OLHARES
Invenções e referencialidades em Elias Santos
Confira a Coluna Olhares deste domingo
Por Luiz Freire*
Foi observando os consertos dos objetos utilitários, desde muito jovem, que Elias Santos se interessou por peças que perdem o seu contexto de funcionamento e ficam à espera de um novo encaixe, de uma nova engrenagem, percebendo que algumas permanecem por longo tempo dissociadas e terminam constituindo-se em ‘lixo’, em algo que retorna à natureza, quase sempre para maculá-la.
O lixo produzido pela sociedade capitalista resulta do consumo desvairado e da indústria do descartável, da obsolescência programada de vários produtos, dentre eles, os provenientes da indústria da informática. O artista tem feito desses refugos matéria plástico-conceitual associando-os a outros materiais e técnicas, submetendo-os aos seus desejos e planos.
Desse trabalho, surgiu Anônimos/inumeráveis, um objeto dotado de luz, concebido em 2017 a partir da combinação de papelão, gesso, acrílicos, prisma, fios, LEDs, fonte de alimentação e chassis proveniente de sucatas de aparelhos eletrônicos. O novo objeto apresenta em quatro coolers de processador, iluminados por LEDs azuis, parelhas de pequenas cabeças de homens maduros esculpidos realisticamente em giz e modeladas em gesso. As caras possuem fortes expressões concentradas nos grossos lábios, nos vincos entre o nariz e a boca, nos narizes achatados, nos olhos cansados e sobrancelhas arqueadas.
Tudo concorre para o jogo de sombra e luz, que dá dramaticidade, em um ambiente tecnológico. Seria o confronto entre a frieza cibernética e o calor da humanidade? Os rostos ainda são percebidos, ora com nitidez, ora borrados, criando uma tridimensionalidade meio alucinatória, efeito holográfico conseguido por meio do uso de películas dos computadores e da movimentação do fruidor.
Tais efeitos conduzem a visão de um terceiro rosto, entre os dois esculpidos, iludindo e provocando a mente de quem vê, suscitando questionamentos sobre a solidão das parelhas, a solidão humana em tempos de alta conectividade. O objeto é exibido em conjunto com a caixa de embalagem e a fonte de alimentação, afirmando os referenciais dos processadores informáticos.
Diálogo
Solução semelhante foi adotada em outro objeto, sem título, em que o par de esculturas em miniatura promove o diálogo entre caveiras esculpidas em giz. Na tradição ocidental, as caveiras remetem ao fim comum de todas as vidas, independente do estatuto social, poder e riqueza.
Aqui, parece que o artista nos propõe reflexão similar, opondo as caveiras aos signos da contemporaneidade, os mesmos que destroem a natureza com seus refugos radioativos, e que conduzirão a humanidade à morte.
Ao explicar a subjetividade de seu trabalho na série Junções, ele diz no seu portfólio: “Como o giz abriga em seu interior bolhas de ar e impurezas outras imprevistas, o ato de esculpir nessa matéria tem a cada instante que incorporar um elemento novo, abrindo espaço para a produção de desvios que levam o processo de criação a um limite que tangencia os riscos de que as peças venham a perder a sua integridade, fragmentando-se definitivamente. Paradoxalmente, esse risco é assumido como um momento essencial de um processo de criação que extrai sua energia das tensões estabelecidas entre os limites seguros da matéria e a tênue membrana que o aproxima de uma zona de ruptura que entra nos domínios da morte. De fato, as melhores cabeças que esculpi com essa frágil matéria foram aquelas que, acidentalmente, vieram a ser destruídas pelo próprio fazer, não deixando nenhum fragmento viável para a sua continuação. Digo melhores não porque essas cabeças tivessem qualquer particularidade expressiva que as distinguissem das outras, mas porque, ao serem destruídas no próprio fazer, cumpriram um circuito completo de nascimento e perecimento que inscreveram sua breve existência na ordem dos fatos percebidos não pela sua materialidade, mas pela sua duração”.
Do mundo que Elias Santos conhece desde o nascimento, as referências culturais são múltiplas com acento significativo nas tradições afro-brasileiras, e contou com uma família em que a arte e a tecnologia são cultivadas por seus irmãos: dois são técnicos em eletrônica; outro, músico, e Clóvis (Leleza), artista plástico dedicado às artes gráficas e decoração de rua por ocasião das micaretas, e que o envolvia nas encomendas e muito lhe incentivou.
