MUITO
Iniciativas e desafios para a preservação do patrimônio cultural
O processo de esvaziamento dos imóveis coloniais do centro se acelerou decisivamente na década de 1970
Por Gilson Jorge
Desde 1999, o restaurador patrimonial José Dirson Argolo acompanha regularmente o Desfile da Independência do Brasil na Bahia, no dia 2 de Julho. E a cada ano ele contempla com tristeza o abandono do casario colonial entre a Lapinha e o Santo Antônio Além do Carmo. Um dos maiores símbolos do descaso com a nossa história são as ruínas do Solar Bandeira, na Ladeira da Soledade.
Colocado à venda, mas com pouco mais do que a fachada de pé, o imóvel foi construído na segunda metade do século 18 pelo comerciante Pedro Rodrigues Bandeira, que financiou as tropas baianas na luta contra os portugueses.
Referência arquitetônica da presença portuguesa na Bahia, o solar de dois andares ocupa toda a extensão de um quarteirão e contava com um amplo jardim com vista para a Baía de Todos-os-Santos, numa época em que a Soledade ficava perto do limite da cidade.
Assim como aconteceu com boa parte do casario colonial do Centro Histórico, esse imóvel de manutenção cara entrou em franca decadência uma vez que não tinha mais como ocupante uma família com renda suficiente para o seu custeio.
O processo de esvaziamento dos imóveis coloniais do centro se acelerou decisivamente na década de 1970, com a construção do Centro Administrativo da Bahia e do Shopping Iguatemi, atual Shopping da Bahia, que retiraram da região central inúmeras famílias e negócios, deixando para a cidade o enorme desafio de conservar o seu patrimônio, a sua história.
Uma tarefa que tem duas vertentes. Por um lado, o tombamento de patrimônios materiais com relevância histórica e cultural impede a sua demolição. Por outro lado, o registro de bens imateriais estabelece condições para que a cidade preserve eventos culturais diretamente ligados à sua identidade.
Os direitos culturais aos patrimônios materiais e imateriais constam no artigo 216 da Constituição Federal, promulgada em 1988, mas as políticas voltadas para os bens imateriais começaram, de fato, em 2000 com o decreto 3.551, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI).
"Nós, da sociedade civil, estamos acostumados a ouvir falar em Tombamento e achamos que o Registro é uma fase para chegar ao tombamento, mas não é", explica a antropóloga Adriana Cerqueira, gerente de Patrimônio Imaterial do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac). O registro, em si, é o instrumento de patrimonialização dos bens culturais de natureza imaterial.
Adriana aponta que o patrimônio imaterial diz respeito à produção e transmissão das culturas dos grupos étnicos formadores da sociedade brasileira. "Temos que discutir mais os direitos à propriedade intelectual dos mestres e mestras da cultura. Um dos grandes desafios nessa área é o respeito aos direitos intelectuais do grupo que detém o saber", explica a antropóloga, assinalando que uma pessoa interessada em solicitar o Registro de um bem imaterial de seu município precisa primeiro contar com a anuência expressa da coletividade que é detentora dos saberes e modos de fazer.
A "consulta prévia livre e informada" aos grupos detentores das culturas, aos povos e comunidades tradicionais é instrumento necessário para qualquer ação que diga respeito às culturas e territórios dos grupos étnicos, de acordo com a Convenção 169 da OIT, de 1989.
"Aqui no Brasil não temos ainda um grupo de pesquisa consolidado nos estudos críticos sobre o patrimônio. Eu defendo que a gente tem que pensar mais criticamente em relação ao patrimônio imaterial", observa Adriana.
No âmbito estadual, o Ipac conta com 28 bens imateriais registrados em quatro categorias, como por exemplo a Festa da Boa Morte (eventos e celebrações), capoeira (expressões lúdicas e artísticas), ofício das baianas de acarajé (saberes e modos de fazer) e o Terreiro Ilê Axé Aganju (espaços destinados a práticas culturais e coletivas).
Além disso, há 21 processos de patrimonialização em andamento, como o Registro Especial da Festa de Nossa Senhora das Candeias, em fase de finalização. Outro processo em andamento é o Registro Especial da Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
No patrimônio material, há edifícios históricos que precisam de reformas urgentes. Como o Convento de Santa Clara do Desterro, o mais antigo do Brasil, fundado em 1677, que tem duas capelas necessitando reforma – assim como a sacristia da Igreja do Carmo e o Colégio de Órfãos de São Joaquim.
José Dirson aponta que a Bahia, e especificamente Salvador, carece de verbas para enfrentar a urgência no restauro do patrimônio cultural material da primeira capital brasileira. "Seria preciso contar com uns 50 restauradores para preservar esse imenso patrimônio que nós temos", estima o especialista. Hoje há 15 profissionais qualificados no estado.
