MUITO
Juarez Paraíso: "A arte pode aliviar a carga animalesca do ser humano"
Por Daniel Oliveira

Desde a juventude, o artista plástico Juarez Paraíso movimenta-se em diferentes universos. Ficção científica, crítica, fotografia, sala de aula, Carnaval e até cinema. Isso para citar somente uma parte de seus caminhos simultâneos. Um dos expoentes da segunda geração do Modernismo na Bahia, ele possui uma vasta e multifacetada obra artística: de quadros e gravuras até esculturas, cartazes e murais, com materiais e técnicas diversas. Especialmente dedicado à arte pública, algumas de suas obras estão espalhadas por Salvador, como os murais da Secretaria da Agricultura do Estado e do Museu Geológico. Atualmente com 84 anos, tornou-se cedo professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia aos 21, ofício que exerceu por mais de quatro décadas até se aposentar. Sente falta da convivência cotidiana com os alunos mais jovens, entretanto continua conectado com as novidades – sejam os “troços” inventados do outro lado do planeta, sejam as mais recentes e avançadas câmeras de dispositivos móveis. Nas suas palavras, “a grande vantagem de se viver hoje é que o mundo está se transformando rapidamente”. No contexto atual, vê concretizadas as profecias lidas em quadrinhos de ficção científica nos anos 1950, que tanto influenciaram suas escolhas estéticas. Em dezembro, foi eleito para a cadeira 39 da Academia de Letras da Bahia (ALB), sendo o primeiro artista visual a integrar a instituição centenária. A partir do próximo sábado, participa da exposição coletiva Muncab em Movimento, no Museu Nacional da Cultura Afro-brasileira – Centro Histórico, com fotografias e composições digitais. Em entrevista na sua casa, defronte às águas da Baía de Todos-os-Santos, Juarez Paraíso falou da entrada na ALB, de arte e tecnologia, política pública de cultura, da cidade, da experiência com cinema e de suas inspirações.
O senhor foi eleito em dezembro para a cadeira 39 da Academia de Letras da Bahia, ocupada antes por Edivaldo Boaventura. É o primeiro artista plástico que integra a instituição. O que isso significa na sua trajetória?
É uma grande honra e um duplo privilégio, considerando também que estou entrando para ocupar a vaga de um grande educador, intelectual, como Edivaldo Boaventura. Penso que é importante salientar o espírito integrativo e democrático da Academia de Letras da Bahia ao eleger um artista dos pincéis e goivas como um dos seus pares pela primeira vez. Já tive a mesma distinção na Academia de Ciências da Bahia. Ou seja, um artista plástico como confrade de cientistas e artistas da palavra, de literatos. É evidente que isto decorre de um alto nível de percepção humanista, interativa e globalizante das pessoas que compõem estas academias.
Como pensa a sua participação na instituição?
Entro mais para aprender. A Academia de Letras da Bahia, pela importância de sua existência, pela importância do nível intelectual e cultural dos seus membros, tem muito para contribuir com o meu crescimento pessoal. A minha participação, certamente, será mais de aprendiz do que qualquer outra coisa. Existem na academia pessoas que admiro e acompanho há décadas. Sou professor e artista plástico por vocação e um crítico de arte eventual, artesão da escrita, esforçado, abnegado e apaixonado pela obra de arte plástica, visual. Se posso dar alguma contribuição à academia, isto será dentro das minhas limitações. Estarei na academia continuando a minha vida dedicada ao ensino e às artes plásticas e me esforçando cada vez mais na área da crítica de arte.
O senhor é mais conhecido, evidentemente, pela criação de trabalhos no campo das artes plásticas, embora tenha transitado por outros universos. Gostaria que falasse das suas experiências com crítica de arte.
Nunca tive a pretensão de ser literato, mas trabalhei durante muito tempo com crítica. Faço parte ainda hoje da Associação Brasileira de Críticos de Arte. Fui colunista na década de 1960, no Diário de Notícias, depois fiz artigos para o jornal A TARDE. Atualmente, vejo poucas pessoas trabalhando com crítica de arte, a crítica profissional diminuiu muito.
A obra de arte sempre será uma insubstituível ferramenta para a educação integral do ser humano, para o crescimento de sua sensibilidade e percepção criativa.
A Universidade Federal da Bahia é um espaço que marcou parte significativa da sua trajetória. O senhor chegou a morar na Escola de Belas Artes da Ufba, depois tornou-se professor com 21 anos, lecionou por mais de 40 anos e também foi diretor da escola. Qual é a sua avaliação da situação atual da universidade brasileira?