Do ambiente cultural da região do Baixo Sul da Bahia, da cidade onde nasceu, Cairu, na Ilha de Boipeba, Elias destaca a influência do Zambiapunga no seu trabalho. Trata-se de um grupo de pessoas mascaradas, com roupas coloridas, que sai às vésperas do Dia de Finados, acordando e chamando os moradores com sons tirados de enxadas, búzios, instrumentos de trabalho, cuíca e tambores, manifestação de referências africanas relacionadas ao culto dos ancestrais.
Tanto os mascarados do Zambiapunga quanto a figura de Exu lhe inspiram na criação dos seus desenhos. Concebe figuras humanas, frequentemente homens, estilizando corpos em um delineamento muito afeito ao que faziam os povos da antiguidade cretense, daqueles da pintura sobre cerâmica do estilo geométrico da Grécia antiga, com o diferencial das abstrações nas cabeças, que se aproxima muito da figuração surrealista e de seus interesses psicanalíticos. Para além de rótulos artísticos, interessa a Elias a desconstrução da forma verista e o exercício do automatismo psíquico (desenhos feitos eliminando-se, tanto quanto possível, a mediação da razão).
As infogravuras (gravuras digitais) da série As vozes do ancestral (2015) surgiram da encomenda de um mosaico com o tema Exu. Um pai de santo já o teria revelado que Exu Gira Mundo lhe acompanhava, mas o que o impressionou, de fato, foi uma visita que o artista fez ao Terreiro de Candomblé de Mãe Madalena, na cidade baiana de Cachoeira. Lá, experimentou um estado de introspecção: “Uma sensação muito boa, resgatada nesses desenhos, em que a linha fluiu em um estado alterado de consciência induzido pelo fazer, você não pensa muito, é quase uma psicografia”.
Tridimensionalidade
Em outra linha de trabalho, o artista explora a tridimensionalidade em protótipos de geometrias repetidas, encadeadas, o que muito revela do temperamento concentrado, pausado, intelectual e perfeccionista do artista, assim justificado: “Talvez um espírito inquieto, angustiado, precise de formas regulares”. Diz ter se inspirado na geometria de Rubem Valentim, das platibandas art déco das casas populares, e por ter sido professor de Desenho Geométrico no ensino fundamental, em Valença e Morro de São Paulo.
Pinta rostos/máscaras sobre embalagens de papelão, mantendo os adesivos e o que mais tiver, com um forte referencial da arte afro-brasileira, abundante na Bahia. O fazer perfeccionista é uma constante, seja nas peças gráficas, seja nas escultóricas. Nos objetos, seu desejo de ordem só é comparável ao de um relojoeiro, com a intenção de que façam nossa mente funcionar e pensar sobre o mundo, a tecnologia, o ciclo da vida, a natureza e o destino da humanidade.
Pensa em escalas diferentes entre o bidimensional e o tridimensional, prefere desenhos em pequenas proporções para os trabalhos gráficos e em escalas monumentais para os tridimensionais, embora ainda não tenha alcançado encomendas para transformar os protótipos em grandes realizações.
Negro, nascido em 19 de novembro de 1966, Elias é filho de pai pescador e mãe costureira e feirante, dotada de grande repertório literário do cordel e espiritualidade ancestral e, apesar de pertencer à religião Batista, exerceu muita influência no imaginário do artista.
A primeira exposição individual, Semblantes semáforos, fez em 1995, na Escola de Belas Artes da Ufba, onde bacharelou-se em Artes Plásticas em 1998; outras duas foram realizadas em outros espaços, em 2011, 2013 e 2015. Participou de 23 exposições coletivas, inclusive no Museu de Arte da Bahia, recebendo os seguintes prêmios: 3º lugar no XIII Salão Regional de Artes da Bahia (1995); Menção Honrosa no XX Salão Regional de Artes Visuais (1997); Aquisição na VI Bienal do Recôncavo (2002); Salão Regional de Artes Plásticas da Bahia (2006); Artista Destaque do Recôncavo, VIII Bienal do Recôncavo (2006).
Luiz Freire é doutor em História da Arte, professor da Escola de Belas Artes (Ufba) e museólogo - [email protected]
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes