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Michelle Prazeres: "podemos viver uma vida mais desacelerada"

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Publicado domingo, 25 de junho de 2023 às 09:31 h | Autor: Marcos Dias
Jornalista criou guia para indicar espaços, projetos e pessoas na contramão das “doenças de velocidade”
Jornalista criou guia para indicar espaços, projetos e pessoas na contramão das “doenças de velocidade” -

Quando teve seu primeiro filho, a jornalista, educadora e pesquisadora Michelle Prazeres criou um projeto relacionado ao tempo de dedicação aos filhos das mães que escolhiam empreender para terem mais tempo com eles. Esse foi o embrião do Guia DesaceleraSP, que desde 2016 passou a indicar espaços, projetos e pessoas que criavam uma espécie de antídoto na metrópole do que ela considera um estilo de vida movido por “doenças de velocidade”.

Ela também se dedicou ao tema da aceleração social do tempo em pesquisas para o doutorado e pós-doutorado, e expandiu suas ações com a criação da Rede Desacelera, o festival Dia Sem Pressa e a Escola do Tempo. Em março deste ano, o DesaceleraSP tornou-se o Instituto Desacelera (desacelera.org.br), com a missão de democratizar o cuidado, a saúde mental e o bem-estar. No próximo dia 22 de julho, Michelle estará na Bahia para o encontro fundador da Rede Desacelera em Salvador.

“É a primeira cidade que o Desacelera vai chegar depois de São Paulo, formalmente falando, isso tem um significado pessoal e político muito importante”, diz ela nesta entrevista.

Brincando, brincando, já estamos em junho, e o Carnaval foi um dia desses. A impressão de que o tempo está correndo é real ou tem algo subjetivo nessa experiência?

É multifatorial, acho que a gente está vivendo o que o sociólogo Hartmut Rosa chama de aceleração social do tempo, ou seja, é como se a gente estivesse contraindo o tempo, fazendo mais coisas numa unidade de tempo, e isso é um tipo de aceleração. As coisas que fazíamos em duas, três horas, estamos fazendo em menos tempo, ou precisando fazer. As transformações sociais que, às vezes, demoravam décadas para acontecer estão acontecendo em anos, e assim por diante. Acho que é um jeito de entender que essa aceleração acontece de fato, mas podemos acrescentar aí a nossa percepção sobre o tempo. Há umas duas semanas o Datafolha fez uma pesquisa e 43% das pessoas dizem ter a percepção de que estão vivendo a vida em modo 2X, como se a gente estivesse na velocidade 2 do WhatsApp, então, isso também tem a ver com o fator percepção do tempo. Claro que do ponto de vista do  tempo cronológico seguimos vivendo 24 horas por dia, mas estamos mudando nossa percepção sobre o tempo.

O que o Instituto Desacelera propõe para lidar com isso?

Penso que o essencial com o trabalho do Desacelera é a gente olhar que o desacelerar não é, necessariamente, ser mais devagar. Quando a gente fala “desacelera” é uma tradução para o português do Movimento Slow. O livro do Carl Honore que tem esse título foi traduzido para o Brasil para Devagar, e a gente preferiu traduzir para Desacelera, porque, para a gente não é sobre a velocidade absoluta das coisas, mas a velocidade relativa, porque a pressa tornou-se o normal e o correr se tornou uma regra. Começamos a achar que mesmo quando estamos correndo muito e fazendo mil coisas,  ainda assim temos a percepção que estamos em dívida, que não demos conta, de que precisamos fazer mais ou até de que a gente nem esteve ali presente. Então, o desacelerar não é ser lento, mas recobrar os sentidos para recobrar essa presença. Estamos sem qualidade de presença porque vivemos acelerados, erodindo nossa condição de seres humanos na convivência.

Quando você sentiu, particularmente, a importância e a necessidade de desacelerar?

