MUITO
Intolerância religiosa: "A violência começa no púlpito", diz teólogo
Por Gilson Jorge
Autor de mais de uma dezena de livros sobre pluralismo religioso no Brasil, o teólogo e professor Faustino Teixeira é uma referência nacional em diálogo inter-religioso. Um de seus últimos textos publicados foi um capítulo do livro Lula e a Espiritualidade, lançado em novembro do ano passado, em que 24 autoridades religiosas, incluindo Leonardo Boff e a monja Coen falam de oração e militância. Aposentado, mantém-se dando aulas na Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, e continua um observador atento dos movimentos políticos de líderes religiosos. Em entrevista ao A TARDE, Teixeira analisa o crescimento da influência do neopentecostalismo na sociedade brasileira e explica por que cada vez mais pessoas no Brasil buscam uma igreja evangélica.
Há um crescimento muito forte da participação de igrejas neopentecostais na política em toda a América Latina. Devemos nos preocupar?
Um analista que tratou essa questão de forma muito interessante foi o sociólogo da religião Peter Berger (1929-2017). Primeiramente, ele faz uma autocrítica dizendo que previa uma secularização em âmbito mundial, que era a sua tese. Mas ele mudou de posição. O que se percebe hoje é um crescimento do sentimento religioso muito forte, que não é só o sentimento de presença das religiões. A gente está vendo que crescem também os não afiliados, como se diz nos Estados Unidos. Aqui falamos os sem-religião. Pensava-se que eles cresceriam no Brasil, do penúltimo para o último censo, mas eles se mantiveram na faixa dos 8%. Porém a tendência é aumentar, porque a gente está vendo um desencanto de muitos fiéis com as instituições. Aí cresce o número dessas pessoas que não são necessariamente agnósticas ou ateias. Esses são muito poucos no Brasil. Os sem-religião não são necessariamente pessoas sem uma inclinação espiritual. Apenas não têm uma domiciliação religiosa. É a terceira declaração de crença no Brasil. [Em primeiro estão os católicos e, em segundo, os evangélicos]. Mas, realmente, os evangélicos são o grande fenômeno no Brasil e o grande fenômeno mundial.
Qual era a visão de Berger?
Ele escreveu um livro famoso, O reencantamento do mundo, no qual ele destaca dois fenômenos em particular. Um é o crescimento do islamismo, que já é maior do que o catolicismo e já está se aproximando do cristianismo [soma de católicos e evangélicos]. Uma em cada cinco pessoas é muçulmana. É uma explosão que tem muito a ver também com esse tempo de incerteza. As pessoas encontram na tradição islâmica uma religião de afirmação do sentido. É uma religião aparentemente não muito complexa. Basta acreditar no mistério da unidade, acreditar na presença de Deus em todo lugar, na misericórdia de Deus. Todas as suras [capítulos] do Corão, à exceção de uma ou duas, começam com a expressão do Deus misericordioso. O Deus que acolhe todo mundo. A gente aqui não sente isso em relação ao Islã porque quase 90% da população é cristã. O que nos favorece perceber certas frases que são fundamentalistas, como ‘fora da Igreja não há salvação’, ou ‘só Jesus Cristo Salva’, que não causam arranhão cognitivo no Brasil porque grande parte da população é cristã, está acostumada com esse discurso exclusivista. Mas nesse campo cristão começa a haver uma mudança: os evangélicos deixam de ser minoria religiosa. Já começam a ter uma presença mais viva. Geograficamente, você não pode mais falar que mora perto da igreja, como referência. Não há mais uma predominância católica. Mas é importante salientar que o catolicismo no Brasil sempre foi maleável. Diferentemente dos evangélicos, é uma religião que tem muita religião dentro dela, o sincretismo religioso ou dupla pertença. Foi feita uma pesquisa em Belo Horizonte que mostrou que 48% das pessoas que vão à missa acreditam na reencarnação. Você tem um catolicismo sincretizado.
Aqui na Bahia, isso é muito forte com as religiões afro-brasileiras...
Muito. E nem sempre você fala com o padre ou a irmã, mas frequenta a rezadeira, a benzedeira, as religiões afros. E você nem sempre expressa isso quando o Censo te pergunta qual a sua religião. Talvez por isso as religiões afros sejam no Censo as únicas que estão decrescendo. Vivem um momento difícil porque são perseguidas. Há inclusive articulações de evangélicos neopentecostais com o tráfico para perseguir nas favelas e periferias aqueles que se declaram frequentadores de cultos afro-brasileiros. O discurso das religiões afros hoje é defensivo. Porque eles têm que demonstrar um mínimo de dignidade para enfrentar esse ritmo fanático fundamentalista que reveste não só o pentecostalismo, mas também o catolicismo carismático, como a Canção Nova. Teve aquele padre que foi processado [Jonas Abib], que escreveu o livro Sim, sim! Não, não!, atacando violentamente as religiões afros. O livro foi até proibido.
No neopentecostalismo, a gente tem a existência de um projeto de poder que até pouco tempo não era claro. Isso assusta? O Brasil corre o risco de se tornar uma república fundamentalista?
