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MUITO

Mãos que acolhem

Fabiana Mascarenhas

Por Fabiana Mascarenhas

09/05/2016 - 9:12 h | Atualizada em 09/05/2016 - 9:35
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Elas exercem um ofício que existe desde que o mundo é mundo. Estão espalhadas pelo Brasil, dos municípios mais remotos às grandes cidades. As parteiras do século 21 têm diferentes origens, idades, linguagens e trilharam caminhos distintos para receber o título. Algumas tiveram formação tradicional. Frequentaram universidades e diferentes graduações para aprender as técnicas que utilizam na tarefa de ajudar as mulheres a dar à luz. Outras não tiveram escolha. Apenas cumprem a missão a que foram destinadas. "É dom, minha filha. Dom não se nega. A gente só carrega e aceita", diz Raimunda Pereira.

Oitenta anos e outros tantos como parteira, Raimunda já nem lembra quando tudo começou ou quantos filhos de umbigo ajudou a parir em sua trajetória. "Teve primeiro Gracinha, Rosinha, Terezinha, Valdenira, as duas filhas de Marize. Ou foi Maria primeiro? Ai, meu Deus, minha memória tá falhando. Mas lembro de cada um dos meninos que botei no mundo". Moradora do Acupe, distrito de Santo Amaro da Purificação, ela diz que, do próprio ventre, foram 15, dez meninas e cinco meninos. "Mas só sobraram onze, o resto se foi com os anos", resume, agora esquivando-se das recordações que nem mesmo o tempo consegue apagar da memória.

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Parteiras tradicionais, como Raimunda, aprenderam a arte de 'pegar menino' de maneira instintiva. O conhecimento que possuem é resultado de uma vocação, na maioria dos casos, herdada. "Aprendi tudo com minha mãe, observando. Ela acarinhava a mulher, dava chá, um banho morno; depois botava para caminhar, que era para ajudar o bebê a encaixar. Aí ajeitava a criança na barriga e ficava observando até a hora que ela quisesse nascer. Porque não adianta agonia. Tem que respeitar o tempo da criança", diz a também parteira Maria José da Cruz Pereira, 94. Dona Nininha, como é conhecida, não teve filhos biológicos, mas ajudou a parir tantos que até ganhou uma praça com seu nome em Pedras, distrito onde mora, no Recôncavo baiano.

O advento das maternidades e a medicalização dos nascimentos fizeram com que o número de parteiras em atividade diminuísse, mas elas ainda resistem. O Ministério da Saúde não dispõe de dados precisos sobre o número de parteiras em atuação no Brasil, já que a profissão não é regulamentada e não existe um cadastramento sistemático por parte das secretarias estaduais e municipais. Sabe-se apenas que a maior parte delas se concentra nas regiões Norte e Nordeste, sobretudo nas áreas rurais, ribeirinhas e nas florestas, onde o acesso a serviços hospitalares é precário.

Na Bahia, mapeamento realizado entre 2008 e 2013 em seis municípios da Chapada Diamantina - Lençóis, Mucugê, Andaraí, Palmeiras, Iraquara e Seabra - contabilizou 67 parteiras na região. Uma outra pesquisa vem sendo realizada no Recôncavo baiano, onde 20 parteiras já foram cadastradas. Os trabalhos fazem parte do programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais, do Ministério da Saúde, e conta com a coordenação da professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), enfermeira obstétrica e parteira há 34 anos Mary Galvão. "Essas mulheres prestam um grande serviço para as suas comunidades, sem receber absolutamente nada em troca. É importante sensibilizar gestores e profissionais de saúde para que reconheçam as parteiras como parceiras na atenção à saúde e desenvolvam ações para valorizar, qualificar e articular o seu trabalho ao Sistema Único de Saúde (SUS). É isso que estamos buscando", afirma.

Modelo de assistência

Além da valorização do trabalho realizado pelas parteiras tradicionais no interior do estado, tem havido um intenso movimento em busca de um modelo de assistência ao parto semelhante ao praticado no passado, mais humanizado e baseado no cuidado e acolhimento. Esse trabalho tem sido resgatado por uma geração de parteiros - em sua maioria mulheres - que inclui obstetras, enfermeiras obstétricas e obstetrizes.

Essas duas últimas profissionais são habilitadas, inclusive, a prestar assistência a mulheres em parto de risco habitual, também conhecido como baixo risco, independentemente da presença do obstetra. "Embora não possam assistir partos de alta complexidade, elas são preparadas para identificar distócias (dificuldades encontradas na evolução de um trabalho de parto) e, quando necessário, tomar providências até a chegada do médico", explica a professora do curso de graduação em obstetrícia da Universidade São Paulo (USP), Bete Franco, único do país a formar obstetrizes.

Em comum entre essas profissionais está o fato de acreditarem que o parto é um evento fisiológico, que deve ocorrer de forma natural e, sempre que possível, sem intervenções. "Cada profissional tem a sua função e importância. O que nos une é a ideia de que a humanização está no respeito à vontade e à fisiologia do corpo da mulher. Ela deve ter autonomia e escolher onde e de que forma deseja que ocorra o seu parto", diz a obstetra Marilena Pereira, considerada uma das maiores referências no assunto.

Talvez isso explique a razão de as parteiras contemporâneas fazerem questão de corrigir cada vez que alguém ousa dizer que elas 'fizeram um parto'. "Parteiras não fazem parto, assistem". A frase dita em uníssono é repetida quase como um mantra. "Não nos cabe fazer o parto. Nós auxiliamos, orientamos, mas o parto é feito pela mulher. É ela a protagonista", afirma Siomara Cerqueira, enfermeira obstétrica há 14 anos.

Apesar de ter tido dois garotos de parto normal, a atendente Ivanete Sacramento, 34, só entendeu o sentido desse protagonismo ao dar à luz o terceiro filho. No hospital público em que teve os dois primeiros - hoje com 12 e 16 anos - a experiência foi traumática. "Geralmente, tratam a gente feito lixo. São frios, grosseiros. A vontade é que a criança nasça logo para sairmos dali o mais rápido possível".

Já o terceiro nasceu no Centro de Parto Normal da Mansão do Caminho (CPN), em Pau da Lima. Assim como 80% das mulheres que chegam ao CPN desde a sua inauguração, em 2011, Ivanete procurou o local por indicação. Uma amiga havia falado sobre o trabalho realizado na instituição, que foi o primeiro Centro de Parto Normal da Rede Cegonha do Brasil.

Lá, uma equipe composta por dez obstetras e dez enfermeiras obstétricas auxilia pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em média, 50 partos por mês. Apesar de possuir uma equipe mista, a instituição só presta assistência a mulheres em trabalho de parto com risco habitual. Além dos técnicos em enfermagem, o grupo conta também com o trabalho de doulas voluntárias, profissionais que dão suporte físico e emocional às parturientes.

Era 15h40 do dia 14 de abril quando Ivanete deu entrada no setor de admissão do CPN. Do lugar sabia pouco. Tinha apenas esperança de que o pequeno João Victor fosse amparado por mãos mais acolhedoras no momento em que atravessasse o canal que o retiraria do conforto e segurança do ventre materno. Durante as quase oito horas de trabalho de parto, bebeu chá feito com canela, gengibre, pimenta-do-reino e rapadura para ajudar a estimular as contrações; jantou com os profissionais que, mais tarde, auxiliariam o parto; interagiu com os familiares. Às 22h10, o exame feito pelo médico residente em obstetrícia, Flávio Andrade, indicava que a dilatação era de 9 cm. Ivanete tomou banho, usou a bola de pilates e a escada de ling. Todos métodos não farmacológicos para alívio da dor e melhora da dilatação.

As contrações aumentaram, as dores intensificaram. Ela riu e chorou. Chamou por Deus e, segurando firme a mão da enfermeira obstétrica Fernanda Caldas, pediu ajuda. Teve. As palavras de apoio ouvidas pareciam amenizar a dor sentida. Às 23h25 João Victor nasceu, com 3,9 kg e 53,5 cm e foi levado, imediatamente, para o colo da mãe. Neste mesmo dia, Ivanete descobriu que existia uma forma muito mais leve, e bonita, de trazer um filho ao mundo. "É muito diferente. Estou feliz".

Violência obstétrica

No Brasil, a chance de dar à luz sem intervenções durante o trabalho de parto é remota. Apenas 5% das mulheres tiveram essa experiência, segundo a maior pesquisa já realizada sobre parto e nascimento no país, a Nascer no Brasil, coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

O estudo mostra que muitos procedimentos passaram a ser usados de forma rotineira, causando mais traumas do que benefícios. Entre eles, o uso de ocitocina artificial, medicamento utilizado para estimular as contrações; separar a mãe do bebê após o nascimento e a episiotomia, incisão efetuada na região do períneo (área muscular entre a vagina e o ânus) para ampliar o canal de parto. Por aqui, a taxa de episiotomia chega a 53,5%. A recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é a de que não ultrapasse os 10%.
A incidência de cesarianas também é um outro problema no país: 88% na rede privada, 46% na rede pública e média nacional de 52%. A recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é que somente 15% dos partos sejam realizados por meio desse procedimento.

As parteiras contemporâneas têm ajudado a mudar essa realidade. "Estudos comprovam que o acompanhamento dessas profissionais colabora para reduzir não só o percentual de cesarianas, mas o tempo de parto, os pedidos de anestesia e os custos. Isso é a prova de que é possível mudar velhas práticas", diz Loise Chamusca, enfermeira obstétrica e gerente de assistência da Maternidade de Referência Professor José Maria de Magalhães Netto.

Aos poucos, essas parteiras do passado e do presente vão mostrando que partejar é mais que prestar assistência durante o parto. É fazer parte de um momento único e respeitar o fluxo da vida. É acolher nas mãos o futuro do mundo.

>> Quem faz o que na assistência ao parto

Obstetras Após passar pela graduação em medicina, o profissional participa do programa de residência médica para receber o título de especialista em ginecologia e obstetrícia. É possível também prestar concurso, promovido pela Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). O obstetra é o único profissional capaz de prestar assistência à mulher em partos de risco habitual (baixo risco) e de alta complexidade.

Enfermeiros obstétricos Para receber o título de especialista em obstetrícia, o enfermeiro precisa fazer o curso de especialização em enfermagem obstétrica. Ele pode atuar no atendimento ao pré-natal, parto e puerpério de baixo risco, ou seja, casos em que não há complicações.

Obstetrizes Para ser obstetriz é necessário passar por uma graduação com quatro anos e meio de duração. A graduação é focada na promoção da saúde da mulher e na assistência, cuidado da mulher durante a gravidez, o parto e o pós-parto. Assim como na enfermagem obstétrica, as obstetrizes só podem prestar assistência em partos de risco habitual.

Parteiras tradicionais Essas parteiras atuam de forma empírica, baseadas em conhecimento adquirido na prática diária. A ocupação é reconhecida pelo Ministério do Trabalho, mas elas ainda não têm a atividade regularizada. O Ministério da Saúde vem desenvolvendo algumas ações de valorização e cursos de qualificação voltados para estas profissionais.

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