MUITO
Mercado das Sete Portas chega aos 80 anos de encanto popular
Por Gilson Jorge
A mão esquerda do garçom está a ponto de alcançar a cumbuca com pimenta, colocada sobre uma das mesas do bar, quando ele pergunta ao cliente se pode pegá-la. Antes da resposta, o utensílio já está capturado. Minutos depois, no balcão, o mesmo atendente observa de soslaio enquanto a farinha é derramada sobre o feijão preto, concentrado em um canto do duralex transparente. “Essa daí é da boa”, atesta a distância, comprimindo os lábios inferiores, enquanto o cliente sorri ao ouvir.
É sábado, dia de feira, e o movimento nos botecos do Mercado Sete Portas está razoável. Uma mulher em vestido surrado, mas impecavelmente branco, passa por entre os comensais, carregando uma caixinha e pedindo contribuições para fazer o que seria um caruru para Santa Bárbara. Um jovem senta-se furtivamente em uma mesa vazia e tenta chamar a atenção de um outro cliente. “Ei, coroa, joga essa gordurinha aqui pra mim”.
O homem, que ainda não havia abandonado os talheres, volta-se para trás e responde que está comendo. No boteco ao lado, um homem com a camisa do Bahia abre uma lata de Devassa e, antes do primeiro gole, olha com lascívia para a garçonete, assim que ela vira de costas para a mesa. Ainda não são 14h e o torcedor tricolor liga para um amigo tentando convencê-lo a ir lhe fazer companhia, antes do início da partida contra o São Paulo, às 19h: “Você precisa ver a gatinha, tem no máximo 20 anos”.
Desliga o telefone com um sorriso largo, como quem recebeu um sim, e, olhando ao redor, procura com quem compartilhar sua excitação com a garçonete, com o jogo. Encontra outra camisa tricolor em uma mesa próxima e grita: “Hoje a gente ganha”. Surgem os palpites de placar e uma insinuação de aposta depois que o outro torcedor crava que vai ser 3 a 0. “Eu não vou apostar contra o meu Bahia”, diz o torcedor que seca a garçonete. Se tivesse apostado, teria terminado o sábado triste, mas com mais algum dinheiro para a cerveja. O Bahia perderia por 3 a 1.
Mercado das antigas
Um prato de feijoada, que parecia enorme ao chegar a uma mesa, torna-se quase obsceno quando aterrissa o segundo prato, com as carnes e o caldo de feijão. Elpídio Alcântara não dispensava essa gordura nas manhãs de sábado. Antes de se concentrar no boxe em que comercializava farinha e feijão, costumava sentar-se à mesa do Rei do Mocotó ou do Restaurante do Betão para bater um prato desses típicos de feiras populares. Em 15 de abril de 2015, foi acudido por funcionários desses botecos e pelo próprio filho, Marcelo Góes, e colocado em um táxi após um infarto.
O comerciante, 69 anos, que havia passado mal em casa na noite anterior, insistiu em manter a sua tradição sabatina. Começou a sentir formigamentos depois de comer e a família foi avisada.
Uma das filhas chegou a estacionar o seu Ford Ka em frente ao mercado, em local proibido, na urgência de convencer Elpídio a receber atendimento médico, mas o sergipano que encontrou no boxe da feira um modo de sustentar a família não aceitou abandonar o trabalho.
Quando sentiu uma forte pontada no peito, caiu ao lado do filho, perto dos sacos de farinha. Chegou sem vida ao hospital. “Alguns clientes antigos ainda não sabem que ele morreu. São pessoas idosas, e eu fico sem jeito de falar. Tem um senhor de 89 anos mesmo que não vem há uns três meses. Na última vez que veio, eu disse que meu pai estava viajando”, declara Marcelo, que agora toma conta, junto com sua mãe, do boxe que se chama De pai para filho.
Empreendedor
O mercado foi inaugurado em 1940, quando Salvador tinha 290 mil habitantes, pelo advogado e empreendedor alagoinhense Manoel Pinto de Aguiar, que morreu em 1991. O mesmo que fundaria em 1945 a primeira editora de livros da Bahia, Progresso, e na década de 1960 o primeiro loteamento residencial da cidade, o Parque Cruz Aguiar, no Rio Vermelho, junto com um banqueiro de Minas Gerais.
O espaço tornou-se opção para compras em uma área então de pouco trânsito, entre Nazaré e Brotas. A fachada, dividida em sete entradas, batizaria o prédio de Mercado das Sete Portas e, sem a palavra mercado, daria nome ao pequeno trecho entre a Djalma Dutra, o Aquidabã e o Dois Leões. Bichos, aliás, não faltam por lá, que mantém a tradição medieval de comércio de animais vivos, como nas feiras da Europa no século 13.
