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Ivan Sacerdote e Felipe Guedes lançam primeiro disco

Álbum foi gravado ao vivo durante o Festival de Jazz do Capão

Publicado domingo, 24 de julho de 2022 às 06:00 h | Atualizado em 24/07/2022, 10:17 | Autor: Marcos Dias
Felipe Guedes e Ivan Sacerdote se aventuram em novo álbum
Felipe Guedes e Ivan Sacerdote se aventuram em novo álbum -

Foi numa daquelas noites de verão em 2019. O duo Ivan Sacerdote e Felipe Guedes se apresentava no restaurante Solar, no Rio Vermelho, e Caetano Veloso estava na plateia. Ouviu encantado o que os dois faziam com um clarinete e um violão, de forma muito espontânea e improvisada, com desdobramentos imprevisíveis. Liberdade. 

Para os jovens músicos, que há algum tempo já tocavam juntos, e nutrem profunda admiração pelo talento um do outro, os elogios que se seguiram à apresentação foram uma bênção.

“A partir daí, ele começou a apoiar ainda mais esse duo”, lembra Ivan. Eles foram convidados para tocar no estúdio de Caetano no Rio de Janeiro, onde fizeram algumas experimentações, de certa forma imantando o que estaria por vir. Ainda naquele ano, Caetano disse que Felipe é “o “ápice da música instrumental soteropolitana, a música em pessoa”.

Em 2020, foi lançado o álbum Caetano Veloso & Ivan Sacerdote, pela Universal Music, gravado ainda em 2019, com releituras de clássicos como Trilhos Urbanos, O Ciúme e Onde o Rio é Mais Baiano. Na época, Caetano declarou sobre o encontro com o clarinetista: “Ele trouxe música à minha música”.

Em plena pandemia, Ivan e Felipe foram convidados para participar do Festival de Jazz do Capão em 2021 – aquele que correu risco de não ocorrer por declarar-se “antifascista e pela democracia”, recebendo pareceres desfavoráveis da Funarte para a Lei Rouanet.  

As gravações, ao vivo e sem público, naquele lugar esplêndido, deram origem ao primeiro disco do duo, lançado no último dia 10, no projeto Bahia Sagrada, na Igreja de São Francisco (Pelourinho).

“A gente tem que lutar, não só para sobreviver, mas para não ser marginalizado num país que está desprezando a cultura totalmente. Acaba sendo uma história muito bonita porque conseguimos fazer um material eterno, com uma pesquisa muito árdua, num contexto político-social para as artes totalmente desfavorável. Esse é o nosso contra-ataque, digamos assim, para tudo isso o que está acontecendo”, diz Ivan.

O multi-instrumentista Felipe Guedes, mesmo sendo um talento reconhecido pelos pares, há uns três anos ainda achava que era necessário esperar um pouco para gravar um disco, mas se rendeu ao contexto.

“Esse momento chegou, estou muito feliz porque Ivan é um amigo de muitos anos, a gente sempre se identificou com o jeito de tocar um com o outro, esse jeito mais livre com improvisações, que faz parte de nossa formação musical. Conseguir realizar esse disco com um registro desses anos de amizade e parceria musical com as pessoas do Capão foi uma oportunidade de ouro. Espero que todo mundo goste porque a gente está muito feliz”.

A música que abre o disco de Ivan Sacerdote e Felipe Guedes, Brejeiro, de Ernesto Nazareth, é  dessas que parecem inscritas no DNA sonoro brasileiro. Foi gravada pela primeira vez em 1905, e ganhou um registro de eterna novidade com o clarinete e violão do duo, que decidiu fazer um caminho histórico no repertório. Ivan sente que ali estão as raízes do choro.

A execução (e o frescor) que imprimem às músicas têm muito a ver como eles tocam e gravam. Todas as gravações são como num modelo ao vivo, sem cortes. E as incursões sobre músicas da chamada MPB abrem uma seara de criatividade ilimitada.

Ivan diz que, nos Estados Unidos, é comum que músicas cantadas sejam gravadas de forma instrumental, mas na MPB não. Eles fazem isso com Futuros Amantes, de Chico Buarque, e com A Outra Banda da Terra, de Caetano, por exemplo.

Também estão no disco Lá Vem a Baiana (Dorival Caymmi), Cada Macaco no seu Galho (Riachão) e um medley com Reggae Odoyá , do Olodum, e Quando o Ilê Passar (Miltão), do Ilê,  além de duas autorais: Ciranda das águas, um ijexá de Ivan composto aos 19 anos, e Né Não, É!?, de Felipe Guedes.  

“Temos muitos exemplos de encontros de clarinete e violão, mas nunca foram voltados para a música da Bahia, os ritmos afro-baianos, para esse contexto sonoro que temos em Salvador. Nesses últimos anos, a gente procurou pesquisar a respeito de um duo instrumental que tivesse essa cara da Bahia e continuasse com esse legado do violão e do clarinete brasileiros que têm muita história”, diz Ivan.

E também é história a criação de Né Não, É!?. Certa vez, quando Felipe mostrou a música a um amigo, ouviu dele: ”Aí tem ijexá, tem samba...”. E  respondeu, baianamente: “O negócio é misturar, né não, é?”. O título já estava ali.

