MUITO
Lazzo Matumbi completa 40 anos de carreira solo com coerência e ativismo
Por Gilson Jorge
Depois que o Chevrolet Cruze preto cruzou a portaria do condomínio em que mora, perto da Praia da Sereia, Lazzo abaixou o vidro e pediu ao porteiro permissão para estacionar por alguns minutos o carro ali mesmo, perto da entrada, enquanto concedia entrevista.
Andou alguns metros em direção ao pequeno sofá na área externa e aceitou tirar a máscara para algumas fotografias. “Mas vocês vão se afastar de mim, né?”, disse com um sorriso à equipe de reportagem.
A luz do dia estava ótima e o cantor aceitou continuar as fotos e responder às perguntas à beira-mar. Lazzo foi pontual, mas a confirmação de que a conversa aconteceria veio apenas 15 minutos antes do horário marcado. Um seco sim respondia à pergunta feita mais de uma hora antes.
Não foi estrelismo. Desde o início da quarentena, em maio, Lazzo dispensou a cuidadora de sua mãe, dona Minervina, 94 anos, e foi morar com ela durante esse período. Quando termina o expediente da secretária, é o filho único da mulher que o levava para as rodas de samba na Federação, durante sua infância, que faz a comida, dá banho e cuida dela.
Por conta dos cuidados com a mãe, Lazzo nem conseguiu acompanhar integralmente, no último domingo, a primeira live do Ilê Aiyê. Bloco no qual cantou entre 1978 e 1980, quando saiu, há 40 anos, para pavimentar a sua carreira solo, que começaria em 1981 com um show no Teatro Vila Velha.
Era o princípio de uma jornada que transformaria o menino nascido na Garibaldi e criado em uma pequena comunidade de Simões Filho em uma das vozes mais marcantes da música baiana e do ativismo pela igualdade.
O prédio em que Lazzo morou durante a adolescência, o Conjunto Residencial Politeama, o Minhocão, é um dos típicos imóveis descritos por Gilberto Gil, em Refavela, que diz: “Do salto que o preto pobre tenta dar quando se arranca de seu barraco” para uma residência financiada pelo BNH (Banco Nacional da Habitação, extinto em 1986). Filho de um funcionário da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), Lazzo deixou os pais em Simões Filho e veio morar sozinho, dos 13 aos 15 anos, no prédio que era um símbolo da classe média emergente da década de 1970.
Um dia, sentado na rampa de acesso ao edifício com um grupo de amigos negros de pele mais clara do que a dele, foi abordado por uma transeunte que julgou tratar-se de um funcionário. “Eu moro aqui”, disse o jovem, que recebeu gozação por parte dos amigos, que não se sentiram discriminados.
O episódio ainda é lembrado pelo cantor para ressaltar a necessidade de ação coletiva contra o racismo e a violência policial em relação aos negros. “Se não tomarmos posicionamento, esse mal vai atingir toda a sociedade”.
O cantor traz como exemplo a cultura vigente na década de 1970 da apresentação de mulheres negras seminuas em boates cariocas. “Depois, as mulheres brasileiras em geral começaram a sofrer discriminação no exterior como objetos sexuais”, compara.
Sorriso aberto
Desde que surgiu no cenário artístico, com seu vozeirão inconfundível e sorriso aberto, nunca separou música e militância. É capaz de falar com entusiasmo, durante mais de uma hora, de um mesmo tema que esteja em sua cabeça. Foi assim que surgiu, em 1986, o seu primeiro grande sucesso, A Alegria da Cidade. De volta a Salvador, depois de uma temporada de três anos em São Paulo, o cantor manifestou ao amigo e poeta Jorge Portugal o seu desgosto com o sucesso de Fricote, música de Luiz Caldas que falava da “nega do cabelo duro que não gosta de pentear”.
Portugal não disse muita coisa na hora, mas no encontro seguinte mostrou a letra pronta para que Lazzo casasse com a melodia. A chance de dar o recado poderia ter sido também sua ascensão à fama. Um produtor musical, cujo nome ele não revela, havia se disposto a bancar a primeira gravação do artista promissor. Mas ao ouvir a canção, desqualificou a letra, chamando-a de medíocre, e fez Lazzo recuar. “Eu não vou mais gravar porque a música já cumpriu sua missão, revelou um racista”, afirmou o cantor.
