MUITO
Marca baiana fortalece movimento para descolonizar a moda
Por Maria Clara Andrade*
Estampas, muitas estampas. Desde pequenos, os irmãos Júnior, 41, e Céu Rocha, 40, não costumam passar despercebidos pelos lugares aonde vão. É que, desde quando tinham uns 10 anos mais ou menos, os meninos já escolhiam os tecidos com que iam ser feitas suas roupas. Normalmente com estampas.
Tudo começou assim, naturalmente. Se perguntarem a eles quando surgiu o interesse por moda, é provável que respondam em uníssono: “Desde sempre”.
Há seis anos esse interesse se concretizou em uma marca, a Meninos Rei, que, com tão pouco tempo de vida, celebra o reconhecimento recente no maior evento de moda da América Latina: a São Paulo Fashion Week.
Corpos reais
Na infância, no Lobato, Júnior e Céu estavam sempre em contato com tecidos e desenhos. Os tecidos eram de suas tias e sua avó, costureiras. Já os desenhos não tinham muita ligação com moda, eram do pai dos meninos, desenhista técnico. Mas os traços e retas, de certa forma, os deixavam mais perto desse universo.
Costurando à mão, juntando vários tecidos de cores e estampas diferentes, suas tias realizavam patchwork, mesmo que, então, não conhecessem este termo. Anos depois, a mesma técnica é usada nas peças da Meninos Rei e, junto às estampas com referências afro, está causando impacto no estilo da esfera artística brasileira.
É que, aparentemente, todo mundo está querendo usar Meninos Rei. A primeira grande artista a usar a marca foi Margareth Menezes, com quem Júnior possui uma relação de trabalho e amizade. Júnior conheceu Maga – forma como ele costuma se referir a ela – há mais de 20 anos, enquanto trabalhava em uma loja no antigo shopping Aeroclube.
Daí, foi se aproximando da equipe da cantora, até ser convidado para trabalhar na produção de Margareth. Hoje, Júnior ocupa o cargo de stylist da artista.
“Eu também tenho uma personalidade para me vestir, então, não é uma coisa muito fácil. tenho que me sentir bem. E Júnior sempre foi muito, muito criativo, na própria maneira dele se vestir”, observa Margareth.
Foi nesta posição que Júnior encontrou espaço para apresentar a Maga alguns dos desenhos de figurinos que vinha desenvolvendo com Céu. Margareth gostou e passou a usar a marca. Depois dela vieram nomes como Carlinhos Brown, Marienne de Castro, Gilberto Gil e Ivete Sangalo.
A estratégia dos irmãos era primeiro conquistar para depois criar um vínculo efetivo de empresa para clientes. “O que, inicialmente, a gente fez para alguns artistas foi dar uma peça para que eles conhecessem o nosso acabamento, a nossa costura, o nosso tecido. Aquilo virou uma admiração e uma relação de comprador mesmo”, analisa Céu.
Sem distinção
O propósito da marca é criar peças que possam ser usadas sem distinção por homens, mulheres, gordos ou magros. A intenção da Meninos Rei é vestir “corpos reais”, como afirma Céu. Para isso, todo o atendimento feito por eles é de maneira personalizada.
Qualquer um pode enviar uma mensagem pelo Instagram e agendar uma hora no atelier da Meninos Rei. Os irmãos, provavelmente, receberão os clientes com todo o cuidado necessário por conta da pandemia e com muitas experiências para trocar.
São essas trocas, esse envolvimento com os clientes que, para Júnior e Céu, dão sentido ao trabalho que estão desenvolvendo. “As pessoas não querem só comprar os nossos produtos, elas querem conhecer a nossa história, querem saber o processo criativo, a história do tecido africano”, avalia Céu.
Além desse traço, outra característica torna a Meninos Rei única. A técnica do patchwork aliada ao uso de estampas africanas criou uma identidade muito forte para a marca. Suas peças são reconhecidas facilmente por quem já conhece o trabalho dos irmãos.
Este ano, a Meninos Rei foi convidada para fazer o figurino de uma festa no reality show Big Brother Brasil, com tema África. Eles não podiam anunciar nas redes antes do horário da festa e, assim que começou o programa, antes mesmo de postarem qualquer coisa, receberam inúmeros directs de seguidores perguntando se as peças eram deles.
“Isso é uma identidade que a gente, em pouco tempo de marca, conseguiu firmar. Quando Brown entra com uma roupa estampada, as pessoas logo associam à gente”, analisa Júnior.
Afroempreendedorismo
A Meninos Rei foi selecionada para a São Paulo Fashion Week através do Projeto Sankofa, iniciativa do coletivo Pretos na Moda em união com a startup Vamo (Vetor Afro-indígena na Moda).
“O Sankofa nasce com uma proposta de Natasha Soares (do coletivo Pretos na Moda), a fim de dar um segundo passo em racializar o evento, após definição da proporcionalidade de 50% do casting racializado nas marcas”, diz Rafael Silvério, cofundador da Vamo.
A proporcionalidade citada por Silvério refere-se à medida que institui que os desfiles da SPFW devem ter, ao menos, metades dos seus modelos negros, indígenas e asiáticos. Essa medida também foi proposta pelo coletivo Pretos na Moda. A ideia, segundo Silvério, é ‘deseurocentrar’ a moda brasileira: “Promover uma moda que celebra nosso solo cultural não é só fortalecer o elo antirracista, mas é também celebrar nossa cultura”.
A marca dos irmãos Júnior e Céu Rocha faz parte das oito que foram selecionadas pelo projeto. Assim como se envolveram com a moda de forma natural, a escolha por usar elementos africanos em suas criações também ocorreu de maneira orgânica.
“A moda que a gente desenvolve, a fonte que a gente bebe, é a fonte ancestral, é a Mãe África, por suas cores, suas estampas, suas histórias. Somos pretos, então, a gente se identifica muito”, afirma Júnior.
Esta edição da SPFW ocorreu nos dias 23 a 27 de junho de forma online. As 43 marcas participantes apresentaram suas criações através de transmissões ao vivo no site do evento. A Meninos Rei apresentou um fashion film com fortes inspirações na ancestralidade africana, homenageando a divindade Exu.
Júnior e Céu orgulham-se de terem levado o candomblé para a sua coleção e apresentado Exu para um público com pouca familiaridade com religiões de matrizes africanas. A excitação com o evento continua, os irmãos estão na expectativa pela realização de um desfile presencial em novembro, mas que ainda não foi confirmado.
Estar na SPFW já foi a realização de um sonho, mas os meninos estão apenas no início de uma longa caminhada. Dentro dos projetos futuros está a criação de uma loja física para atenderem mais e mais pessoas, prezando pela mesma qualidade de sempre.
“A gente quer continuar ouvindo a história das pessoas através do nosso trabalho. E a gente quer alcançar o mundo, né? Todo mundo conhecendo a Meninos Rei”, afirma Céu.
*Sob supervisão do editor Marcos Dias
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes