ABRE ASPAS
Lama Padma Samten – Mestre budista
“Não há nada que seja necessário aceitar por fé”
Por Vinícius Marques
Alfredo Aveline, bacharel e mestre em física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atuou como professor de física de 1969 a 1994, quando se dedicou profundamente ao estudo da física quântica. Encontrando afinidade com o pensamento budista, sua curiosidade sobre a prática cresceu significativamente no início dos anos 80 e culminou na fundação do Centro de Estudos Budistas Bodisatva (Cebb), em 1986. Foi ordenado como Lama em 1996, título que significa líder, sacerdote e professor. Agora conhecido como Lama Padma Samten, ele supervisiona unidades do Cebb em vários estados do Brasil, incluindo Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Bahia, com sedes em Salvador e no Recôncavo. Nesta entrevista, o mestre budista compartilha sua experiência de transição da ciência para o budismo, sua atuação na Bahia e visões sobre as filosofias budistas no mundo contemporâneo.
O senhor é graduado e mestre em Física. Utiliza, de alguma forma, seus conhecimentos na área de formação nos seus estudos acerca do Budismo?
Sou bacharel e mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, isso na década de 1970, já faz um pouco de tempo. Lecionei até o início dos anos 1990, no departamento de Física. Eu encontrei, de fato, questões filosóficas muito interessantes no que diz respeito à física e dizem respeito ao budismo. Isso, para mim, foi muito importante. Foram coisas que transformaram os modos pelo qual eu me relacionei com a universidade, me relacionei também com a minha própria vida. Terminei me dedicando inteiramente ao budismo a partir dos idos da década de 1990. A física quântica, especialmente no budismo, trabalha de um modo muito sofisticado sobre a natureza da realidade. Então, nós observamos como a realidade luta pelas nossas mentes, como nós consolidamos a visão do que é certo, do que é errado, do que é verdadeiro e do que é falso. A gente vai entendendo isso de um modo mais profundo. São questões psicológicas ou filosóficas, mas são questões que trabalham diretamente com a ciência também, a medicina com a psicologia, e também com a física de partículas, a física da matéria inanimada.
Como foi sair da ciência para a religião?
Quando pensamos em religião, pensamos em alguma coisa que vamos incorporar, que vai ser uma revelação e vai acontecer a partir de uma transmissão de grandes líderes ou de enviados especiais, profetas. Já a visão budista não opera desse modo, ela opera através da meditação e da observação interna de como que a mente opera. É um processo muito sofisticado porque nós passamos a olhar o mundo externo e simultaneamente olhamos o mundo interno. Mas não há nada que seja necessário aceitar por fé. Por exemplo, se nós quisermos melhorar nossa vida, nós vamos matar os outros e assim melhorar nossa vida? As pessoas dizem 'Não, não é'. Quando elas dizem isso, elas olham para aquilo e elas mesmo acertam essa verdade. Se você quiser melhorar a sua vida, se você tratar os outros de forma amorosa, compassiva, isso é um bom caminho? As pessoas vão dizer 'Sim, com certeza. Esse é um bom caminho'. Então, não é assim, 'Não mate e trate os outros compassivamente, amorosamente!'. É uma pergunta. E a gente observa se aquilo faz sentido ou não faz. Todas as verdades budistas, tudo aquilo que os budistas vão seguindo, depende da própria compreensão, não é algo que é colocado externamente. E esses fenômenos vão sendo aprofundados. Por exemplo, por que as pessoas tomam visões de um certo tipo e fazem ações de um certo tipo? Por que isso? Então, a gente entende como é que funciona a base da mente do outro, como é que brotam os impulsos, como é que brota a energia. Funciona assim.
Já são mais de 30 anos desde a fundação do Cebb. Como vocês têm se atualizado e qual a principal novidade que o grupo encontrou?