Costumo dizer que o Desacelera é um projeto biográfico. Quando meu filho Miguel nasceu (2011), eu brinco dizendo que ele nasceu e o tempo encarnou. Sempre fui uma pessoa do mundo dos ativismos, e temos essa coisa de que o mundo precisa da gente, temos que estar numa espécie de prontidão. Eu era uma pessoa extremamente acelerada e quem me conhece pessoalmente sabe que eu sou mesmo, minha vida não é devagar: sou mãe de dois meninos, cuido deles sozinha, sou uma mulher pernambucana, moro em São Paulo, não sou herdeira, pago minhas contas e não tem como ser desacelerada nesse contexto. Mas foi fazendo escolhas que o Desacelera apareceu na minha vida como elemento biográfico mesmo. Essas escolhas foram me mostrando que eu podia estar mais consciente, acho que essa é a palavrinha mágica, que eu podia estar mais consciente e equilibrada nas minhas escolhas relacionadas ao tempo. Acho que a consciência e o equilíbrio vieram dessa história biográfica que começou com a chegada do Miguel e continuou com a chegada do Francisco, que é o mais novo.

Você começa a construir o guia Desacelera SP em 2015 e ele estreia mesmo em fevereiro de 2016. Agora em março de 2023 tornou-se o Instituto Desacelera. Como foram os desdobramentos da iniciativa?

Criei o Guia, depois fui criando a Rede, de onde nasce o Dia sem Pressa, que é um festival. Do festival nasce a Escola do Tempo, um local em que oferecemos cursos, formações, porque percebemos que as pessoas precisam ser letradas para lidar com o tempo nessa nova condição, então, fazemos letramentos temporais. E começamos a atuar dentro das organizações e empresas porque percebemos que a força do trabalho é uma força que é uma engrenagem dessa sociedade do cansaço, como o filósofo Byung-Chul Han fala. Assim, atuamos nos lugares onde as pessoas trabalham para desacelerar culturas organizacionais. Porque se a gente continuar responsabilizando só os indivíduos, vamos criar uma massa de pessoas que, além de cansadas, exaustas, exauridas e esgotadas, vão estar completamente pressionadas por um discurso que as responsabiliza por uma coisa que não é uma escolha individual. Acho que o pulo do gato da fundação do instituto, que aconteceu depois de 7 anos do Desacelera São Paulo, é tirar São Paulo do nome, desterritorializar a ideia. Não é mais sobre São Paulo, é sobre todas as metrópoles e grandes cidades. A cultura da velocidade está estabelecida como condição globalmente e a gente precisa expandir esse trabalho. Inclusive, no dia 22 de julho  vamos aterrissar em Salvador. Vamos fazer um encontro de fundação da Rede do Desacelera aí.

Você explicou que o Desacelera não tem a ver com ser devagar, ou seja, com a velocidade absoluta das coisas. Alguém já brincou que o tempo na Bahia, em Salvador, se divide em “lento, lentíssimo e Dorival Caymmi”. Mas há muito tempo Salvador não é mais a cidade que Caymmi cantou, com seu tempo, ou tempos, digamos, particulares. Qual sua expectativa em relação ao Desacela por aqui?

Tenho uma ligação forte com Salvador, minha família está toda aí. Morei aí um tempo e meu trabalho com organizações da sociedade civil e meu envolvimento com o jornalismo de Terceiro Setor tem uma raiz em Salvador. Ao longo do tempo do Desacelera, fui construindo parcerias aí e em algum momento das minhas visitas pessoais, porque vou visitar minha família, comecei a encontrar pessoas e percebi que poderiam ser parceiras da chegada do movimento na cidade. Quando começo esse processo de fundação do instituto, há conversas mais sérias a respeito: ‘Gente, acho que está maduro, vamos fazer um movimento, de fato, para levar o Desacelera para Salvador?’. Óbvio que vem a provocação, muitos amigos fazendo piadas a partir desse estereótipo de que Salvador é lenta e tal, e eu transformo isso numa questão quase pessoal.

