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08/09/2024 às 2:00 - há XX semanas | Autor: Luiz Freire*

OLHARES

Leituras da cidade por Wylliams Martins

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Imagem ilustrativa da imagem Leituras da cidade por Wylliams Martins
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Em uma sala de estar, um grupo de professores conversam, bebem, petiscam. Repentinamente, um deles percebe uma obra na parede e começa a questioná-la, ao tempo em que vai deduzindo sua constituição. Parece uma composição abstrata, se não estivesse parte da palavra “Paraíba”. Há falhas, fragmentos de reboco, manchas, marcas de solados de sapatos, resíduos humanos, fuligens, poeira, formas não reconhecíveis, manchas de fluidos corporais: catarros, talvez.

Expliquei que o artista selecionou parte de um muro pichado, espalhou resina poliéster na área escolhida, aderiu um tecido de voil à parede através da resina de poliéster distribuída por uma trincha, esperou duas horas para a secagem, removeu com rapidez, armou em um chassi e expôs em galeria de arte.

À medida que expliquei o processo, o interesse do pequeno grupo aumentou, sucedendo a fase da reflexão do ato de apropriação e deslocamento de algo anônimo, corriqueiro, coletivo, casual, marginalizado, tido como sujo e desprezível.

O projeto gerou a exposição Peles grafitadas, na Galeria do Solar Ferrão (2007), patrocinada pela Braskem com apoio do Ministério da Cultura. Consistiu de pesquisa do Mestrado em Artes Visuais da EBA/Ufba realizada por Willyams Roberto Martins Santos (Teresina, PI - 11/03/1960), sob a orientação do professor Roaleno Costa. As ações foram geradas pela técnica do scrap e argumentadas na dissertação Peles Grafitadas; uma poética do deslocamento (2006).

A exposição das peles provocou muitas reações contrárias nas mídias. Cartazes acusando Willyams Martins de “Ladrão de Graffiti” foram espalhados pela cidade: no Comércio, no muro da Escola de Belas Artes, em outdoor, até na Boca do Rio. Um desses cartazes, Williams descolou e preserva-o em sua casa.

Os grafiteiros acusam-no de “privatizar a arte de rua, colocando em uma galeria para poucos”, reclamam também da apropriação desautorizada e da ausência dos créditos da autoria dos artistas de rua.

Os protestos foram reunidos em um blog (artistapratico.blogspot.com) e a querela foi alvo de matéria publicada na Revista Piauí nº 78 (Março de 2013), assinada pela jornalista Luiza Miguez, na qual Willyams afirmou “sou um arqueólogo urbano da memória de um tempo da cidade”.

Outra matéria circulou no Jornal A TARDE, de 15 de setembro de 2007, assinada pelos jornalistas Danilo Fraga e Marina Novelli. Defendeu-se dizendo que o seu interesse foi menos os grafites e mais as várias pichações e marcas deixadas nos muros da cidade.

Caetano Veloso argumentou a seu favor em uma mesa de discussão disponível no YouTube, entendeu a disputa como uma “briga às avessas”, no que evocou a apropriação feita por Marcel Duchamp da imagem da Monalisa de Leonardo da Vinci, apresentando-a com bigodes.

Não tenho notícias na Bahia de ações artísticas que levantaram tamanha celeuma como essa da apropriação e deslocamento de Martins, cujos desdobramentos consistiram na afirmação da autoria e maior visibilidade dos artistas de rua, na diversidade de suas ações, que passaram a incluir ambientes consagradores, encomendas privadas e oficiais e, sobretudo, no cumprimento de um dos papeis da arte na contemporaneidade, que é o de provocar reações e reflexões.

Os deslocamentos de Martins equivalem ao que fez Gustavo Barbosa na década de 1980, recolhendo os grafitos de banheiro e publicando-os na forma de livro sob o título Grafitos de banheiro: a literatura proibida (1984-86). Lembram também a mixagem de fragmentos de músicas autorais feita pelos DJs, que somente agora são alvos de reclamações por parte dos compositores e cantores das músicas parcialmente utilizadas.