O Bodisatva começou no ano de 1986. Quando surgimos, estudamos os clássicos do Bodisatva e meditamos. A gente meditava, estudava os textos, meditava de novo, tomava um chá, conversava, e assim nós íamos observando como aqueles ensinamentos traziam profundidade na nossa forma de pensar e na nossa forma de agir no mundo. A gente começou assim. Mais adiante, conseguimos ter uma sede própria a partir da generosidade de uma pessoa. Ganhamos uma sala e passamos a ter atividades diárias desde a madrugada. Progressivamente, começamos a fazer retiros no final de semana, retiro de uma semana inteira, de dez dias, e a gente foi aprofundando. Fomos convidando mestres para nos visitar, nós recebemos muitas pessoas, entre elas sua santidade Dalai Lama, que veio a Porto Alegre em 1992. Nós também recebemos o interesse de muitos outros lugares, passamos a publicar uma revista de circulação nacional, que circula até hoje, a Revista Bodisatva. Hoje nós temos pessoas com muitas diferenças de idades encontradas nos centros budistas ligados ao Cebb. Nós ainda partimos para os projetos de áreas rurais, de comunidades rurais. Hoje são dez comunidades rurais em diferentes partes do país. Nós temos, por exemplo, uma área de 16 hectares próximo da cidade de Viamão, no Rio Grande do Sul. Lá, nós vivemos em torno de 200 pessoas, temos uma escola dentro e temos um templo. Recentemente, acabei visitando Salvador. Montei um grupo em Salvador, em Amaralina, que é a sede daí, e nós temos uma sede rural também em torno de 10 hectares no Recôncavo Baiano. Tem um tempo magnífico, muito grande, muito bonito e nós temos contato com as comunidades ao redor. Fomos andando desse modo. Criamos o Instituto Caminho do Meio que trata dessa interface do budismo com as questões sociais, culturais, principalmente. O Instituto sustenta duas escolas que vão até o final do primeiro ciclo. Nós vamos expandido o contato com as pessoas e buscando trazer benefícios, proteger o meio ambiente e melhorar as estruturas sociais, ao mesmo tempo nós vamos estudando, traduzindo e fazendo retiros, com atividades de vários tipos.
De que forma vocês protegem o meio ambiente?
As nossas áreas são completamente arborizadas. Nós temos programas, por exemplo, em Alto Paraíso (GO), com uma atividade que convida os jovens das várias escolas a conhecer o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Nós descobrimos que há muitos jovens morando ali, a maior parte não conhecia o Parque, que fica a uns 36 quilômetros da própria cidade de Alto Paraíso de Goiás e também não conhecem o ambiente. Eles estão, de um modo geral, fixados na cidade, nas suas rotinas e não conhecem ao redor. Nós consideramos que esses temas são cruciais. Na medida que nós conhecemos melhor esses lugares, nós temos uma tendência a protegê-los. Além dessas ações diretas, nós também temos eventos regulares no final do ano. Na passagem do ano, dedicamos quatro dias para encontros com pessoas que vêm de vários lugares ou participam online. E nós tratamos o tema de educação, meio ambiente, saúde e como podemos construir um mundo melhor, um mundo mais feliz, mais organizado para todos. O ano termina com o encontro inter-religioso, com pessoas de várias tradições religiosas que sentam conosco, sonham junto conosco como que podemos construir mundos melhores. Nós todos nos ouvimos e utilizamos isso para estimular nossas ações para o ano subsequente.
Na última semana o senhor esteve na Bahia, onde coordenou retiros e curso de meditação. Como avalia o cenário e o interesse pelo budismo aqui no estado?
Tenho esse encontro com os grupos da Bahia desde o final da década de 1990. Portanto, tenho vindo muitas vezes à Bahia. Tenho muitos amigos, muitas pessoas que também participam já há bastante tempo. Eu tenho esse contato, as pessoas me conhecem. Mas sempre que venho à Bahia me surpreendo pelo calor humano, pela alegria dos baianos, pela gentileza, pela hospitalidade e também pela profundidade das perguntas e do interesse que eles têm em aprofundar suas visões espirituais, de um modo não-sectário. E trazem também suas características do contato com outras tradições e conversam de uma forma muito aberta. Acho um lugar maravilhoso e muito propício para o progresso espiritual.
Quantas pessoas vivem nas unidades do Cebb da Bahia e como é feita a escolha das pessoas que moram lá?
