ABRE ASPAS
Jorge Koho Mello: “compaixão é ir além da empatia”
Educador e terapeuta brasileiro fala sobre contemplação, terapia e suas impressões sobre a Bahia
Por Marcos Dias

De acordo com o monge Jorge Koho Mello, o termo iluminação (satori), principalmente nas escolas do zen-budismo no Japão, não goza de um conceito muito bom. "Uma pessoa que realiza sua verdadeira natureza é absolutamente comum, ela se torna excepcional por ter consciência do caráter ordinário de ser completo/completa", diz ele, enfatizando que no budismo, como um todo, não existe revelação, mas a experiência.
“Um dos títulos que o Buda histórico é conhecido significa ‘Aquele que é assim como é’, então, é um outro ponto de partida para o que se poderia chamar de uma experiência espiritual”. Coordenador do Zurich Zen Center e co-diretor espiritual da Zen Peacemaker Order (ZPO), ele esteve em Salvador nesta semana realizando palestra e oficina na Universidade Federal da Bahia e finaliza hoje um retiro na sede do Centro de Estudos Budistas Badisatva, no Recôncavo. Por aqui, o Monge Koho falou sobre ativismo socialmente engajado como prática contemplativa e compartilhou elementos práticos para apoiar agentes de transformação social.
O educador e terapeuta brasileiro ordenado no Budismo Soto Zen, radicado há 15 anos na Suíça, fala nesta entrevista sobre os nexos entre contemplação e engajamento, meditação e terapias e suas impressões sobre a Bahia.
As pessoas, de forma geral, associam estar zen a uma certa tranquilidade, uma paz de espírito. O que o zen busca, na verdade?
O zen, na verdade, se caracteriza por não ter uma busca definida, mas sim por aceitar a realidade como ela é para poder, então, fazer as transformações necessárias. Esse é um entendimento bastante ocidental de um conceito que não é comum para nós, a própria natureza da mente, como o zen concebe, é diferente das teorias do ocidente. Muitas vezes brinco com essa realidade: as pessoas dizem 'vou no retiro para ficar zen', uma visão assim meio da década de 1970, hippie, mas as práticas são bastante ativas, com presença plena no momento em que ocorrem.
Uma das palestras que o senhor realizou nesta semana foi Ativismo socialmente engajado como prática contemplativa. A união entre engajamento e contemplação parece um paradoxo. Qual mensagem pretendeu deixar?
Basicamente, que essa visão de interdependência é uma realidade inquestionável. Nós não temos mais tempo a perder como cidadãos planetários em termos ambientais e sociais. Esse aparente paradoxo entre a ação na sociedade e a ação contemplativa, se desfaz na distinção entre pacifismo e passividade. Essa é uma linha bem importante, não apenas do budismo, mas muitas práticas espirituais hoje seguem essa linha da espiritualidade socialmente engajada, no sentido de aplicar coerência ao seu discurso espiritual. No budismo, particularmente, existe uma rede internacional de praticantes de várias escolas que seguem essa orientação geral de ter uma ação na sociedade consciente mas não-violenta.
O senhor é co-diretor espiritual da Zen Peacemaker Order (ZPO), que promove, entre outras ações, retiros entre moradores de rua e campos de extermínio. O que é a compaixão nessa perspectiva?
Na minha opinião, a compaixão é ir além da empatia. Eu não apenas entendo o que outra pessoa sente, mas sinto junto em todos os meus sistemas, inclusive com meu corpo. Vou aos lugares onde aquela experiência traumática ou desagradável ocorre ou ocorreu. A minha experiência, o meu aprendizado, é ver que todos os papéis que estão ou estavam envolvidos naquele fato também existem em mim. Costuma-se dizer, especificamente nas experiências dramáticas dos campos de extermínio, que eu tenho em mim as sementes das vítimas e dos perpretadores, e essa é a grande decisão que se poderia dizer, paradigmática: qual o papel que eu quero nutrir. Isso se torna muito decisivo no que eu faço depois que tenho a experiência como ação na sociedade.
Acha que, de certa forma, aqui no Brasil, em que apenas há 135 anos houve a abolição da escravidão, as sementes dessa tragédia podem ser vistas nessa perspectiva?
Absolutamente, pelo menos na minha experiência. Ano passado nós tivemos um retiro no Alabama (EUA) sobre o mesmo tema, o racismo na América do Norte, e uma constatação é que embora a escravatura tenha sido formalmente abolida, as circunstâncias ou as metodologias que geram limitação para as minorias continuam existindo, então, é preciso ir mais fundo na questão, e ver até que ponto nossa visão de mundo é escravagista ou que penaliza, exclui de alguma forma, as pessoas por serem diferentes. Eu acredito que especificamente no caso do Brasil, nós precisamos revisitar nossa história e nosso presente de um ponto de vista mais lúcido, ver onde estão nossos valores reais na sociedade e onde estão os aprendizados necessários para que a gente tenha um país mais equilibrado, de fato, a partir dos indivíduos e não de um conceito que na prática não é a realidade que vivemos. Pessoalmente, acredito que nesse caso é preciso a experiência dos fatos e não apenas a conceitualização deles, não basta entender as coisas, é preciso ter a vivência delas. Por isso não basta empatia, é preciso ir mais adiante e desenvolver a compaixão por saber como é estar naquela situação.
O senhor também é terapeuta e é sabido que analistas e psicanalistas como Jung e Lacan têm profundo respeito pelo zen. O que pensa sobre essa associação entre a espiritualidade e o psiquismo?
Acredito que são diferentes abordagens para um mesmo ser humano. Então, seja Jung, Lacan, Erich Fromm ou Viktor Frankl, essa questão de ver o ser humano numa abordagem mais ampla se aproxima das visões, não apenas do zen, mas das tradições orientais. No meu caso, a formação que fiz foi numa escola da chamada abordagem sistêmica, então, entendemos que quando atuamos num elemento do sistema, todo o sistema se move. E nesse ponto eu vejo um paralelo muito importante entre vários conceitos dessas abordagens 'psi' mais abertas e os conceitos fundamentais do budismo, como a impermanência e a interdependência. E talvez, o mais sutil, na minha opinião, seja o conceito de um eu que não seja substancial, ele se constrói nas relações. Escolas mais abertas se baseiam em não ter verdades absolutas, elas têm uma verdade que dialoga com a realidade mutável que vivemos, que tem elementos sociais e culturais. Realmente, vejo muitos paralelos e aprecio também aprender com essas visões e acho muito importante também saber distinguir que, às vezes, as pessoas fazem uma confusão, pensando que a meditação possa suprir o papel das terapias. Não é assim. É muito importante definir esses limites, essas fronteiras para que não aconteçam equívocos que tornam disfuncional qualquer uma das práticas. Assim como a meditação não resolve problemas que cabem à terapia trabalhar, assim também, às vezes, as terapias não suprem o sentido que o ser humano está buscando para o seu momento de vida ou seu momento consciencial.
O que o senhor considera os benefícios de uma vida simples?
Uma vida mais simples me dá mais tempo e mais condições de ter um espaço existencial para uma prática espiritual. No meu caso, são as práticas meditativas, mas acredito que tanto na questão pessoal quanto na questão social, como cidadãos planetários, uma vida simples é uma boa opção: ela tem efeitos pessoais em termos de saúde, tem efeitos relacionais e tem efeitos ambientais: não há mais condições de nós sustentarmos o modo de vida que a sociedade pós-industrial propôs, não há mais condições, nós estamos além do limite já, e uma vida simples não é uma vida pobre, é uma vida lúcida perante aquilo que eu posso e aquilo que eu devo fazer como alguém que vive num mundo de relações.
Alguém disse certa vez que a palavra socioambiental, em português, não tem hífen porque questões sociais e ambientais não podem ser tratadas de forma separada. Há muito desamparo no Brasil, muitas pessoas estão vivendo nas ruas. O que é possível fazer em relação a isso?
Penso que há dois caminhos muito importantes. O primeiro é não entrar numa passividade: agir de uma forma pacífica mas propor e trabalhar, nos colocarmos a serviço de uma sociedade mais justa. A começar pelas minhas opções pessoais, haverá um ciclo, seja no consumo ou na solidariedade que proporcione essa sociedade que eu quero ter. Mas há um segundo aspecto que considero muito importante: qual é a visão de uma vida boa que eu tenho? Porque assim como aquelas pessoas que não têm o necessário para uma vida digna aspiram por um ideal irrealizável, baseado em ter coisas, da mesma forma, por exemplo, nós sabemos que hoje os maiores níveis de psicopatologias relacionadas a posse estão nos extratos sociais mais privilegiados em termos materiais. Então, muitas vezes costumo utilizar essa imagem que não é precisa do ponto de vista científico, mas é real do ponto de vista experiencial: que para cada ser humano que passa forme no mundo, e aí nós vamos falar de 850 milhões de pessoas, nós vamos ter quase que o dobro de pessoas que usam medicamentos para tratar estados que resultam da falta de sentido. Porque aí se tem aquilo que nos dizem que é necessário para ser alguém feliz mas você sabe que não está acontecendo. É como aquela ação do hamster, você corre cada vez mais rápido sem chegar a algum lugar nenhum. Conheço uma visão que fala em termos filosóficos que você faz um esforço desesperador para escalar uma montanha e quando chega a um estágio da vida que você pensa ‘agora eu escalei’, você diz: ‘Escalei a montanha errada’. Isso é muito triste, porque a vida não volta, ela não acontece de volta, nós só temos uma vida e ela é breve em termos naturais, comparando com as variáveis da natureza. Então, tem esses dois lados: acredito que temos que agir para gerar condições de uma sociedade mais equilibrada, que é importante em termos sociais e ambientais, mas tenho convicção que temos que trabalhar para trazer a lucidez que esse modelo não proporciona aquilo que ele propõe. É uma miragem, é uma ilusão tão ou mais profunda que a visão de mundo que uma vida materialista propõe.
