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"Lula tenta apaziguar e evitar novos conflitos", diz Jorge Almeida

Cientista político fala sobre prisão na ditadura militar e tempos atuais

Publicado domingo, 31 de março de 2024 às 10:12 h | Autor: Gilson Jorge
Jorge Almeida, Cientista político
Jorge Almeida, Cientista político -

Preso aos 18 anos pela ditadura militar, o então estudante Jorge Almeida era conduzido em 1971 pelos corredores do Comando Naval na Cidade Baixa por agentes da repressão, quando sua silhueta de adolescente com 1,88m e 57 quilos chamou a atenção de um interno. De dentro das grades, o homem gritou que chegara o Macarrão, apelido adotado depois por amigos e companheiros de militância. A ditadura que, de 31 de março a 1° de abril de 1964, depôs o governo democraticamente eleito de João Goulart, prometeu acabar com a corrupção e a suposta ameaça comunista, encarcerava, torturava e matava quem se opunha aos militares. Solto, Macarrão concluiu a graduação em medicina, mas deixou sua marca na política baiana. No processo de redemocratização do país, tornou-se em 1985 o primeiro candidato do PT a prefeito em Salvador, ficando em quarto lugar. Em 1989, coordenou na Bahia a primeira campanha presidencial de Lula. De volta à academia, Almeida fez doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas e se especializou em marketing político, com ênfase em Lula. É autor dos livros Como vota o brasileiro e Marketing político: hegemonia e contra-hegemonia, além de professor de Ciência Política na Ufba, onde coordena o grupo de pesquisa Hegemonia e contra-hegemonia. Nesta entrevista, Almeida, que é filiado ao PSOL desde 2005, analisa a presença dos militares na política brasileira e a relação do presidente Lula com as Forças Armadas.

O Presidente Lula foi criticado por alguns colunistas e também por parte da esquerda após declarar que o golpe de 1964 são águas passadas e que se preocupa com a tentativa de golpe no 8 de Janeiro de 2023. O senhor avalia que neste episódio o mandatário for pusilânime ou prudente?

Eu acho que a preocupação dele é mais com a conciliação. Ele tem tido esse comportamento desde o seu primeiro mandato. No fundamental, o mandato de Dilma também foi assim, portanto, há uma linha de continuidade. Evidente que isso é questionável, porque não dá para fazer uma separação entre o que aconteceu agora, em 8 de Janeiro de 2023, e todo o histórico de presença dos militares na vida política brasileira, desde a República, e particularmente desde o regime militar, que foi o período mais longo de presença direta dos militares governando o Brasil. E que deixou marcas muito profundas, não só em relação à violência que foi cometida no período, como também no sentido institucional. Lula tenta apaziguar as coisas e evitar novos conflitos. Deve estar avaliando a conjuntura, mas isso provavelmente não resolve o problema. Quem deu o golpe? Quem compactuou com a prisão de Lula e o golpe do impeachment em Dilma em 2016? Os aliados políticos de direita que estavam no governo, os setores principais do grande capital que foram favorecidos pelo Governo Lula, o setor financeiro, o agronegócio, o Centrão na política, o STF, cuja maioria dos membros foi indicada pelo PT, esses políticos todos que entraram no governo no espírito de conciliação. Não é uma vacina contra a possibilidade de golpe.

O ex-comandante do Exército, Freire Gomes, declarou recentemente que ameaçou dar voz de prisão ao então presidente Jair Bolsonaro durante as conversas para a tentativa de golpe. Uma tentativa de mostrar o Exército como legalista. Mas os acampamentos golpistas em frente aos quartéis jamais foram incomodados. Como o senhor vê o Freire Gomes nessa história? Ele poderia ter dado a ordem de prisão?

Eu não posso dar uma resposta jurídica, técnica. Mas, pelo que ouvi, haveria essa possibilidade. Agora, pelo que analisei durante todo esse período de Bolsonaro, a maioria dos comandantes militares não tinha pretensões de aderir a um golpe que colocasse Bolsonaro como ditador, que lhe desse plenos poderes. Não que os militares sejam legalistas. A gente já viu que eles não são. Quando eles acham necessário, eles dão o golpe. O fato de eles não embarcarem no projeto de Bolsonaro tem mais a ver com o contexto e do que seria colocar Bolsonaro como ditador. Uma coisa foi os militares apoiarem sua eleição e entrarem com tudo em seu governo. Eles ajudaram a criar uma situação favorável à sua eleição. Mas, ao mesmo tempo, eles tutelaram o seu governo, impedindo determinados exageros. E uma parte dos militares que embarcaram no governo foi saindo à medida em que viram contradições em relação a isso, mas que representavam o que são a maioria dos comandantes – de direita, conservadores, podem dar golpes, mas que no contexto não pretendiam dar. Mesmo porque as grandes frações do capital no Brasil também não queriam esse golpe. Não é somente o problema que os Estados Unidos não queriam o golpe. O grande capital do Brasil prefere ter governos relativamente controlados, que façam suas políticas neoliberais, que favoreçam os interesses do grande capital, ataques aos direitos dos trabalhadores, à previdência, privatizações, maior abertura ao capital internacional. Bolsonaro cumpriu basicamente o seu papel. E eles privilegiam um governo que possa ser razoavelmente controlado a um governo que possa se colocar acima de tudo. Do ponto de vista do interesse do capital, o golpe já havia sido dado. As condições já haviam sido dadas no Governo Temer e o Governo Bolsonaro prosseguiu com essas políticas. Por isso que, a meu ver, não havia base política para isso. A elite política brasileira também não quer um ditador, quer manter sua influência, poder de negociação, as benesses, os privilégios que tem. E os militares querem manter os privilégios que têm desde a ditadura.

E em 1964 não se falava em uma ditadura...

Os militares foram gradualmente aumentando o seu poder depois do golpe. Inicialmente, seria uma coisa de curto prazo. Para tirar João Goulart e realizar eleições em 1965. Os civis liberais que participaram do golpe tinham essa expectativa. Mas em 1965 veio o AI-2 (Ato Institucional-2), que suspendeu as eleições populares e as transformou em eleições indiretas, fechou o Congresso Nacional e criou os dois partidos controlados pelos militares (Arena, governista, e MDB, oposicionista). Depois, em 1968, um novo golpe, o AI-5, que endureceu o regime. E depois veio o processo de abertura. Os militares saem do governo com uma desmoralização muito grande do ponto de vista político e social, especialmente porque a situação econômica do país piorou muito. Foram muitos casos de denúncia de corrupção no governo, envolvendo militares e políticos que apoiavam o regime. Mas eles conseguiram fazer negociações que lhes garantiram os privilégios de renda, de militares reformados, de viúvas e filhas. E, particularmente, a anistia para os crimes cometidos durante o regime militar. Também mantiveram a tutela institucional, que é o grande problema do artigo 142 da Constituição de 1988. Todas as interpretações estão dentro da lógica da Constituição, que não há possibilidade de os militares se colocarem como poder moderador, acima dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Mas, na verdade, desde a Constituinte esse artigo gerou polêmica por sua ambiguidade. Tanto que o PT votou contra a Constituição e um dos motivos foi o artigo 142. Havia outros problemas, como não ter uma reforma agrária definida. Mas o tema institucional principal que levou o PT a não votar no texto final da Constituição foi esse, a ambiguidade do artigo 142, de não definir como tarefa única das Forças Armadas a defesa nacional, mas também de ao chamado de qualquer um dos poderes intervir para a garantia da lei e da ordem. Isso que permite à direita e à extrema-direita querer usar isso como uma questão legal e institucional. Isso foi uma vitória dos militares no processo de transição, porque mesmo que eles não dêem o golpe, estão ali com uma espécie de espada de Dâmocles ameaçando o processo. Todo esse processo de tentativa de golpe, embora não tendo o apoio do grande capital, é interessante para os militares porque fica ali como uma ameaça possível, pressionando para que o governo faça conciliações econômicas com políticas neoliberais monetaristas a favor do grande capital, que é o que está sendo feito, a manutenção das reformas contra os trabalhadores. Havia uma expectativa de revisão, isso foi forte na campanha de Lula, e absolutamente sumiu da pauta. Havia expectativa de revisão de privatizações, o que também não aconteceu.

O senhor é um crítico da postura conciliatória de Lula. Qual seria o caminho?

Eu acho que Lula deveria assumir a função de comandante supremo das Forças Armadas e tomar todas as decisões democratizantes que fossem necessárias. Isso significa, por exemplo, retomar o funcionamento da Comissão da Verdade, que for paralisada. E há alguns questionamentos em relação a isso. Temer bloqueou esse processo e temos aí quase um ano e meio do Governo Lula e isso não foi retomado. E acho também que ele devia assumir uma posição de liderança política, no sentido inclusive de mobilização social. Não só de permitir que as coisas aconteçam do ponto de vista institucional, mas de mobilizar a sociedade. Por exemplo, essas manifestações do último dia 23 [atos pró-democracia e contra anistia aos golpistas de 8 de Janeiro] foram esvaziadas de cima para baixo. Mesmo que Lula não tenha dado nenhuma declaração pública contra as manifestações, o seu posicionamento influenciou as lideranças dos partidos e da base que mantêm um discurso de esquerda e as organizações sindicais. Isso anima a extrema-direita a achar que pode ameaçar o governo. O temor da esquerda de ir para rua e de ter conflitos não ajuda a dirimir os conflitos.

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