De modo geral, as pessoas entram num projeto. Elas têm destinadas a elas uma área onde podem construir uma casa e morar. Nós temos também outros espaços que são alojamentos, onde as pessoas podem ficar e fazer retiros por tempos variados. Por exemplo, agora tem uma jovem que vai ficar três meses dedicando parte do tempo ao retiro e parte do tempo aos estudos, da redação de uma tese de doutoramento em antropologia. Tem situações variadas. Pessoas que chegam no final de semana, ficam no alojamento, fazem as atividades e depois vão embora, seguem suas rotinas. Mas as pessoas que querem ficar mais tempo, querem praticamente residir na comunidade, isso é uma coisa possível. Algumas comunidades têm esse perfil. As pessoas chegam para retiro curtos, médios, longos, atividades de instrução, estudo, mas podem morar. São formas que a pessoa pode se aproximar. Eu não sei exatamente o número de pessoas que estão no Recôncavo, que tenham moradia, mas eu diria que tem pouco mais de 20 casas lá nessa comunidade.
Um dos aspectos da filosofia budista reflete como a mente é capaz de construir realidades e torná-las concretas. No atual momento da sociedade, em que notícias falsas têm se propagado com maior facilidade e se tornando muito influentes, como o budismo tem conduzido isso?
Essa é uma questão bem delicada. Acreditamos que as realidades são plásticas, construídas, e nós podemos construir realidades. No budismo, a gente não se dedica muito a se contrapor a outras visões, fazemos encontros onde a gente sonha também sobre como poderiam ser realidades melhores para nós todos, aproveitamos a nossa própria experiência sobre o que está indo bem, o que pode ir melhor, e vamos funcionando a partir dessas visões. Desse modo, nós fazemos a nossa própria gestão e aspiramos que as pessoas também utilizem esses métodos para ampliar o que tem sido bom para elas e evitar o que tem sido ruim. A gente acredita que esse método de reflexão em grupo é muito útil. Seguimos sonhando, imaginando como fazer as coisas andarem melhor e progressivamente vamos melhorando, fazendo as coisas andarem numa direção mais favorável. Isso é um bom método, independentemente de haver ou não fake news.
Nas eleições do ano passado, o senhor promoveu um movimento que resultou na Carta Fé na Democracia, que trazia um posicionamento contrário à reeleição do ex-presidente Jair Bolsonaro. Como a comunidade budista reagiu a isso?
Bom, a gente fez exatamente isso que eu estava descrevendo. A gente se reuniu e pensou: O que pode andar melhor? O que pode ser pior? E a gente viu que a democracia é um valor superimportante na questão de ultrapassar os referenciais que vêm de processos colonialistas e que vêm de processos de exclusão racial, sexual, etc. Vimos, em conjunto, que isso não era uma boa ideia. Nós achamos que se a gente quer construir mundos melhores, nós não deveríamos promover a venda indiscriminada de armas e uma série de propostas que pareciam inadequadas. A gente pensou que o ponto essencial é proteger as pessoas, proteger a natureza, proteger os rios e se nós queremos viver de uma forma feliz, a gente precisa se olhar de uma forma pacífica uns aos outros. Nós olhamos isso. E quando vimos os programas, a gente pensou 'Vamos promover aquilo que diz respeito ao que nós pensamos que seja o melhor possível à visão budista'. Tivemos um movimento amplo, que ultrapassou a noção dos grupos budistas e atingiu vários setores da sociedade e nós ficamos muito felizes por termos tido tanta recepção, apoio. Foi muito relevante para nós. Muitas instituições assinaram os documentos e nós tivemos essa repercussão ampla. Mas não somos... A gente evita gerar a emoção que nós somos contra alguém e que nós temos inimigos. Nós não estamos lutando contra pessoas e contra grupos, nós estamos promovendo valores melhores, referenciais melhores, e eventualmente políticas públicas, no ponto da educação, da saúde das pessoas e nós estamos numa situação muito difícil no planeta inteiro. E isso só vai melhorar se nós fizermos uma união numa capacidade de compreensão mais ampla.
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