Duas semanas depois, ele passou a música para a também principiante Margareth Menezes, que estourou em todo o país. Um detalhe é que, por demanda da gravadora, a frase “sou a cor da Bahia” virou “sou o som da Bahia”.
Dois anos depois, quando o Brasil comemorava o centenário da Abolição da Escravatura, Lazzo foi convidado por um amigo a falar em um seminário promovido pelo movimento negro. Quando começou a cantar a música que era sucesso absoluto e o público, incentivado pelo anfitrião do cantor, foi na palma da mão, Lazzo parou e disse que não era o momento de bater palmas, mas de prestar atenção na letra. Na saída, ouviu do amigo: “Como você faz uma desfeita dessa? Me desmoralizou na frente de meus amigos. Eu que puxei as palmas”.
Amigo de Lazzo há três décadas, o cineasta e escritor André Luiz Oliveira avalia que o cantor se mantém longe de discursos panfletários, mas possui um discurso contundente, preciso. “Para mim, ele é um orixá”, afirma Oliveira, que se encarregou de apresentá-lo a Jimmy Cliff, que morou em Salvador durante quase toda a década de 1980.
Cliff convidou Lazzo para abrir os seus shows durante uma turnê de três anos, que incluiu o Rock in Rio de 1991 e apresentações na Europa. O reggaeman ainda gravou Me abraça e me beija, com Margareth Menezes e o próprio Lazzo nos backing vocals.
Reggae
A identificação de Lazzo com o reggae reforçou o caráter ativista de sua carreira, sem diminuir o impacto artístico de suas apresentações. Em fevereiro de 2000, o cantor fazia uma performance carnavalesca em um palco no Centro Histórico embalada por reggae.
No meio do público, a produtora musical e bibliotecária norte-americana Dera Tompkins reagia a cada música com uma saudação bem particular: “Eu dizia braaam, braaam, que é uma saudação típica dos shows na Jamaica”, relata Dera, que veio a Salvador para conhecer o Ilê Aiyê e ficou sabendo do show de Lazzo.
Dera considera Lazzo como um artista importante para toda a diáspora africana. Não apenas por ser um cantor talentoso, mas, em suas palavras, “um poderoso artista com consciência política que canta, fala e incorpora a história do povo africano desde a saída dos navios negreiros até o presente”. Que pode entreter o público com sua voz aveludada e elegante presença de palco, mas também ensinar como um professor a jornada afro-americana, sua espiritualidade e resistência. “Lazzo é um rei africano que está sempre vestindo sua coroa. Um artista do povo”, sentencia.
No último dia 10, Lazzo foi convidado a falar sobre apropriação cultural no Programa Sarau, apresentado pelo jornalista Arlon Souza. Um dos tópicos foi a live em que a atriz Taís Araújo questionou Ivete Sangalo sobre o pouco reconhecimento recebido por artistas negros da axé music, como Margareth Menezes, citada pela atriz.
“Não vejo problema em que se apropriem, desde que haja um reconhecimento da matriz. E nesses 30 anos de movimento (axé music) eu não vi isso”, afirma Lazzo.
Cachês
A discussão sobre apropriação cultural na música, que remete a Elvis Presley ficando famoso e rico com a utilização de uma estética inaugurada pela cantora gospel negra Sister Rosetta, voltou à tona nas últimas décadas com o branco Eminem tornando-se o rapper mais conhecido. E, localmente, com artistas brancos (ou quase brancos) tendo os cachês mais altos e presença frequente na mídia.
Nos meios acadêmicos, a discussão extrapolou para a admissibilidade do uso de torços por mulheres brancas. “Eu respeito os militantes que pregam isso, mas acho que é uma coisa boba”, afirmou o professor de filosofia da Ufba Milton Moura. Ele cita o caso de Daniela Mercury, que, a seu ver, tanto se beneficiou do Ilê Aiyê quanto trouxe benefícios ao bloco com a exposição. “Tanto que o pessoal do Ilê gosta dela”.
Lazzo não trata diretamente com as estrelas da axé music de questões raciais ou apropriação cultural. “Eles são meus colegas e conhecem minhas posições”. Mas reclama que a indústria do Carnaval como um todo devolve muito pouco à cidade em termos de vida cultural. Sente falta de um museu voltado para a arte contemporânea de origem africana. De um local onde música negra de diferentes estilos possa ser apreciada. “Perdemos até os pontos de encontro. Antes a gente se batia com um compositor num bar do Pelourinho e surgia uma coisa nova”, diz.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes