OLHARES
Lita Cerqueira, um espírito indomável
Com uma história de vida marcante, Lita declara que sempre gostou de arte
Por Cristina Damasceno*
Lita Cerqueira é uma daquelas fotógrafas que quando a gente conhece fica difícil esquecê-la. Tive o prazer de encontrá-la para conversarmos sobre sua exposição, O Povo Negro é o meu Povo, que atualmente está em cartaz na galeria da Caixa Cultural Salvador.
Com uma história de vida marcante, Lita declara que sempre gostou de arte. Na sua juventude, antes de se dedicar à fotografia, participou de um grupo de teatro amador e lembra de frequentar a Escola de Belas Artes.
Sua história com a fotografia já dura 50 anos. Começou no Rio de Janeiro quando com algum conhecimento da técnica fotográfica adquirida de maneira autodidata, despretensiosamente, fez algumas fotos de seu filho e de outras crianças em uma praça, perto de onde morava. Na época, os pais de algumas daquelas crianças compraram as cópias. Só então que ela se deu conta do seu talento para a fotografia.
Posteriormente, em Salvador, reencontrou alguns amigos, os irmãos Marcos e Sérgio Maciel, que na ocasião tinham aberto um estúdio fotográfico, chamado Lambe Lambe, na rua Princesa Isabel, Barra, e a convidou para trabalhar com eles. Lita iniciou fazendo retratos 3 x 4, e em seguida começou a acompanhá-los nos registros das festas de largo e, também, a filmar com câmeras super 8.
Exposição
A exposição O Povo Negro É Meu Povo tem a curadoria de Janaina Damaceno, que teve a difícil e cativante tarefa, penso eu, de escolher, dentre cerca de 50 mil fotografias, uma seleção que representasse parte da obra da considerada primeira fotógrafa negra baiana.
Dividida em eixos, a exposição, além de apresentar imagens do período em que ela se dedicou a fotografar espetáculos, abrange, ainda, temas relacionados à cultura baiana como o sagrado, nas procissões; o profano, nas festas de largo; retratos expressivos da população afrodescendente; cenas vibrantes do jogo de capoeira, com o mestre Cebolinha, e algumas imagens pessoais, referentes à sua família. A dinâmica expressa em suas fotografias nos leva a perceber seu envolvimento no que se propunha a fotografar.
Lita captura a leveza do movimento do caminhar das irmãs da Irmandade da Boa Morte em procissão, o brilho dos colares e adereços, as minúcias do bordado em rechilieu e os detalhes escondidos nas pregas dos tecidos escuros de suas vestes.
A diversidade de contraste em suas fotografias em preto e branco, sobretudo, a beleza e o brilho da pele negra reproduzida em quase todas as imagens vistas na exposição, chama minha atenção. Diante da qualidade dos trabalhos apresentados, me senti levada a abordar algumas questões referentes às limitações técnicas iniciais dos filmes fotográficos preto e branco e, seguidamente, o desprezo da indústria fotográfica colorida analógica em reproduzir, no passado, tons de pele que não fossem brancos.
Limitações
Estando presente em tudo o que vemos, a cor exerce grande influência em nossa percepção e entendimento no ato de visualizar uma cena real e uma imagem. Na fotografia preto e branco, as cores são distinguidas a partir de uma escala de entretons que vai do branco ao preto.
Houve um tempo que por mais hábil e conhecedor da luz que fosse um fotógrafo, ele se esbarrava com empecilhos da técnica e a ausência de materiais que garantissem bons resultados na impressão das cópias fotográficas.
Inicialmente, os filmes fotográficos tinham uma emulsão ortocromática, não eram sensíveis a todas as cores do espectro visível, reagiam naturalmente ao azul e ao verde, sendo insensíveis à cor vermelha. O fotógrafo oitocentista se confrontava com vários obstáculos, principalmente quando capturavam o céu, que aparecia todo branco, super exposto. Também os elementos vermelhos da composição mostravam-se escuros na reprodução das imagens.
Só na primeira década do século 20 que surgem os filmes preto e branco pancromáticos, sensíveis às cores vermelha, verde e azul. Com a descoberta de corantes, que propiciavam a sensibilização da cor vermelha, foi possível reproduzir um espectro mais amplo de luz em gradações de cinzas. Os filmes pancromáticos proporcionam a separação entre as cores do motivo fotografado, a exemplo do vermelho e marrom, favorecendo principalmente a diferença de nuances de pele.
Cartão Shirley
Entretanto, na fotografia analógica colorida, desde o lançamento dos primeiros filmes, nos anos 1930, a reprodução de tons da pele preta se tornou um obstáculo. O padrão desenvolvido pela indústria fotográfica da época para calibração das cores na impressão das imagens foi baseado em referências da cor da pele branca.
O conhecido “Cartão Shirley” era a fotografia de uma funcionária branca da Kodak que serviu de modelo, durante algumas décadas, como cartão teste para ajustar as cores na captura e confecção nos estúdios e laboratórios fotográficos. Tendo a pele branca um caráter maior de reflexão, ficava muito difícil com este “cartão padrão” fotografar outros tons de pele.
Somente nos anos de 1970, pressionados pela indústria que produzia objetos e alimentos em degradês de marrom, a Kodak começou a produzir filmes com uma faixa maior de sensibilidade. Apenas em 1995 a empresa passou a adotar um cartão com códigos de informação e equilíbrio de cores para distintas tonalidades de pele.
Maestria
Voltando à exposição, que pode ser visitada até 29 de dezembro, na galeria é possível ver imagens do período em que Lita Cerqueira fotografava shows de cantores da música popular brasileira, em especial alguns artistas que formaram o movimento Tropicália, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia, com os quais a artista teve convívio.
Quando me referi a estas imagens, Lita muito espirituosa brincou: “Acho que comecei a fotografar shows para não pagar a entrada”. Sem dúvidas, estes registos, além de terem sido capturados com muita maestria, expressam de forma singular parte da nossa memória cultural.
Com um temperamento forte, não se deixando controlar por nada, Lita Cerqueira se define como um “espírito indomável”. Decerto, sua caminhada revela uma dinâmica admirável, ela transitou em variados ambientes.
Ao longo de sua carreira, fotografou algumas produções de cinema com diretores conhecidos, a exemplo de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, entre outros. Nos anos 1990, conta que teve a ideia de produzir cartões-postais. O projeto resultou em uma coleção com retratos e paisagens da Bahia, que foram lançados no mercado, comercializados, geralmente em bancas de jornais, circulando em vários estados do Brasil, inclusive no exterior.
Em seu currículo, a fotógrafa possui obras na Pinacoteca de São Paulo e no Museu AfroBrasil. Já integrou várias exposições coletivas e individuais fora e dentro do Brasil, tendo fotografias publicadas em revistas, livros, capas de CDs e discos.
Representada na França por Ricardo Fernandes Gallery, ela atualmente está muito presente no circuito cultural nacional, além de expor em Salvador. Seu trabalho pode ser visto também na exposição coletiva Ancestral Afro-Américas, no Museu de Arte Brasileira, FAAP.
Enfim, quando marquei para encontrar Lita Cerqueira era uma sexta-feira, eu não a conhecia pessoalmente, então, antes de chegarmos ao local combinado nos falamos, e ela disse que estava de branco e eu respondi que estava de preto, parecia até que tínhamos combinado. As poucas horas que estive com ela pude perceber seu entusiasmo pela fotografia, perseverança e força de viver. Obrigada, Lita!
*Doutora em Artes Visuais e professora de fotografia na EBA (Ufba) | [email protected]
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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