usa os efeitos de câmera na criação de papéis, como o de Zói Pocu, que tem olhos muito afastados.
Mas, para além da aparência, o personagem é conhecido pela homossexualidade reprimida. Ele costuma assediar homens e colocar a culpa na bebida. Seu bordão “cerveja me fode” virou até música da banda La Fúria.
Ao explicar de onde vêm suas ideias, Dum Ice faz parecer simples: “Vejo uma pessoa na rua, o trejeito dela, vejo outra pessoa, o jeito de falar, aí junto tudo”.
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