MUITO
Imagens que incomodam: a luta de Mãe Stella contra o sensacionalismo no Candomblé
Exposição Maria Stella de Azevedo Santos – Meu tempo é agora segue em cartaz até 31 de maio
Por Cristina Damasceno*

A fotografia pode ajudar o público a conhecer a confluência entre tradições culturais, crenças religiosas e a representação visual simbólica de objetos e cultos sagrados. Também como documentação, no sentido de preservação da memória de práticas religiosas passadas, ela pode proporcionar novos olhares a ritos religiosos e seus líderes. Neste contexto, vale a pena visitar a exposição intitulada Maria Stella de Azevedo Santos – Meu tempo é agora, em cartaz até 31 de maio no M.E Ateliê de Fotografia. A mostra reúne trabalhos em diversas linguagens de 30 artistas que homenageiam o centenário de Mãe Stella de Oxóssi.
Iniciada no Candomblé aos 13 anos por Mãe Senhora, Mãe Stella faleceu em 2018 e foi a quinta ialorixá do terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá. Ela exerceu um papel importante, no sentido de desmistificar o sincretismo, resgatando a essência e identidade do Candomblé. Além de exercer a profissão de enfermeira, durante 30 anos, Mãe Stella escreveu vários livros sobre sua religião, marcada por conhecimentos e tradições orais, inclusive o nome da exposição faz menção a um de seus livros.
Ela recebeu o título de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Estadual da Bahia e foi também a primeira iyalorixá a ocupar uma cadeira na Academia de Letras da Bahia.
A curadoria da exposição ficou com o artista plástico Mário Edson, proprietário do espaço, que buscou convidar fotógrafos e artistas contemporâneos que tivessem uma ligação com Mãe Stella ou com o Candomblé. As obras dispostas de forma harmoniosa, em um ambiente onde o tom verde das paredes reverencia o Orixá Oxóssi, dialoga com os trabalhos exibidos.
Em sua maioria, são retratos expressivos da sacerdotisa em fotografia e outras técnicas artísticas, mas também é possível admirar algumas obras com conteúdos mais subjetivos, a exemplo de Cartas de afeto para Mãe Stella, da artista Viga Gordilho. O conjunto de 100 pequenas peças, tramadas durante 1 ano pela artista, contém 7 tecidos, em analogia aos 7 mares, que guardam entre as camadas uma proteção, como um amuleto.
Viga Gordilho declara: “As 100 Cartas falam das minhas caminhadas além-mar, viagens estas abençoadas por ela para abrir os meus caminhos. Não viajava para longe sem escutar Mãe Stella. Cada Carta traz coisas bonitas que recolhi pelos caminhos, por isso dediquei para ela. As cartas são como oração por tantas conquistas”.
Ateliê de Fotografia
O Ateliê de Fotografia é um espaço cultural criado por Mário Edson. Inicialmente funcionou em uma sala no Rio Vermelho e, a partir de 2019, passou para uma casa na ladeira do Boqueirão, no Santo Antônio Além do Carmo. O artista lembra de quando encontrou a casa, fechada há cerca de 20 anos: “Foi amor à primeira vista”. A reforma durou 2 anos e foram preservados muitos elementos arquitetônicos do casarão, datado de 1908, que proporciona ao visitante um ambiente charmoso e acolhedor.
A princípio, o ateliê trabalhava apenas com fotografia, devido à carência de espaços expositivos, principalmente para artistas emergentes. Posteriormente, outras expressões artísticas foram incluídas na agenda da galeria, a citar o Projeto Imortais, que homenageia personalidades emblemáticas da arte e da cultura.
Admiro a determinação de Mário Edson que, com recursos próprios, mergulha em seus ideais de maneira intensa e delicada, atento aos detalhes. Ele revela que na sua primeira exposição do projeto que reverenciava Frida Kahlo, viajou até o México visitando a casa da artista em busca de conhecê-la melhor. Quando homenageou Ariano Suassuna, entrou em contato com o filho do escritor, que o autorizou a ficar na casa em que Suassuna viveu no Recife, pelo tempo que lhe fosse necessário.
E assim foi seu envolvimento com os outros homenageados do projeto. Já com Mãe Stella, ele a fotografou algumas vezes e se aproximou dela em 2009, em busca de orientação para elaborar um calendário denominado Olorum Universo de Energia, composto por 12 fotografias de sua autoria.
Mário Edson conta que quando Mãe Stella faleceu, ele foi registrar o sepultamento no cemitério Jardim da Saudade, mas, de maneira inexplicável, perdeu todas as imagens, “não tinha que mostrar”, afirma.
Na exposição existe um local com exemplares das obras literárias da ialorixá. Em destaque, em uma das paredes da galeria, é possível ver algumas fotografias de Mãe Stella apresentando uma linha do tempo, com imagens da sua infância e maturidade.
Um fato que me chamou a atenção e me surpreendeu foi o prefácio da nova edição do livro Orixás – Deuses iorubás na África e no Novo Mundo, de Pierre Verger. A edição com fotos inéditas apresenta um texto de Mãe Stella, escrito um ano antes de sua morte, em que ela pede desculpas a Verger por ter sido impaciente, implicante e até mesmo ignorante em relação aos que se interessaram pelo Candomblé e seus segredos.
De certo, a resistência passada de Mãe Stella em relação a tornar público alguns segredos de sua religião provém de uma sequência de episódios que marcou os anos 1950.
A princípio, a revista francesa Paris Match publicou uma reportagem com o título As possuídas da Bahia, assinada pelo cineasta Henri Georges Clouzot. A reportagem com apelo sensacionalista era acompanhada por uma série de imagens de cerimônias de iniciação e rituais, conteúdos jamais publicados anteriormente.
Em seguida, a revista O Cruzeiro resolveu também fazer uma reportagem sobre o tema, enviando o fotógrafo José Medeiros e o jornalista Arlindo Silva. Depois de não ter acesso aos principais terreiros da capital baiana, a dupla conseguiu permissão para fotografar um terreiro na periferia da cidade. A publicação na revista brasileira tratava de rituais secretos do Candomblé e repercutiu de maneira muito negativa, a começar pelo título: “As noivas dos deuses sanguinários”.
Com cunho sensacionalista, a matéria foi ilustrada com 38 fotografias e teve um impacto muito grande na religião. O terreiro onde a reportagem foi feita ficou marginalizado, tendo alguns de seus integrantes um fim trágico. Para quem quiser se aprofundar na história, sugiro ler o livro intitulado Imagens do Sagrado: entre Paris Match e o Cruzeiro, disponível online, do pesquisador Fernando de Tacca.
Por fim, imagens ocupam um lugar determinante em algumas religiões, sobretudo na vivência com o sagrado, entretanto, não se pode ultrapassar os limites do que é ou não permitido fotografar. Respeitar as tradições dos lugares sagrados, obter consentimento para fotografar as pessoas e ambientes durante as cerimônias religiosas é uma condição vital para a preservação de princípios éticos na fotografia.
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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