Acho que Salvador tem um desafio ainda maior. As últimas vezes que fui na cidade percebi muito que a aceleração é mesmo uma condição. Óbvio que tem o cultural, e a gente sabe que tem, mas as pessoas estão, sim, aceleradas. As pessoas de Salvador não estão isentas da aceleração social do tempo. Temos um desafio duplo, que é falar dessa aceleração e combater esse estereótipo do que esse é o tempo daí. Também estamos vivendo sob a era da aceleração social do tempo na Bahia e precisamos falar sobre isso, porque senão a gente vai normalizar, ainda mais perversamente, as doenças de velocidade por aí. Meus parceiros de Salvador já estão tocando ações de saúde mental e de bem-estar na cidade, criando espaços bacanas relacionados a uma vida sem pressa. Vou ativando essas parcerias e vamos construindo esse dia 22, em que vamos montar uma espécie de circuito, começando com uma prática de meditação, yoga, autocuidado, alimentação em algum momento e vamos fazer uma aula. Vai ser um encontro de 4 horas fundador da Rede Desacelera em Salvador.

Estamos imaginando reunir pessoas que já estão construindo o Movimento Slow em Salvador e que gostariam de mergulhar no tema da aceleração social do tempo, das fontes afro-ameríndias de reflexão sobre o tempo, porque a gente tem essa pegada de trazer o conhecimento de outras formas não ocidentais de visão sobre o tempo, o tempo não cronológico, o tempo cíclico, o tempo da memória, o tempo da ancestralidade, para esse aprendizado.

Algo muda em relação ao que acontece em São Paulo?

A experiência que tenho de conectar a rede em São Paulo é a seguinte: as pessoas estavam fazendo isso, mas estavam fazendo cada uma no seu quadrado, de forma fragmentada. Até que alguém chega e fala: isso é Movimento Slow, isso é o movimento Desacelera em Salvador, isso é bem-estar, saúde mental e cuidado rumo ao bem viver, que é a perspectiva coletiva do bem-estar, a perspectiva de democratizar esse bem-estar de forma que ele possa chegar para todo mundo. A gente já entendeu que bem-estar e saúde mental é importante, mas isso ainda é uma agenda muito elitizada. Como que a gente consegue conduzir isso para uma perspectiva de bem viver? Nesse sentido, Salvador é uma cidade muito importante, porque São Paulo é uma cidade sudestina, e tudo que acontece aqui termina sendo muito elitizado, então, para mim, Salvador ser a primeira cidade que o Desacelera vai chegar depois de São Paulo, formalmente falando, tem um significado pessoal e político muito importante. Salvador traz essa africanidade, essa perspectiva de ser uma cidade que traz todos esses saberes e conhecimentos. Nossa expectativa é que seja um encontro fundador de um movimento que vai seguir acontecendo e pode ser uma coisa parecida com o que aconteceu em São Paulo: vai gerar festivais, mobilizações, encontros, produção de conhecimento.

Você idealizou o Dia sem Pressa, cuja primeira edição foi em 2018, com o primeiro festival da cultura slow do Brasil. Antes disso, ouvíamos falar muito de Slow Food. Como essa crítica e prática em relação à alimentação migrou para outros campos até o que se chama de Slow Living, estilo de vida desacelerado, com mais equilíbrio e consumo sustentável?

O Slow Food é o movimento precursor do movimento slow. Ele nasceu na década de 1980 na Itália, quando as pessoas protestaram contra a instalação de um restaurante fast food, com o slogan de que todos temos direito a um alimento bom, limpo e justo.  Slow Fashion é um movimento muito baseado nos preceitos do Slow food: conhecer a origem da roupa, do acessório e da importância da moda ser sustentável. O Slow Kids nasce como movimento pela preservação da infância com esse tempo do brincar, fluir, totalmente livre desse pensamento aceleratório, das influências das telas e conteúdos aceleradores da infância, porque cada vez mais as crianças mais novas são assediadas pela aceleração.

O Slow Medicine é viver a medicina que olha para o ser humano de forma integral, uma medicina exercida com tempo para a não medicalização dos corpos e se contrapõe à indústria farmacêutica, que vende soluções para sintomas e não para causas. Então, vemos esse movimento do Slow Living se espraiando para outros campos da sociedade. Hoje, o que a gente chama de Slow Living é um pouco esse movimento em todas as suas vertentes, reunidos sob essa ideia de que podemos viver sim uma vida mais desacelerada. O Slow Food é um movimento precursor, inspira os demais e hoje integra de forma significativa a filosofia Slow Living como um todo.

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