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Joel Birman: "O mundo não existe para me aplaudir"

Por Marcos Dias | Foto: Raphael Müller | Ag. A TARDE

20/12/2018 - 9:00 h | Atualizada em 20/12/2018 - 10:27
O psicanalista Joel Birman fala sobre narcisismo e cultura da imagem
O psicanalista Joel Birman fala sobre narcisismo e cultura da imagem -

“A gente vive hoje – e já faz algum tempo, mas de uma forma mais radicalizada sobretudo com o surgimento da internet e esses instrumentos de captação das imagens – naquilo que a gente poderia chamar de uma cultura da imagem, e você, querendo ou não querendo, está inserido nela”, disse o psicanalista Joel Birman à Muito, recentemente, quando esteve na cidade para fazer a conferência Narcisismo Ontem e Hoje, durante a XVIII Jornada do Campo Psicanalítico de Salvador. Para explicar como chegamos a esse ponto – com desdobramentos na sociedade de perturbações psíquicas ligadas à problemática narcísica, como drogadição, personagens borderlines, anoréxicos e bulímicos –, ele articula saberes da psicanálise, mas também das ciências sociais e da comunicação. Médico de formação, com doutorado em filosofia, Birman é autor de livros como Arquivos do Mal-estar e da Resistência e O Sujeito na Contemporaneidade: Espaço, Dor e Desalento na Atualidade, entre muitos outros, e colabora constantemente em publicações especializadas. Pesquisador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em sua passagem pela cidade ele também lançou o livro Modalidades de Pesquisa em Psicanálise: Métodos e Objetivos, fruto de um colóquio desenvolvido neste ano com o grupo de pesquisa Psicanálise, Cultura e Sociedade – o mesmo com que em 2015 ganhou o Prêmio Jabuti com A Fabricação do Humano: Psicanálise, Subjetivação e Cultura. Em agosto de 2019, um novo colóquio vai tratar de psicanálise e política.

Quais implicações para a nossa vida disso que o senhor chama de cultura da imagem?

Dizer que a gente vive numa cultura da imagem significa, fundamentalmente, que a gente está perdendo a cultura da palavra, da narrativa ou do argumento. De forma que isso que se convenciona chamar hoje de fake news, política da pós-verdade, é, na verdade, um ponto de chegada ou uma radicalização dessa cultura.

Narciso hoje é mais pop do que Édipo?

Desde os anos 1970 e 1980, quando novas patologias do narcisismo começaram a ser levantadas, houve uma incidência na cultura psicanalítica no sentido de se dizer que o mito que define os processos pós-modernos de subjetivação não é mais o mito do Édipo, mas o mito de Narciso. Há toda uma discussão no interior do campo psicanalítico. Nesse sentido, Narciso é mais pop. Nem sempre pelas melhores razões, mas ele é mais pop.

Já que os senhor está na Bahia, o que pensa dos versos de Sampa, composta há 40 anos, em que Caetano Veloso diz que “Narciso acha feio o que não é espelho”?

Narciso quer ver a sua beleza e perfeição espelhada nos olhos do outro. Evidentemente, Caetano está fazendo uma ironia sobre a figura do Narciso. Tudo que não é espelho que lhe dá garantia dessa ressonância da sua beleza ou virtude não serve. Você vê a história do Andy Warhol, de que todo mundo vai ter 15 minutos de sucesso – isso significa que Narciso vai ter uma existência de 15 minutos. E Woody Allen vai retificar essa informação em 1995 e dizer: “Não, não são 15 minutos, são cinco minutos apenas”. Então, você vê que essa formulação de gostar do espelho existe, mas o tempo para se ter sucesso nesse espelho se restringiu para cada um.

Nessa ideia de perfeição, estimulada pelo discurso da propaganda e o discurso médico, entre outros, nós falhamos se não correspondemos a esses ideais?

Você tem uma exigência narcísica da sociedade moderna em que você quer corresponder a uma imagem de perfeição. Você quer atingir um ideal em todos os setores da vida, então, quando não corresponde a esses ideais esperados, você se sente um fracasso. Essa é uma das razões pelas quais a experiência depressiva se dissemina na contemporaneidade, porque existem milhares de pessoas que não correspondem a esses ideais. A depressão é uma experiência de decepção consigo próprio. Você tem poucos vencedores e muitos perdedores no mundo contemporâneo.