"Atualmente, há um interesse muito grande da Fundação Gregório de Mattos na restauração dos seus monumentos", afirma o restaurador, que na última terça-feira participou da abertura da V Jornada do Patrimônio Cultural de Salvador, promovida pela Fundação Gregório de Matos (FGM), que este ano teve como lema Legado afro-soteropolitano: fé, festas e outras frestas.
A abertura do evento foi no terreiro Hunkpame Savalu Vodun Zo Kwe, no Curuzu, detentor de 3 mil metros quadrados de área verde, a única remanescente no bairro da Liberdade.
"Eu fico muito feliz por esse evento ser realizado em um terreiro de Candomblé, que foi recentemente tombado. Porque em 1937, quando se dá início aos tombamentos, apenas os templos católicos de grande importância foram tombados", ressalta José Dirson. O tombamento de terreiros pelo Governo Federal só começaria na década de 1960. O restaurador, que frequenta o Candomblé desde 1963, lembra que, no início, para saber quais terreiros estavam em festa ele precisava se dirigir à Delegacia de Jogos e Costumes, que liberava as atividades das religiões de matriz afro-brasileira. A exigência de que os terreiros pedissem autorização à polícia para realizar suas festas só caiu em 15 de janeiro de 1976, no Governo Roberto Santos.
Perseguição
O sacerdote do terreiro Vodun Zo, Doté Amilton, viveu ainda a reta final da perseguição oficial aos terreiros, e quando assumiu o terreiro teve que lutar com outro o inimigo, a invasão à área verde que originalmente era de 14 mil metros quadrados e, com a construção irregular de casas pela vizinhança, reduziu a área a três mil metros quadrados. "Eu tive que brigar, dizer que se construíssem eu ia derrubar", declara o sacerdote.
Tombado em 2016, o terreiro é o principal no Brasil da linhagem jeje savalu, um culto praticado na região de Savalu, no Benim. "Aqui nós temos tudo necessário para os rituais jeje. Em dias de festa, o barracão tem mais de 80 pessoas, fica lotado", conta o sacerdote. O Vodun Zo foi o primeiro terreiro patrimonializado com base na Lei Municipal 8.550, que completou dez anos no último mês de janeiro.
Normalmente, a jornada acontece em um dos equipamentos culturais da FGM no centro da cidade, mas este ano a fundação optou por uma edição itinerante, com o primeiro dia de atividades no terreiro e o segundo na Colônia de Pescadores Z1 no Rio Vermelho, que elege no próximo dia 31 o seu novo presidente e que recebeu essa semana a notícia de que a colônia foi agraciada com R$ 100 mil de emenda parlamentar para o reparo de sete embarcações que participam da Festa de Iemanjá.
Plano de salvaguarda
Protegida como patrimônio cultural pelo município desde 2020, a Festa de Iemanjá está nesse momento em processo de construção do plano de salvaguarda, que é o processo pelo qual as pessoas envolvidas discutem instrumentos para a preservação e a transmissão dos saberes ligados ao objeto da patrimonialização. Nesse caso, o plano de salvaguarda conta com a participação de pessoas ligadas a terreiros de candomblé e uma consultoria feita por antropólogos.
Candidato único à eleição para presidente da colônia, Nilo Garrido, o Nilinho não acredita que o processo de registro da Festa de Iemanjá traga mudanças significativas na celebração. "Não muda muita coisa, só tá voltando o que era antes, porque houve um abandono por gestões passadas que afundaram a colônia", diz Nilinho.
O virtual novo presidente, que já comanda de fato a colônia, tem uma história singular. Criado apenas pelo pai, no Porto da Barra, Nilinho deixou a escola aos 16 anos depois que conheceu pescadores e decidiu se juntar a eles, porque seu pai preferia que ele trabalhasse. Nilinho diz que está satisfeito com destino que os ventos da vida traçaram para ele, mas considera que se sua mãe estivesse viva na sua juventude ele teria continuado os estudos. "A história seria outra, mas Deus sabe o que faz", diz o homem responsável pela colônia que reúne cerca de 200 pescadores.
Diretor de Patrimônio e Equipamentos Culturais da Fundação Gregório de Matos, Chicco Assis explica que a jornada do patrimônio surgiu como um momento de celebração do Dia Nacional do Patrimônio Histórico e Cultural, comemorado no dia 17 de agosto. "Nesse ano, a gente tem focado muito no patrimônio afro-soteropolitano, que é tão rico para a nossa cidade, para a construção da nossa identidade e que muitas vezes a gente não conhece esse patrimônio", afirma Chicco.
Presidente da FGM, Fernando Guerreiro defende a educação patrimonial como uma forma de ajudar a preservação de bens culturais. Um primeiro passo para a manutenção das obras. "Os próprios moradores percebem que há um patrimônio perto deles. Há um trabalho de educação patrimonial, mas é muito tímido. Eu acho que o patrimônio deveria ir para as escolas públicas, deveria ser um assunto de grandes campanhas", afirma Guerreiro.
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