O homem que mantém um burro amarrado pelas patas no chão em frente ao seu boxe, no fundo do mercado, observa cabisbaixo um papel antes de liberar o carregamento do quadrúpede para a caçamba de uma camionete. O animal está imobilizado, olhos bem abertos. O humano reage ao pedido para um registro fotográfico com um grunhido, a declaração de que está ocupado e o braço direito indicando uma autorização para fotografar o boxe ao lado, onde aves estão espremidas em gaiolas.
Ainda nos primeiros cliques, um outro homem de short e sem camisa sai de um cubículo com um objeto metálico parcialmente escondido na palma da mão direita. Sem abrir a boca e com os olhos arregalados, como o do burro que vai ser transportado, balança a cabeça em sinal de negativo, revogando a autorização.
Pode-se encontrar muita coisa no Mercado das Sete Portas. O camarão seco para o caruru, folhas para rituais, loções à base de ervas, carnes e verduras, Heineken por R$ 15 ou R$ 20, a depender do boteco, uma navalha afiada para aparar a barba. E, de fato, há duas barbearias no mercado.
Vida de feirante
Centenas de pessoas, muitas vindas do interior e de estados vizinhos, encontraram no mercado, ao longo dessas décadas, uma forma de manter a família. Otávio Nery veio de Itapema, distrito de Santo Amaro, há mais de 30 anos e começou a vida de feirante trabalhando no boxe de um parente. Depois assumiu o negócio e também o nome estampado no alto do boxe, o Rei do Camarão.
“Paguei a faculdade de dois filhos e comprei dois imóveis em Itapema, diz Otávio, depois de abandonar o papo com três amigos em uma terça-feira, dia de baixo movimento, para dar entrevista.
Maria Bonfim, que vende frutas no último corredor do mercado, para quem entra pelo lado da Djalma Dutra, não é muito chegada a socialização. Mas se declara feliz no lugar. “Eu amo aqui. Quer dizer, eu gosto. Amar, só a Deus”, diz a evangélica nascida em Alagoinhas que aprendeu o ofício da feira com a mãe.
Mas ressalva que o lugar já foi muito bom. “A humanidade, a união... Todo mundo conversa, todo mundo brinca, mas não é como antigamente”, declara Maria, que diz não ter amigos na feira. Depois concede: “Só essa daqui, apontando para a vizinha de boxe, Creuza de Jesus, também evangélica.
O papo flui e ela inclui no seu rol de amizades outro vizinho, um homem idoso, que deita a cabeça sobre o braço direito estendido na banca de frutas e faz sinal de negativo com o indicador da mão esquerda, deixando claro que não está a fim de conversa fiada.
Francisco Santos, o Fito das Folhas, é do tipo que acredita em tudo, ou em nada específico, mas não duvida da fé. Começou a vida de comerciante vendendo camarão no lado de fora do mercado, quando, há 35 anos, surgiu a chance de alugar um boxe.
“Me veio uma criatividade de eu trabalhar com isso”, diz o feirante, lembrando o momento em que começou a vender sal grosso e, com os pedidos que chegavam, dedicou-se às folhas. “Eu não era do axé. Tive que aprender tudo. Hoje eu me vejo como um profissional”, afirma.
Marcos Santana e o primo Roberto Santana, que trabalham juntos no Restaurante do Betão, também tiveram que aprender uma nova habilidade quando assumiram o boxe, há 12 anos. A antiga cozinheira teve de se afastar para fazer uma cirurgia e ensinou a dupla que veio de Lagarto, Sergipe, a cozinhar.
Apesar de estar indo bem, Marcos reclama do descaso com a aparência do local: “O mercado sempre foi isso aí, ó”, diz, apontando para as paredes sem pintura. A gente paga tanto de aluguel caro aqui e não melhora”, reclama o comerciante, que paga junto com o primo R$ 1.500 por mês pelo boxe.
De acordo com o gerente-geral do mercado, Anísio Rodrigues, 83 anos, está sendo feita uma distribuição de energia por lá, mas os medidores ainda não foram instalados: “Depois, vamos fazer algumas coisas, mas não está programado de imediato. Existe o propósito, mas, com o falecimento de dois sócios, parou. Tem negócio de inventário, de herança e modificou tudo. Claro que tem que se fazer algo no mercado”.
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