A criatividade e a liberdade que moldam o duo estão completamente conectadas ao ambiente que os formou. Ivan considera que nos últimos 15 anos houve uma grande valorização da música instrumental da Bahia, principalmente pela atuação do maestro Letieres Leite com a Rumpilezz.

“Letieres é uma figura central na minha formação musical e de Felipe. Ele implantou essa importância da música instrumental baiana, fez a gente acreditar e estamos seguindo com isso até hoje”.

Para Ivan, a despeito de muitos artistas e movimentos surgidos na Bahia, a partir das décadas de 1980 e 90, a imagem da música baiana no cenário internacional é de uma música para entreter.

“Mas isso não é verdade. A axé-music é um grande tesouro da nossa terra pelo qual também sou apaixonado, mas o contexto que a gente viveu dos 20 aos 30 anos, com a influência da Rumpilezz, do próprio Armandinho, fez com que a gente construísse isso que está acontecendo hoje. A música instrumental da Bahia tem um público incrível”, diz o músico, citando eventos como a JAM no MAM, os da Osba e outros.

O idealizador do Festival de Jazz do Capão, Rowney Scott, que montou um estúdio em seu sítio onde o disco do duo foi gravado,  acredita que nos últimos 15 anos surgiram gerações de músicos mais preparados e completos na Bahia, como Felipe e Ivan, “muito versáteis, muito virtuosos e muito musicais”.

Para ele, que participa do disco tocando sax soprano na música A Outra Banda da Terra, além de acontecimentos como a Rumpilezz e o próprio Neojiba, o que distingue o talento e produção desses jovens músicos é a “consciência da africanidade e da importância matriz africana na música”.

Música de graça

Mesmo com o bom momento da música instrumental na Bahia – e da garantia que a edição do festival de jazz neste ano será presencial, após as eleições –  Rowney aponta que a remuneração de quem faz música instrumental por aqui é muito baixa.

“Os espaços mais assíduos são as casas noturnas e se ganha muito pouco na noite. O público baiano está acostumado a ter música de graça por causa do carnaval e da cultura da música de rua. A sobrevivência dos músicos é uma batalha muito grande, muitos passam perrengues e são músicos fenomenais”, diz Rowney, que é professor da Ufba.

Fenomenal, a propósito, é um adjetivo que cabe ao multi-instrumentista Felipe Guedes. Ele tem tocado mais instrumentos harmônicos ultimamente, como violão, contrabaixo e guitarra, e pensa que quem gosta de música e não conhece Salvador precisa vir para entender a diversidade do que se encontra na cidade: “Às vezes, no mesmo metro quadrado, há formações diferentes, influências, mestres e mestras de formas muito espontâneas, é tudo muito incrível”.

Embora assuma o violão no duo, Felipe é movido por uma dinâmica singular:  está sempre inquieto e curioso, tentando sempre descobrir um instrumento novo.  Ainda assim, apesar de seu dom ter sido reconhecido ainda na infância, como alguém com ouvido absoluto, isso não faz com que pare de estudar e pesquisar. Perfeição, né não, é?

No medley de samba-reggae do disco, por exemplo, seu violão é a bateria.  Vizinho do Terreiro do Gantois desde criança, sempre ouviu o som que vem de lá, e acompanhava as aulas do tio Gabi Guedes, que também é alabê do terreiro.

Tinha aproximadamente de 5 para 6 anos quando uma amiga da mãe deixou um violão para ver se, além da percussão, ele também se interessava. O menino começou a “futucar” o instrumento, ao mesmo tempo que ouvia rádio, um hábito na família. “Agradeço muito a Gabi e a minha mãe, porque a playlist aqui em casa era muito diversa. Só tesouros por perto, e só tenho o que agradecer”.

 Ivan, por sua vez, lembra que foi uma criança problemática, que se machucava demais, e entrou na música por causa disso.   “Me aproximei da música de forma sensorial e investigativa”, diz ele, que iniciou sua musicalização com flauta doce no colégio e aos 12 anos começou a tocar clarinete.

Tocou em filarmônica, na Orquestra de Frevos e Dobrados do maestro Fred Dantas, na Banda Sinfônica da Ufba, em grupo de choro, e quando conclui o ensino médio no Colégio Manoel Novaes, “que ensina música até hoje”, foi estudar na Escola de Música da Ufba. Mas considera que sua percepção em relação à música sempre foi mais investigativa do que teórica.

Um dia, quando participava de um show de Alexandre Leão, a cantora e compositora baiana Rosa Passos – que em 2008 recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Berklee College of Music (EUA) – ouviu o som de seu clarinete e o convidou para tocar com ela.

“Rosa Passos foi um divisor de águas na minha carreira. Para mim, ela é uma das maiores artistas desse mundo. Ela me confiou uma responsabilidade quando eu tinha 25 anos para fazer parte do quarteto que a acompanha, com músicos internacionais. A maneira como ela vê a teoria musical, sem artifícios acadêmicos, para mim é um exemplo, e eu me coloquei ali como aprendiz de tudo aquilo, é como se fosse uma grande escola da música brasileira”.

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