No restauro de pinturas, a técnica do scrap já era usada para recuperar camadas superficiais e subjacentes de pinturas murais e sobre tela, mas Williams afirmou desconhecê-la, desenvolvendo a técnica sem o conhecimento prévio.

Nascido em Teresina, Wylliams veio a primeira vez à Salvador no carnaval de 1980, com 22 para 23 anos de idade, atraído pela cultura musical de então, dos ecos da Tropicália, pelo fato de Torquato Neto ter aqui vivido e difundido a efervescência baiana no Piauí. Terminou permanecendo por ter sido conquistado pela cidade, sua arquitetura antiga, pela multidão e dinamismo. Em Teresina fez teatro, cantou no coral do Centro de Estudos e Pesquisas Interdisciplinaridades, do Maestro Reginaldo Carvalho.

Filho de um escriturário da Polícia Federal, Francisco Santos, e a mãe enfermeira, Maria das Graças Santos, é o segundo filho de oito, e distinguiu-se juntamente com uma irmã pelos traços indígenas herdados dos avós paternos, que eram indígenas, ausentes nos pais e nos demais irmãos.

Em Teresina, trabalhou com ilustrações, montagem de livros e jornais em uma gráfica, e na adolescência pintou figuras em tela para presentear a família e na escola para atender as demandas das datas cívicas. Estudou em escola militar, em escolas civis públicas e particulares, pertencendo, portanto, a uma classe média.

No ginásio, pintou murais na Escola da Vila Militar contra as guerras em outros países e já pichava, apesar das advertências do pai. Quando fazia teatro pichava com spray a frase: “Arde onde há arte”. Em Salvador, também fez pichações assumindo os riscos, mas sua detenção policial se deu motivada por sua aparência, modo de vestir e cabelo de moicano.

Em Salvador, morando na Residência Universitária da Ufba, montou a banda Jovens sem Lei, mudando o nome para Dever de Classe. Montou a loja punk Not Dead , na Rua Chile, quando recebeu a notícia por meio de Jardelice Santa Isabel que tinha sido aprovado no vestibular para o bacharelado em Artes Plásticas na Ufba.

Lembrou que sua prova de aptidão artística foi avaliada pelo professor Juarez Paraíso e que concebeu um desenho de “uma cidade de prédios imensos e um ninho de favela ao redor”. Trabalhou à época na gráfica do Colégio Apoio, os donos, os irmãos Gil e José Newton, favoreceram seu estudo e sua estadia em Salvador.

Como trabalhava e estudava, concluiu o curso em 10 anos, depois de muitos recursos solicitando a permanência. Identifica a Escola de Belas Artes como “um livro aberto”, assinalando o grande incentivo recebido da professora Sofia Olszewski Filha e do quanto usufruiu da biblioteca da instituição.

Estendeu as peles grafitadas para a Penitenciária Lemos de Brito, onde descolou imagens das paredes e conviveu com os internos, expondo os resultados na Galeria Alban, galeria que ainda hoje o representa. Notou diferenças em relação aos contextos de rua: “Há muito desabafo dos detentos, erotismo (heterossexual) desenhado e escrito; mais colagens que pichações; nada de política; muitas referências religiosas e de times de futebol. Casos singulares são as letras, que também são desenhos”.

Sua tese de doutorado foi teórica, centrada na temática denominada de Descolagens Vadias: Apropriação dos vestígios da cidade contemporânea – uma experiência de ressignificação na arte.

De baixa estatura, franzino, voz baixa, pausada, atento, com algum sotaque piauiense, segue seu trabalho batalhando pela sobrevivência em um cenário sempre adverso aos artistas, tendo que fazer múltiplas atividades, algumas sempre cultivadas, como a de vocalista e letrista da banda de rock Dever de Classe.

*Doutor em História da Arte, professor da Escola de Belas Artes (UFBA) e museólogo

*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE

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