A universidade brasileira hoje vive uma fase crítica, principalmente por conta dos muitos cortes de verbas. Todas as áreas de cultura, aliás. Mas nós já vivemos a ditadura militar, encontramos outros momentos de dificuldade, de sofrência, como se diz hoje. E a gente continuava na linha de frente, tinha força para a mudança. Era jovem, incendiário. Depois a gente vira bombeiro (risos). Falando da Ufba, especificamente, a universidade possui hoje um reitor jovem, muito bom do ponto de vista da relação com todo mundo da comunidade universitária. Nunca houve uma comunicação tão transparente. E acompanho a universidade desde a sua criação, com Edgard Santos, que era uma espécie de príncipe renascentista. As relações dele eram bem generosas com o governo federal e a universidade abundava em dinheiro. Por exemplo, a escola, na década de 1960, tinha material de arte importado de Paris, graças às relações de Edgard Santos e Mendonça Filho, diretor da escola na época. Então, a escola tinha toda uma estrutura de apoio. Foi quando surgiram as escolas de música, de dança, de teatro. Foi um momento importante não só para a cultura baiana, mas para a cultura brasileira em geral.
Sente falta da sala de aula e desse ambiente da universidade?
Sim. Sempre gostei muito do ensino de graduação pela aproximação com o pessoal jovem. Quando você é um professor ativo, quer dizer, consciente, acaba aprendendo mais do que ensina. E esse contato favorece o seu rejuvenescimento. Nunca fui professor de biblioteca, trabalhava na escola com o acompanhamento e a participação dos alunos. Acho que esse foi o meu maior mérito como professor. Não escondia nada, fazia os meus trabalhos, as minhas pesquisas, as pinturas mais contemporâneas e o pessoal todo acompanhava. Mas hoje continuo na pós-graduação, estou sempre examinando mestrado, doutorado.
O senhor atuou no filme Tenda dos Milagres (1997), de Nelson Pereira dos Santos, no papel de Pedro Archanjo. Tinha um interesse em trabalhar com cinema nessa época?
O Nelson Pereira dos Santos era um gênio, um cara fabuloso, e se juntou com outro gênio, Jorge Amado, e deu naquele filme. Eu, humildemente, estava lá no meio dos dois (risos). A minha atuação não foi ruim, não (risos). O convite ocorreu da seguinte maneira: tinha feito uma entrevista com o Nelson para outra coisa, e Jards Macalé, depois que fez a primeira parte, se mandou. Não sei se teve uma briga, alguma coisa assim. Então, Nelson precisou procurar alguém para substituir. E Jorge Amado, que tinha visto a entrevista comigo, disse para ele: “Aí o seu Pedro Archanjo”. E fui chamado. Foi uma boa experiência. Esperava ser chamado para outros, mas não aconteceu (risos).
Teve contato com a geração do Cinema Novo?
Sempre fui fã de cinema, mas nunca tive intimidade com a turma. Além de Nelson, conheci Glauber Rocha, Paulo Gil Soares, mas o pessoal foi todo para o Rio de Janeiro e São Paulo. E Glauber Rocha era mais estrela, louvado por Deus e o mundo, tinha o grupo dele. A área das artes plásticas sempre foi mais tímida.
Por quê?
Falta de incentivo, porque tem muitos bons artistas. A gente vive nessa periferia, de falta de incentivo. Os artistas que mais se projetam vão para São Paulo e Rio de Janeiro, como Emanoel Araújo e tantos outros que vão embora. Figuras geniais como Reinaldo Eckenberger não tinham uma projeção nacional. Um cara que poderia ser valorizado em qualquer país do mundo. Mas, ao mesmo tempo, acho que o mais importante é reverter e dedicar o seu talento para a sua própria cidade, o seu próprio povo. E para isso também precisa ter incentivo.
Há obras de arte do senhor em diversos espaços públicos de Salvador. A cidade vem se transformando com a realização de intervenções (reformas, requalificações) que alteram a paisagem urbana. Nesse contexto, como se insere a arte pública?
É incomensurável a importância da obra de arte pública, como arte monumental, calçadões, esculturas, painéis, grades, objetos de sinalização. O museu, a galeria passa a ser a própria rua, a praça, os jardins, espaços públicos de convivência cotidiana. A obra de arte sempre será uma insubstituível ferramenta para a educação integral do ser humano, para o crescimento de sua sensibilidade e percepção criativa. E, nesse sentido, a obra de arte pública é o ápice de tudo que se possa esperar das consequências da presença da obra de arte porque ela estará sempre em contato com as pessoas, com a comunidade em geral. Infelizmente, os gestores têm sido insensíveis à importância da obra de arte pública. Neste processo de requalificação dos espaços públicos, não vemos uma obra de arte sequer, e muito menos um projeto do Estado, municipal, estadual ou federal, para a obra de arte pública. Além de não promover concursos ou licitações públicas para a produção e implantação de obras de arte pública, também não conserva as poucas que tem. A cidade é completamente carente nesse aspecto. Penso que o Estado deveria ter a obrigação de ter um projeto público para a arte pública dentro da cidade.
Como vê o interesse de jovens na ocupação desses espaços, por exemplo, com o grafite?
