LIVRO
Literatura infantil baiana tem crescimento vigoroso
Mercado editorial conta com novos autores e ilustradores de excelência
Por Gilson Jorge
Os filmes norte-americanos exibidos na Sessão da Tarde, pela Rede Globo, foram um entretenimento importante na adolescência do escritor Breno Fernandes, em Riacho de Santana, cidade a 715 de Salvador, que não dispunha de biblioteca em 2002, quando ele começou a produzir textos, aos 15 anos. A programação de TV atiçava a criatividade, mas faltava conexão com a realidade.
"A gente via os caras comendo ovos com bacon no café da manhã, indo para a escola arrumados e praticando futebol americano, enquanto a gente tinha que brincar com cuidado para não sujar o uniforme da escola", lembra.
A pulsão da escrita veio mesmo inspirada na Série Vaga-Lume, da Editora Ática, que ele começou a ler com afinco ainda aos oito anos. Breno, que está comemorando 20 anos de carreira, graduou-se em comunicação social e letras vernáculas e se tornou mestre em relações internacionais, assunto de gente séria, mas o coração ainda dispara quando escreve para o público infanto-juvenil.
"Eu quis seguir o caminho da Vaga-Lume. Sinto que ao escrever estou falando ao pequeno Breno", destaca o autor de Os Fanzineiros, livro infanto-juvenil publicado pela FTD e cuja qualidade é atestado pela professora e pesquisadora Mônica Menezes, doutora em literatura infanto-juvenil e coordenadora do Grupo de Pesquisa Cartografias da Infância, no Instituto de Letras da Ufba.
"Eu gosto demais de Os Fanzineiros. Há humor, intertextualidade, poesia e muita atualidade nas obras de Fernandes. Tudo isso através de um texto muito bem cuidado", elogia.
A propósito, livros baianos de boa qualidade voltados para leitores mirins existem há tempos, com assinatura de mestres da literatura para adultos.
Mil mundos para ler
Jorge Amado escreveu A Bola e o goleiro e O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá. O poeta Ruy Espinheira Filho publicou A guerra do gato e a também poeta Gláucia Lemos é uma das autoras baianas de literatura infantil mais presentes no meio escolar, com livros de poemas como O Cão azul, A Lua no coração e Quem sabe onde mora a lua.
Mas a geração de Breno Fernandes está vivenciando um vigoroso crescimento no mercado editorial infantil da Bahia, em todas as suas nuances, novos escritores, ilustradores de primeira linha, editoras especializadas e uma presença cada vez mais forte de temas com os quais os adultos, às vezes, se comportam muito mal, como direitos humanos e racismo. "Se, antigamente, os livros infantis tentavam ser manuais de bom comportamento, hoje há uma noção de que as crianças precisam lidar com a complexidade do mundo", opina Breno.
A questão racial é um capítulo à parte. Ou melhor, livros à parte. Em uma cidade com predominância da população afrodescendente, a valorização da beleza das crianças negras, o combate à discriminação e à intolerância religiosa têm motivado inúmeras publicações. Em 2018, o designer Adilson Passos lançou o livro As Mulheres Abayomi, em referência às bonecas Abayomi, criadas na década de 1980 pela artista maranhense Lena Martins.
Projeto antigo do designer, que queria prestar uma homenagem a mulheres negras guerreiras, o livro foi viabilizado como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da Escola de Belas Artes da Ufba. "Gosto de dialogar com as crianças, elas acolhem o livro. E é algo que me fez reviver a infância ", diz Adilson.
A presença de mulheres negras no mercado editorial infantil é significativa e tem quase sempre uma missão. Elevar a autoestima das crianças que podem passar pelas mesmas experiências de racismo que elas enfrentaram.
Filha de uma empregada doméstica, Ana Fátima acompanhava a mãe no trabalho e foi assim que entrou em contato com a arte, através dos encartes de CDs na casa dos patrões. Paralelamente na escola particular paga pela mãe, sofria com violência, xingamentos e apelidos racistas, algo que só veio a entender mais tarde, adolescente. O talento para a escrita lhe rendeu a seleção para um prêmio na Fundação Palmares. "Foi então que acreditei que as pessoas gostavam do que eu escrevia", ressalta.
Em 2015, com a conclusão do mestrado em crítica cultural e o nascimento do primeiro filho, veio o livro de estreia, As Tranças de minha mãe. "Quis fazer parte do time de escritoras que trabalhariam o protagonismo positivo negro", diz ela, que além de escritora é educadora e dona da editora Ereginga.
A missão assumida por Ana tem outras mensageiras. "Tenho levado para a sala de aula As férias fantásticas de Lili, da poeta Livia Natalia, com ilustrações de Carolina Teixeira", destaca a professora da Ufba Mônica Menezes, que cita também os trabalhos de Mel Adun (A Lua cheia de vento e Adumbi) e o livro Dandara, de Amanda Julieta com ilustrações de Aline Bispo.
Lobato
Se há um autor de livros infantis cada vez mais questionado pelo emprego de expressões racistas, semelhantes às que Ana Fátima e outras crianças negras se depararam na escola, esse autor é Monteiro Lobato, cuja data de nascimento, 18 de abril, transformou-se no Dia do Livro Infantil, comemorado amanhã. Em 2020, a própria bisneta do escritor, Cleo Monteiro Lobato, decidiu excluir do livro A Menina do narizinho arrebitado expressões racistas contra a personagem de Tia Nastácia.
A censura a livros clássicos com manifestações preconceituosas, aliás, gera um intenso debate. As crianças devem ser expostas a pensamentos retrógrados através da literatura? O psicólogo infantil Alessandro Marimpietri considera que os livros são produzidos no seu tempo histórico e, por isso, refletem em alguma medida essa realidade.
Autor do livro infantil Quando somos um só, em homenagem ao filho de 8 anos, Marimpietri afirma que querer retirar dos livros para crianças, ou de suas vidas, temas pulsantes no mundo não faz o menor sentido. "Os livros e suas múltiplas narrativas ajudam a gente a inventar a vida de muitas formas e, por isso, são importantes para os humanos", afirma o psicólogo, ou, nas palavras de seu próprio filho, um doutor que ajuda crianças a viverem melhor, resolvendo uns problemas.
Marimpietri considera que ler livros com temas sociais espinhosos pode ser muito útil para que as crianças elaborem uma série de vivências difíceis, próprias da vida. "Qualquer tema pode ser abordado com crianças. A grande questão é como. Há que se cuidar da linguagem e das possibilidades da criança lidar com esse ou aquele tema", pensa.
Mas existe um jeito especifico de escrever às crianças? A pesquisadora Mônica Menezes considera problemática a literatura infantil que trata a criança como um ser frágil, incapaz de compreender certos temas, certas linguagens. "É uma literatura que incorre em diminutivos, em lugares comuns. Há muito dessa literatura por aí", cutuca.
Autor do elogiado O Ritual no jardim, Mayrant Gallo, por sua vez, considera que ao pensar de antemão no público-alvo do livro e no assunto a ser tratado, o escritor condena o seu texto a existir em vista de algo ou de alguém. "E isso é desastroso", enfatiza.
Como exemplos, ele cita o próprio livro que, afirma, não foi feito para crianças, mas pode ser lido por algumas a partir de certa idade, e Os Meninos da Rua Paulo, do húngaro Ferenc Molnar. "Esse livro pode ser lido com prazer e proveito por um jovem de 11 anos e por uma pessoa de 90 anos", aponta Gallo, que abandonou o mercado editorial como produtor de livros e diz se divertir mais como leitor: "O escritor hoje é um refém do mundo e isso não é para mim. Sem liberdade de assunto e forma, não há literatura "
Editoras
O divórcio entre autores infantis e as grandes editoras no mercado de livros para crianças, às vezes acontece por razões estéticas, editorias e comerciais.
Um dos nomes mais conhecidos do público entre os novos escritores de livros infantis na Bahia, Emilia Nuñez não tardou a abrir sua própria editora, a Tibi, em sociedade com o irmão. "A editora tem seis anos. Agora, posso dizer que vivo de livros", afirma.
Além de escrever, Emilia se aventurou pela contacão de histórias online para turmas de escolas no interior e trouxe algumas novidades, como o livro personalizado sobre futebol. Através do site da editora, o cliente informa se torce para Bahia ou Vitória, informa seu prenome e produz um avatar a partir de suas características físicas e, depois de efetuar o pagamento, recebe o livro em casa.
Bacharel em direito que escrevia contos para a revista da faculdade, Emilia estreou na literatura com A menina da cabeça quadrada depois de ter o primeiro filho, há nove anos. Parte da inspiração para os livros vem de questões cotidianas dos dois filhos. Como o último lançamento, A Jacarezinha que mordia, escrito após receber queixas da escola de que sua filha de dois anos estava mordendo colegas. Durante os primeiros dias da pandemia, Emilia viu seu Instagram, Mãe que lê, dobrar o número de seguidores. Esta semana, eram 140 mil inscritos.
Depois de produzir o seu primeiro livro, em 2017, com uma editora de São Paulo, a escritora paulistana Renata Fernandes, radicada na Bahia há 30 anos, também decidiu abrir sua própria editora, a Letra A. Queria ter liberdade para escolher o ilustrador e ter a certeza de que os exemplares estariam disponíveis no dia em que ela precisasse.
A decisão de empreender foi tomada depois de ter conseguido agenda com diversos diretores de escolas particulares de Salvador para apresentar seu livro e não recebeu a remessa da gráfica a tempo. "Fazer livro não é tão difícil, o mais difícil é fazer com que ele chegue aos leitores. Hoje, temos parceria com mais de 50 escolas de Salvador", afirma. Mais do que isso, a Letra A vende livros de Renata para escolas de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul.
Histórias fascinantes
O ilustrador mais constante nas edições da Letra A é Heitor Neto, formado em belas artes e ex-publicitário que chegou por acaso ao mercado editorial e, somente de Renata já ilustrou 10 livros. Seu nome foi indicado pela dona da agência em que trabalhava.
"O grande barato é ver histórias fascinantes e ver o riso no rosto das crianças com os meus desenhos e o carinho e curiosidade com as minhas ilustrações", afirma Heitor, que há cinco anos vive de ilustrar livros.
Através de uma parceria com a editora americana ABC Cultural, Renata já vendeu seis de seus 14 títulos para brasileiros que vivem nos Estados Unidos e no Japão. "Estamos planejando traduzir para o inglês, o espanhol e o francês", explica a escritora e empresária, que por enquanto guarda um exemplar de cada livro para uma futura leitora, que ainda não fala idioma algum, sua primeira neta, nascida no mês passado.
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