Qual é a relação entre o que vemos no espelho e o que pensamos que o outro vê em nós?

A nossa tentativa é fazer que o outro acredite no que está sendo projetado no espelho. Você é uma pessoa que trabalha na imprensa e sabe muito bem que todas as pessoas que têm um certo capital econômico ou certo capital simbólico, mas sobretudo capital econômico, têm assessores midiáticos que vivem para produzir publicitariamente a imagem desses personagens. Essas imagens têm um impacto social e um impacto econômico de retorno sobre esses personagens. Então, toda essa produção de assessoria de imprensa privada que utiliza jornais e revistas para plantar notícias sobre um personagem alimenta uma produção narcísica para aumentar o prestígio social do personagem. E tem eficácia.

A depressão é uma experiência de decepção consigo próprio. Você tem poucos vencedores e muitos perdedores no mundo contemporâneo

Quem a gente ama é sempre um pouco a imagem do que pensamos que somos?

Psicanaliticamente, você sempre escolhe alguém baseado nas imagens da sua história. Seja o que você é, seja o que você foi, seja o que você gostaria de ser. São três variações narcísicas. Eu posso escolher um objeto de amor que é a minha cópia e semelhança; eu posso escolher alguém por aquilo que eu fui e perdi mas que quero encontrar no outro; ou ainda posso me apaixonar por alguém que eu quero me tornar. São três formulações narcísicas.

O ciúme tem mais a ver com o narcisismo ou a histeria?

Você tem um narcisismo mais autocentrado e um narcisismo mais autoritário. Freud vai falar que existem duas variações de narcisismo: o Eu Ideal e o Ideal do Eu. O Eu Ideal é aquilo em que você quer ser seu próprio ideal, aquilo que eu fixo como sendo o meu ideal a partir do meu umbigo. Enquanto que o Ideal do Eu, eu me submeto a um ideal maior, que quero alcançar. Então, eu diria que a experiência do ciúme está instituída no campo do Ideal do Eu. Quer dizer, se você tem aquilo que eu gostaria de ter, se você é aquilo que eu gostaria de ter, eu posso ficar com ciúme de você. Agora, no plano do Eu Ideal, eu quero destruir alguém que realize o ideal que eu acho que é meu. Aí o que está em jogo não é o ciúme, é a inveja.

Esse mecanismo também se apresenta em crianças, não?

Em crianças e adultos. Do ponto de vista da experiência infantil, você tem uma tensão entre o Eu Ideal e o Ideal do Eu, e essa tensão vai permanecer na experiência adulta. Cada um de nós, adultos, psicanaliticamente falando, carrega essa criança dentro de si.

Se não me engano, Lacan faz uma referência a um relato de Santo Agostinho em que ele observa uma criança de colo, que ainda nem fala, tendo inveja de outra criança...

Exato, ele tem inveja de que outra criança está sendo amamentada pela mãe e ele está excluído, então, ele quer destruir o outro, isso é inveja.

Essa agressividade do narcisismo, quando pensamos nas redes sociais, parece que também conjuga, indistintamente, a amabilidade, com uma demanda por likes, curtidas...

Quando alguém clica aprovando o que eu disse, isso é vivido pelo sujeito como uma espécie de confirmação de que é amado. Isso é uma alimentação narcísica. Se alguém discorda, posso transformar a discordância numa hostilidade e, portanto, posso reagir agressivamente. Essa reação agressiva de rejeitar a crítica é uma reação narcísica, ou eu posso aceitar que as diferenças existem. O mundo não existe para me aplaudir.

No Brasil, está havendo um certo elogio da violência e da discriminação sustentado por figuras de autoridade, políticos, religiosos... Isso tem a ver com narcisismo em relação a quem os apoia porque se identificam com tais posições?