Eu falo isso sempre com muito cuidado porque o meu tema de trabalho é o diálogo. É preciso fazer uma distinção bem clara entre o fiel e o pastor. O fiel e o projeto da igreja. Para muitos fiéis das igrejas neopentecostais, das comunidades eclesiais de base ou das religiões afro-brasileiras, a ligação religiosa representa uma ressignificação do sentido da vida. O cara que trabalha como pedreiro o dia inteiro que não é respeitado pelo patrão se vê excluído de todos os campos, chega à noite, na igrejinha dele, é reconhecido na sua dignidade, um sujeito escolhido por Deus, se torna ministro, cantador. Você tem num Brasil muito excludente uma experiência de pessoas que conseguem encontrar o ressignificado de sua vida na prática religiosa. Que nem tem condições de pagar R$ 250 por uma sessão de terapia e que encontra na religião uma alegria de viver. Então, a gente tem que ter cuidado, pois, por um lado, é uma experiência muito importante para pessoas que foram ou contaminadas pelas drogas, com as suas famílias dispersas, a suas personalidades desencantadas, que se reencontraram em comunidades pentecostais. Você vê, por exemplo, o Pierre Verger, na religião afro. Ele diz: aquela mulher que vende acarajé na praia. De noite, ela não é mais uma simples baiana. Ela é uma rainha que oferece o seu corpo para os orixás descerem e dançarem na terra. Olha que coisa impressionante que é isso. Ou nas CEBs [Comunidades Eclesiais de Base]. De repente, nossa vista clareou e descobrimos que o pobre tem valor. Tanto nas evangélicas quanto nas católicas quanto nas afros você tem uma reconstrução do tecido social dilacerado pela dinâmica do poder, do mercado.
Mas tem um projeto dos líderes...
É claro que tem lideranças religiosas, pastores ou padres, que têm um projeto político claro. Você vê a Igreja Universal do Reino de Deus que acha que tem que pentecostalizar a sociedade. E isso está acontecendo com bancada evangélica de muita força. Eu sempre gosto de dizer que a violência começa no púlpito. As pessoas são envolvidas pela linguagem do pastor, do padre, e vão para o ataque contra aqueles que pensam diferente. É um momento muito chocante para o Brasil, que sempre foi o país do sincretismo religioso, muito bem representado pelo Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas: quanto mais reza, menor o risco de enlouquecer... qualquer sombrinha me refresca... uma religião pra mim é pouco... E essa dinâmica sincrética de ampliação do quadro de proteção vai se quebrando aos poucos no Brasil com o crescimento dos monolitismos exclusivistas que acontecem, por exemplo, em comunidades fundamentalistas, onde vão morar jovens que abandonam os seus estudos, o trabalho, casa. Também no campo católico. Eu estive recentemente em Londrina e vi a Comunidade Doze Tribos [fundada em 1972 nos Estados Unidos], superfundamentalista, com vários polos de articulação e missionários no Brasil. Eles fazem tudo lá dentro, as escolas estão lá, ninguém sai. Tem uma no interior de São Paulo também...Sim, minha irmã morou em uma na França e foi muito difícil ela sair. Tem também crescimento do Santo Daime, da União do Vegetal e outras religiões comunitárias de identidade forte. Quando você fala de identidade, significa que fora dessa pertença não há salvação. Isso no mundo evangélico, pentecostal, é muito marcante. Isso provoca em muitas pessoas essa voracidade de atacar o que é diferente. A demonização, a leitura hermenêutica que eles fazem das religiões afros. Mas é curioso porque, no fundo, os antropólogos colocam isso muito bem, os neopentecostais acreditam no panteão afro. Eles convocam os orixás para expulsar em nome de Jesus. Se convoca, é porque acredita. Não é verdade? Então, você tem no repertório neopentecostal um sincretismo forte. Você usa água fluidificada, o panteão afro. No espiritismo, você tem a figura de Chico Xavier que tem uma influência católica muito forte.
Mas, então, retomando a pergunta inicial, devemos nos preocupar?
A preocupação é profundamente plausível. Nós estamos vivendo no Brasil um momento extremamente preocupante. Os evangélicos são hoje 22% das declarações de crença, sendo que 18% são neopentecostais. Só 4% são os evangélicos históricos [como batistas e presbiterianos]. Esses históricos estão parados na estatística. Os que crescem são os neopentecostais. E se você perguntar a um neopentecostal há quanto tempo ele está na igreja, ele vai dizer: três anos. Há uma circulação muito grande entre os neopentecostais de uma igreja para outra. Você não consegue mais nomear as igrejas, da Universal já saíram tantas outras. Você vai reproduzindo. Começa com uma garagem, vai para um galpão, compra uma rádio, TV e vai se reproduzindo com a ajuda do dízimo.
O islamismo cresce, de alguma forma, por questões existenciais. Mas o neopentecostalismo está também vinculado à busca de prosperidade?
O dar dinheiro está presente em todas as tradições. O catolicismo também sempre foi marcado pelo dízimo. Em nome das benfeitorias, muitos católicos calaram diante da opressão. Mas realmente os evangélicos crescem e ganham presença na Câmara e no Congresso. A Damares foi recentemente à CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] e isso causou um questionamento entre católicos que não entenderam esse diálogo. A CNBB já teve uma postura muito mais sólida e de crítica ao poder.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes