ABRE ASPAS
Marcia Barbosa: 'experiências distintas levam a uma ciência mais rica'
Professora fala sobre a importância das pesquisas científicas e os projetos inovadores que está liderando
Por Gilson Jorge
Na infância, Marcia Barbosa viu seu pai eletricista trabalhando e ficou fascinada com as correntes elétricas. Quando cresceu, decidiu ser física, mas se dedicou à observação da água, o que a levou a ganhar em 2013 o Prêmio L’Oréal-Unesco para Mulheres em Ciência por seus estudos sobre as moléculas de água. Desde o início do ano, essa pesquisadora gaúcha é secretária de Políticas e Programas Estratégicos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Nesta entrevista, a professora que participa de amanhã ao dia 29 do 37º Encontro de Física do Norte e Nordeste, em Salvador, fala sobre a importância das pesquisas científicas e os projetos inovadores que está liderando.
Como surgiu o convite para assumir a secretaria de Programas e Projetos Estratégicos e quais os seus objetivos na pasta?
O convite para ir para o governo surgiu com uma indicação do Ricardo Galvão que tinha me convidado para ir para o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. A ministra, vendo o meu currículo e consultando o Sergio Rezende, fez o convite sem me conhecer pessoalmente. A secretaria trata de todas as áreas de ciência básica: clima, meio ambiente, saúde, exatas, biodiversidade, sociais, oceanos, bioeconomia ... O papel da secretaria é identificar neste menu tão rico áreas estratégicas e mover financiamento para elas. Além disso, somos responsáveis por temas como o inventário nacional de emissões de CO2 [dióxido de carbono] em que mobilizamos mais de 400 pesquisadores em todo o país, criar o ecossistema para ter pesquisa em novas moléculas para a saúde e agro e identificar projetos como a entrada do Brasil no Cern [Centro Europeu de Pesquisas Nucleares] e criar tecnologias quânticas como nucleadores. Além disso, cuidamos de temas tão distantes como transgênicos e experimentação animal e a presença do Brasil nos polos e no espaço.
A secretaria tem uma riqueza de ações e uma interação internacional importante, captando recursos de fundos internacionais. Lançamos este ano vários editais dos quais destaco: análise de saúde mental do povo brasileiro, estudo de Síndrome de Down, que inclui uma análise de demência e autismo (comuns neste grupo), estudo de gripe aviária (já presente no Brasil), tecnologias quânticas (comunicação quântica, dispositivos e computador quântico), preparo da rede de observação para eventos extremos. Em parceria com o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas criamos um grupo de trabalho que irá preparar nossas cidades para eventos extremos.
Em parceria com o Ministério da Agricultura iremos expandir ferramentas de observação do desmatamento e monitoramento do que se planta no Brasil. Em parceria com o Ministério da Saúde iremos lançar um edital sobre insumos farmacêuticos disruptivos.
Diplomatas estimam que nas próximas décadas as guerras se darão por causa de água doce e não mais por petróleo. Em dois anos, por exemplo, a América do Sul, o Canadá e a Rússia serão praticamente as únicas regiões do planeta sem estresse hídrico. Ou seja, com água suficiente para o desenvolvimento da agricultura, que é a atividade humana que mais utiliza recursos hídricos. Do ponto de vista da ciência, as pesquisas para o uso racional da água indicam que devemos adotar a visão otimista do copo meio cheio ou a pessimista do copo meio vazio?
O que aprendemos com a ciência é que ela leva um tempo para dar as respostas, mas com investimento elevado, regular e ininterrupto conseguimos resolver as questões. A pandemia mostrou que é possível acelerar o desenvolvimento de vacinas, no entanto, mesmo assim vidas foram perdidas, pois a ciência tem seus limites temporais. No caso da água temos os seguintes problemas: aumento da população com uma quantidade fixa de água, o que leva a um estresse hídrico meio irreversível, aumento da população de forma heterogênea, o que agrava o problema em certas regiões do globo; contaminação da água existente, o que leva a diminuição da água limpa para uso, mudanças climáticas que levarão a um aumento da água salgada e mudança da localização da água potável. O mundo científico e parte do mundo político está ciente destes problemas e tecnologias têm sido desenvolvidas para limpeza de água, produção de alimentos, otimizando o uso da água e luta contra mudanças climáticas.
O prêmio que a senhora venceu indica o quanto a água é uma preocupação para o Ocidente. Por outro lado, a inação internacional quanto às mudanças climáticas tem alterado drasticamente o regime de chuvas na região Sul, onde a senhora vive. É possível que os Estados se preparem melhor para as enchentes?
Hoje o Brasil tem atuado no sentido de diminuir o desmatamento para colocar o pé no freio das mudanças climáticas. No entanto, consequências já são irreversíveis e estamos nos preparando para a adaptação. Isto significa ter políticas para preparar as cidades do sul para mais chuvas e o norte e nordeste do Brasil para secas. Ciente disto, parte do governo (MCTI e MMA) estão demandando fundos para os municípios que serão mais atingidos. Com o uso da climatologia do INPE [Instituto NAcional de Pesquisas Espaciais] e da Rede Clima é possível dizer quais serão estas áreas atingidas não somente agora, mas no futuro. Ressalto que não devemos somente adaptar, mas lutar para uma transição para uma agricultura, pecuária e indústria de baixo carbono. Isto não é um sonho, mas uma realidade científica. A ciência já criou bioinsumos, está desenvolvendo via biologia sintética uma nova química e novas formas eficazes de combustíveis. Hoje temos formas de saber exatamente como anda o desmatamento através de dois instrumentos, Deter e Prodes, e o que estão plantando e criando no lugar desmatado com o uso do Terraclass. O que falta? Mais vontade política, mais aliados e aliadas na população.
O Brasil compartilha com países vizinhos do Cone Sul o Aquífero Guarani, uma das maiores reservas de água doce do mundo. Como funciona esse sistema que vai de Goiás ao Rio Grande do Sul e como a ciência pode ajudar a prevenir a contaminação do solo?
O Aquífero é um tesouro. Ele aflora na região de São Paulo onde seu uso é muito importante para o abastecimento. Em alguns casos, o seu uso excede a capacidade de recarga, o que é preocupante. Em outras áreas, como no Rio Grande do Sul, está em uma região mais profunda e, quando necessário, será usado. O que precisamos cuidar é que estudos mostram que em algumas regiões ele já está contaminado com agrotóxicos e que tem volumes elevados de cloro em outras regiões. Como um tesouro, precisa ser protegido para o futuro.
No Nordeste, claro, o desafio é garantir o abastecimento hídrico, que permita o aumento da atividade econômica. A transposição do Rio São Francisco teve efeitos positivos, mas limitados. A senhora considera a dessalinização da água do mar uma alternativa viável?
A dessalinização, particularmente de água salobra em pequenas comunidades, é uma solução interessante. Os filtros tradicionais feitos de polímeros são muito ineficientes, pois necessitam de muita energia. Uma solução é o uso de nanociência para produzir filtros mais eficazes. O Brasil, no Centro de Tecnologia em Nanomateriais e Grafeno (CTNano) da UFMG, já está produzindo filtros caseiros em cobre, o filtro polimérico com folhas de óxido de grafeno, tornando-os mais eficientes. Esta alternativa quando produzida em escala poderá ser acessível à população. Além disso, precisamos pensar em captadores hidrofílicos de água da atmosfera. Esta é uma ciência de fronteira que está sendo pensada e desenvolvida no Brasil.
Seu interesse inicial pela ciência veio com a eletricidade, observando o trabalho de seu pai, eletricista. Quando e por que passou a se interessar pelo estudo da água?
A água está presente na vida e é um personagem fundamental em qualquer sistema. Quando eu estudava macromoléculas com carga como DNA e proteínas, notei que a água em torno destes objetos eletrostáticos exercia um papel interessante. A água não tem carga livre, mas ela tem um lado positivo, próximo aos hidrogênios, e um negativo próximo ao oxigênio, gerando um dipolo que envolve sistemas com cargas livres. Eu me apaixonei por entender como a água, este "vestido" que blinda sistemas com cargas, gera propriedades tão interessantes. A maior beleza da água é como ela envolve partículas para obter água potável, no entanto, temos que promover um divórcio entre a água e estes materiais. Em alguns sistemas este divórcio não é fácil de ser promovido. A água e o cloreto de sódio, por exemplo, têm uma ligação muito forte.
Devemos celebrar a sua premiação, que é de fato, importante. Mas como a senhora avalia o desenvolvimento da pesquisa científica no Brasil como um todo? A indexadora Scopus, dos Países Baixos, coloca o país em 14° lugar na publicação de artigos científicos em 2020, mas no critério publicações per capita ficamos com quase metade do valor obtido pelo Chile.
O Brasil, segundo a OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico], tem um percentual de jovens com ensino superior na faixa de 24 a 35 anos de 17% mais baixo que Chile, Colômbia e Argentina, que estão em torno de 30%. Temos que ampliar o ensino superior. Além disso, quando olhamos entre as áreas, entre os estudantes no ensino superior somente 13% estão em áreas de engenharia e exatas. Como fazer uma transição tecnológica sem físicos, químicos e engenheiros? Recentemente, a busca por estes cursos tem despencado. Algo precisa ser feito a respeito se quisermos ter uma nova industrialização.
A série "Big Bang - A Teoria", que teve personagens físicos como protagonistas, abordou em um episódio a baixa presença feminina na ciência. O programa apontou a necessidade de estimular a curiosidade científica nas meninas antes que elas ingressem na universidade. A seu ver, como se pode atrair mais mulheres, negros, pobres e população LGBTQ+ para a ciência?
Diversidade é essencial para termos uma sociedade democrática e eficiente. O pensamento disruptivo se constrói a partir da vida das pessoas. Experiências distintas levam a uma ciência mais rica. Precisamos mostrar para as meninas, negros e negras e outras culturas sub-representadas que podem fazer ciência e que a pesquisa é algo apaixonante. Isto se faz na escola, na imprensa, dando visibilidade para as mulheres. Precisamos entender de uma vez por todas que a liderança de homens brancos que batem na mesa levou a uma sociedade injusta e à poluição do planeta. Está na hora de termos grupos diversos na liderança para criar a solução para um futuro democrático, sustentável e socialmente referenciado.
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