Quando se fala em budismo, as pessoas costumam pensar que se trata de uma corrente apenas. Recentemente, houve um episódio controverso com o budismo tibetano, envolvendo o Dalai Lama e uma criança, que correu o mundo. Como o zen-budismo interpretou aquela situação?
Não tenho autorização nem autoridade para falar de uma tradição que não conheço. Ouvi os dois lados na mídia, pessoas muito experientes na tradição do Tibet dizendo que não houve nada nesse sentido do que nós imaginamos a partir do nosso referencial cultural, mas, da mesma forma, ouvi e vi manifestações que a Sua Santidade deveria ter tido a sensibilidade de ver naquele evento público a possibilidade de uma interpretação equivocada. O que para mim é importante, para o zen é importante, é trazer isso para a minha realidade, lembrar que o que quer que aconteça na minha caminhada como um praticante é que sou um ser humano, portanto, sujeito a equívocos. O que, para mim, é evidente, é que é bastante pouco provável que um praticante com mais de 80 anos, com a história que a Sua Santidade tem, possa ter por tanto tempo ou em algum momento disfarçado tão bem uma disfunção de caráter desse tipo. Sinceramente, acho muito improvável, mas não tenho condições de falar por ninguém. Acho, do ponto de vista da lógica, que houve um tremendo equívoco na interpretação de uma cultura diferente. Ainda assim, dou valor a pessoas que dizem: 'Mas houve também uma falta de sensibilidade em relação a essa realidade cultural na qual esse evento foi publicamente divulgado’. É delicado, e acho que é uma boa reflexão para os nossos tempos, para não confundir ou não deixar que os papéis se sobreponham à realidade humana de qualquer praticante.
O senhor já esteve antes na Bahia. Acha que há algo que distingue o espírito baiano?
Não estive tantas vezes quanto gostaria na Bahia. A primeira vez foi um TED-X, o primeiro do Nordeste, no Pelourinho. Mas desde a primeira vez, se eu tivesse que te resumir brevemente, até onde eu conheço do Brasil, a Bahia é o Brasil mais brasileiro que conheço, pelas suas complexidades, que sintetiza a complexidade do Brasil. Até onde eu vi, nós temos a desigualdade social de um lado e, por outro lado, a riqueza cultural e de valores. Eu não conheço, talvez por ignorância, nenhum lugar onde o povo, a cultura, conseguiu assimilar de uma forma tão pacífica as dificuldades e as causas e condições de sofrimento. Isso é um grande contributo a um mundo que cultua a mente violenta como um princípio filosófico, repetindo um modelo que gerou a situação. Talvez aqui nós pudéssemos nos apoiar no Paulo Freire, quando diz que, sem educação libertadora, o oprimido acaba sendo o opressor do seu antigo opressor. Isso é muito triste em termos sociais e, me parece, pode ser minha ignorância, digo mais uma vez, que uma base da cultura brasileira é desejar que as coisas não sejam violentas. Nós temos violência estrutural, isso surge muitas vezes pela falta de dignidade muitas vezes em vários pontos da nossa estrutura, mas, no fundo, essa alegria da cultura baiana é das coisas que mais aprecio na cultura brasileira, e uma leveza perante as dificuldades. Não estou em nenhum ponto querendo ser categórico, mas é a minha experiência. Acho que a Bahia tem os maiores desafios que se vê no Brasil, mas também os maiores valores existenciais e sociais que o Brasil tem a oferecer ao mundo. É a minha experiência, não sei se isso é real.
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