OLHARES
Imagens das memórias felizes de Fátima Tosca
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Por Luiz Freire*
Na mesma rua em que nasceu, no Acupe de Brotas, em uma das primeiras casas construídas, quando tudo ainda era horta e pomar, Fátima Tosca Ribeiro mora e pinta. Seu ateliê, um ambiente reservado e plenamente iluminado, parece ser todo ele sua paleta, aliás, parece que utilizou o dripping (gotejamento) de Pollock.
Contudo, ante o caos cromático do ateliê e suas pinturas, há uma relação mediada pelas memórias felizes e por um devir compositivo que vai se definindo no processo do pintar, no qual memórias da infância surgem carregadas de cores em fundos que parecem neutros, mas não são e nem mesmo são fundos, dado a importância que assumem.
Dos estímulos que teve na infância, o principal dele surgiu aos 6 anos de idade após ter enfrentado o trauma da perda repentina de seu pai, morto por um infarto fulminante em 1966 e acontecimentos ruins que sucederam. Dona Anfrísia Santiago, diretora do colégio em que estudou, do fundamental ao segundo grau, percebeu sua mudança de comportamento e a encaminhou para uma psicopedagoga, que fez a terapia e aconselhou que a menina nunca deixasse de manejar lápis de cor. E isso nunca lhe faltou, pois teve acesso a lápis de cor aquarelado, pastel, aquarela, hidrocor da Faber Castel alemã, dados pelo noivo da irmã, 15 anos mais velha, representante da John Faber.
Iniciou o curso de Direito em 1979, não concluído em razão de ter optado pelo curso de Educação Artística no Instituto de Música da universidade Católica do Salvador. Teve contato com Leda Maria, Dante Galeffi e Luis Ademir de Souza, que muito incentivaram e contribuíram para sua formação, sendo o último responsável pela adoção do sobrenome da mãe, o espanhol 'Tosca', para assinatura de seus trabalhos.
Seu avô materno, Marcial Tosca, migrou de Barcelona para o Brasil na Primeira Guerra Mundial, trabalhou na Casa da Moeda, no Rio de Janeiro, de 1915 à Segunda Guerra Mundial e, na Bahia, fez clichês para jornais. Assinar 'Tosca' resultou em uma homenagem à mãe, que criou os filhos com as duas pensões e o trabalho na máquina de costura. Fátima lembra que a mãe “costurava com o tato, pois não possuía a visão central, somente a periférica, via somente o contorno”. Os sete irmãos da mãe, seus tios, perderam a visão na adolescência.
Arte e artesanato
Na década de 1980 Fátima atuou no Instituto Mauá pintando os panôs tecidos nos teares do Instituto, de sisal com linha, de piaçava com linha. Esse contato de trabalho ampliou sua percepção das relações entre arte e artesanato. Algumas das aquarelas adquiridas no Mauá pelo presidente da Junta da Galicia influenciaram o presidente na realização de duas exposições individuais na Espanha, uma de Carybé e outra sua com as séries O Reino do Rei de Ouro, Os Três Poderes, A Batalha e Floresta do Reino, ambas com catálogos.
Participou em 1986 do 1º Salão de Artes Plásticas do MAM (Museu de Arte Moderna da Bahia) com a série Circo. Travou, então, conhecimento com o Cônsul da Bélgica, Hans Leusen e Pedro Teixeira, marchand de Sante Scaldaferri, que adquiriram pinturas e abriram mercados para a sua produção. A pintora avalia como promissores os contatos realizados nesse Salão, e a partir daí passou a fornecer obras à galeria Performance (Rio e Brasília, de Pedro Teixeira, sócio de Anna Maria Niemeyer).
Os primeiros prêmios importantes foram recebidos em 1991 no Salão de Curitiba, de viagem a New York, e, em São Paulo, o prêmio exposição, no Salão Mokiti Okada. Nessa ocasião, estabeleceu em São Paulo relações com os proprietários da Galeria Documenta, trabalhando juntos até o fim da Galeria (1991 a 2010). O ano de 1991 foi bastante favorável ao reconhecimento do seu trabalho também na Bahia, quando ganhou o prêmio aquisição na primeira edição da Bienal do Recôncavo.