Há uma ideia muito rica de Freud que ele chama de “narcisismo das pequenas diferenças”. É um conceito que ele enunciou em 1921, em Psicologia das Massas e Análise do Eu. Ele se referia à sociedade europeia pós-Primeira Guerra Mundial. Dizia que estava surgindo naquele contexto uma intolerância em relação ao diferente. Aquilo que é diferente do que eu sou em nível individual, ou aquilo que é diferente nos segmentos das classes sociais. Por exemplo, um branco que não gosta do negro ou do asiático, por exemplo; ou no nível das classes, das classes populares ou burguesas, em que o diferente não é aceito. Então, Freud diz que o que está caracterizando aquela modernidade avançada é que o diferente era tomado não apenas como diferente que eu pudesse conviver com ele, mas era tomado como um adversário e como inimigo. E como inimigo significa que eu tenho que destrui-lo para manter a minha condição daquilo que sou. Acho que esse clima que Freud descreveu ali, do narcisismo das pequenas diferenças, é aquilo que está existindo hoje no Brasil num estado altamente acirrado. Nós não aceitamos – e não estou falando que não tenham pessoas, ou até que nós aqui sejamos diferentes disso – mas existe no imaginário brasileiro um acirramento muito grande de não suportar a experiência do diferente, de aceitar as diferenças, de forma que a diferença é tratada pela via da guerra e da eliminação, e não como alguma coisa que enseja o diálogo, como exigem as regras de uma sociedade democrática.

Momentos de crise são momentos de desorganização de laços sociais. O problema é saber como a gente vai resolver essa crise

Um amigo disse recentemente que o Brasil virou um hospício a céu aberto. Mesmo questionando essas categorias entre o normal e o patológico, podemos dizer que uma nação surta?

Eu acho que isso significaria uma espécie de psicologização das relações sociais e não concordo. Você pode usar isso como uma metáfora, mas não concordo que se possa usar como uma leitura do que se estabelece na sociedade. Acho que os momentos de crise são momentos de desorganização de valores, conceitos e perspectivas. Acho que estamos vivendo um momento desses. Esses momentos de crise são momentos de desorganização de laços sociais. O que seu amigo chama de loucura ou surto seria essa desorganização que a crise coloca. O problema é saber como a gente vai resolver essa crise. Se a gente vai acirrar a crise, se vai acirrar o narcisismo das pequenas diferenças, ou a gente vai voltar a criar as regras democráticas e dialógicas da cultura do argumento.

Acredita que a essa altura do capitalismo financeiro, que coloca em xeque os valores e princípios democráticos, isso ainda é possível?

Olha, o capitalismo financeiro não saiu da crise de 2008. De uma certa maneira, é por conta desse neoliberalismo globalizado que começaram a surgir aquilo que na Europa seriam os populismos da extrema-direita. Esses movimentos de extrema-direita são uma reação ao neoliberalismo. Exatamente porque a crise do neoliberalismo não superou a crise de 2008. Você tem toda uma reação que veio pela extrema-direita. O que alguns autores discutem hoje é se é possível fazer um populismo democrático. Mas o que está em foco é a crítica ao neoliberalismo pela crise do neoliberalismo.

Muitos psicanalistas estão fazendo atendimentos coletivos, gratuitos, em grandes cidades. Acredita que funciona?

Acho que a cultura psicanalítica durante muitas décadas ficou ligada à burguesia e classes médias-altas, de forma que os psicanalistas sempre tiveram uma postura muito conservadora e reacionária em achar que a psicanálise não teria nada a ver com política. Acho que está existindo, nos últimos anos, até mesmo por causa de uma certa crise da psicanálise, o entendimento de que a psicanálise não se restringe mais a atender as classes médias-altas ou a burguesia, e ela trabalha com a classe média-baixa. Os psicanalistas trabalham em instituições públicas, em hospitais, ambulatórios... Acho que essa ida para atender classes populares e oferecer consultas nesse setor é um desdobramento atual no Brasil, em São Paulo, no Rio, em Porto Alegre, dessa realocação maior da psicanálise no espaço público hoje.

É possível chegar ao cerne da questão do narcisismo atual sem ser pela via da psicanálise?

Acho que tem maneiras de você poder se confrontar com o autocentramento das pessoas no espaço público. Isso não quer dizer que isso vai curar ninguém do seu narcisismo, mas o mais importante não é isso: você vai dar um limite à arrogância das pessoas no espaço público, que é o que interessa. Agora, acho que é um jogo de corpo da própria conflitualidade social para dar um limite a esse excesso de expansão de si que provoca mal em quem está em volta. Então, do ponto de vista político, social e ideológico, você consegue fazer isso. Não significa que as pessoas vão ser curadas do narcisismo delas, mas vão ser colocadas no seu lugar. E aquelas que sofrerem por causa disso podem tentar esclarecer psicanaliticamente esse sofrimento.

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