O interesse é total. Mas o mercado de artes plásticas e visuais é frágil. A existência de concursos públicos para a obra de arte pública seria uma contribuição fabulosa para a consolidação da profissão do artista plástico e visual e para a humanização e crescimento estético da cidade como organismo arquitetônico e urbanístico. Imagine a existência de obras de escultura e objetos artísticos na Barra, naqueles espaços áridos, amplos e de calor infernal a céu aberto. Ou a participação dos artistas na realização dos inúmeros calçadões que estão a todo momento surgindo, em vários lugares, sob os auspícios das requalificações.
Existem iniciativas de eventos em espaços públicos, como o SSA Mapping, de artes visuais e tecnologia, que mobilizou, no final do ano passado, centenas de pessoas defronte ao Fórum Ruy Barbosa…
São experiências muito importantes e que deveriam se repetir em outras fachadas de edifícios, em interiores de igrejas, em monumentos com suportes de projeção, com tecnologias sofisticadas, programas de computador especialmente criados para este fim, como tem acontecido em algumas catedrais de outros países. Um exemplo extraordinário é o que vem circulando nas redes sociais com a Basílica de Notre-Dame, em Montreal, no Canadá: a experiência Aura, espetáculo de iluminação, projeções e lasers. No breve tempo em que a prefeitura fazia concursos públicos para decoração de Carnaval e Natal, eu e alguns colegas fizemos presépios virtuais com projeções de pinturas de cenas natalinas de autores famosos no Belvedere da Sé e nas paredes do Palácio Arquiepiscopal na década de 1970.
Como enxerga as reconfigurações nas artes visuais no atual contexto de utilização cada vez mais intensa de tecnologias avançadas e, ao mesmo tempo, de uma certa onipresença da internet (e redes sociais) no cotidiano das pessoas?
As novas tecnologias, quando revolucionárias, como o computador, provocam mudanças de comportamento e de paradigmas. O computador transformou o mundo, mudou tudo ou quase tudo. E o celular, por exemplo, levou ao grande público, a milhões de pessoas, a fotografia digital. Importante é que a educação esteja sempre presente, no sentido de que esta grande oportunidade com a fotografia digital seja um instrumento para a educação visual e criativa do indivíduo, do usuário, e não uma armadilha comercial com gastos na reprodução medíocre e sem sentido de centenas e milhares de imagens que o celular é capaz de produzir. Com as novas tecnologias, as artes visuais foram também entendidas e aplicadas como espetáculos de formas, movimentos e cores, para o envolvimento e delírio de multidões. Isto está acontecendo para o cenário de megashows de artistas locais e internacionais. O envolvimento é total e deu um novo caráter às apresentações, transformando-as em espetáculo de som e de efeitos visuais. A cultura digital é impositiva na sobrevivência do indivíduo nesse novo mundo que se descortina.
O senhor cultivou, durante muitos anos, uma relação próxima com o Carnaval, como citou antes, fazendo a decoração nas décadas de 1970 e 1980. De lá para cá, diversas transformações ocorreram. Ainda acompanha a festa?
Tenho a impressão, quase uma certeza, de que o Carnaval, enquanto festa do povo, acabou e não volta mais. A decoração do Carnaval das décadas de 70 e 80 desapareceu completamente. A convergência é para a música e para a bebida alcoólica, a cerveja em especial. As ruas não precisam mais de decoração, vestir-se festiva e artisticamente. O Pelourinho atualmente é uma pequena mostra nostálgica do que já foi o Carnaval baiano, a maior festa popular do mundo.
Do ponto de vista do fazer artístico, o que mais lhe inspira atualmente?
A grande vantagem de se viver hoje é que o mundo está se transformando rapidamente. Você não pode ficar inativo de jeito nenhum, por mais que seja preguiçoso mentalmente. Liga a televisão e recebe uma carga de informação, uma parte manipuladora (risos), as notícias correm rápido, as redes sociais atualizam o tempo inteiro. Estoura uma bomba ou um cara inventa um troço do outro lado do mundo e na mesma hora você está sabendo. E sempre fui fã da ficção científica, aquela que é mais uma profecia, uma antecipação. Tudo que vi nos quadrinhos de ficção científica, com Dick Tracy, está acontecendo hoje. Essas coisas todas me interessam.
O senhor disse uma vez: “A coerência de um artista é a sua verdade”. Como essa verdade pode ajudar o mundo em tempos difíceis como o atual?
Uma coisa é a sensibilidade e a emoção que é comum a todos, fazem parte da nossa estrutura. O que entorpece isso é a má educação, falta de oportunidade, falta de recursos para ser um ser humano solidário. E o artista tem essa sensibilidade mais acentuada, pode perceber melhor as injustiças, criar um trabalho de resistência, estimular a solidariedade, ajudar o próximo. Mostrar que a vida só vale nesse sentido. E o artista pode fazer isso. Quando você ouve uma música de um grande criador, seja um Caetano Veloso ou um Igor Stravinski, se sente menos animal e mais integrado com os outros seres. Nós não somos só intestino, só ódio. Essa que é a valia da arte, o produto estético pode aliviar essa carga animalesca do ser humano.
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