As redes de relações interpessoais e a o interesse nas pinturas ampliaram a visibilidade do seu trabalho, contribuindo para uma repercussão pouco experimentada pelas artistas mulheres na Bahia, redimensionando o sentido do seu trabalho artístico, que passou a ser rentável, com boa aceitação no mercado e no sistema da arte. O que veio somar ao sentido simbólico, nunca perdido, o de superar traumas através das lembranças belas e alegres e do grande prazer da invenção.
Define o desenho como uma "explosão”, contando histórias para si mesma e as intitula com o fim de compartilhar suas narrativas com as outras pessoas. Quase sempre os títulos das obras são frases. Entretanto, a figuração elaborada é plenamente compreendida e sentida, isso porque compõe a partir de um fundo abstrato, de técnica mista, de acrílica e óleo sobre tela.
Esse 'fundo' antecede a disposição das figuras. Essas variam conforme a temática e os resultados são diferenciados, guardam, contudo, uma intimidade, na qual é possível distinguir e reconhecer a poética de Tosca, poética que atinge o coletivo pelos motivos tirados de vivências comuns.
Emergem de sua memória imagens, figuras que lhes deram prazer, alegrias na infância, como a experiência de frequentar os circos, atração maravilhosa e itinerante das cidades nas décadas de 1960 e 70. Com lonas coloridas ou monocromáticas, atrações múltiplas, vivazes, estranhas, belas e audaciosas, além do drama encenado após as exibições dos números de mágicas e acrobacias. É tão marcante que essa temática retorna com persistência nas pinturas de Tosca de várias épocas.
Afetos
Os brinquedos também fazem parte do universo que emerge dos afetos e dos fundos abstratos das pinturas de Tosca, brinquedos que lhe deram satisfação e que alegraram seus filhos e de muitas outras crianças: jogo de pega-varetas, o pequeno construtor, dominó, entre outros aparecem nas composições contracenando com outros elementos, como pássaros. No campo temático se alinha a importantes artistas atuantes na Bahia, como Ângelo Roberto e Floriano Teixeira.
Importante notar o grau de percepção e expressão dos estímulos de uma cidade com a densidade histórico-artística de Salvador. Imagens da arte sacra católica se fizeram presentes nas composições recentemente expostas na Galeria Pena Cal, na Alameda das Espatódeas, em Salvador. A Bahia sagrada, barroca, influi nas imagens compostas.
Fátima contraria a lógica machista e discriminatória do mercado de arte na Bahia. É uma das poucas artistas mulheres que obteve reconhecimento e sucesso mercadológico, mas não sem ser atingida por preconceitos de diversas ordens, a exemplo do episódio em que um importante colecionador interessado na aquisição de alguns trabalhos seus foi desencorajado por um galerista local, que tachou a sua pintura de “decorativa” – reforçando preconceitos contra o ornamento e a decoração, que estão em processo de superação, haja vista o retorno e proeminência do ornamento no mundo da moda, da arte e do design – insistindo em entender o ornamento como vazio de significado, quando a pintura de Tosca muito significa para ela e para os outros quando estimula a memória coletiva de momentos felizes.
Outro aspecto revolvido pela pintura de Tosca é o do direito à beleza na contemporaneidade. Há os que acreditam que a condição contemporânea exclui a beleza, desconsiderando que o conceito de belo há muito perdeu a univocidade, há muito que se relativizou e multiplicou. É preciso perceber que o nosso tempo contém todos os tempos e deles necessitam para refazer aquilo que chamamos de arte e passou a ser entendido simplesmente como vida.
Especial relação Tosca estabeleceu com o mercado: vende toda a produção de uma série para um único galerista, proprietário da MCR Galeria de Arte, sediada em Salvador, e não tem conhecimento dos clientes que adquirem com a galeria. É sabido que o filho do galerista é um colecionador de seus trabalhos. Diz ter optado por essa prática porque, na condição de funcionária da Receita Federal, era impedida de negociar em sua casa e por pensar que as pinturas são melhor percebidas e valorizadas no ambiente das galerias e dos museus.
Fátima Tosca segue falando de flores, casinhas, passarinhos, cavalinhos, castelinhos, brinquedos e o circo, não porque foi limitada a esse repertório por uma lógica machista, mas porque tudo isso lhe permitiu superar os traumas, lhe faz feliz, e aos que admiram suas pinturas.
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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