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Milena Britto: "O Brasil tem que fazer uma grande volta aos arquivos"

Publicado domingo, 03 de julho de 2022 às 00:12 h | Atualizado em 03/07/2022, 10:24 | Autor: Marcos Dias
"As pessoas articulam muito pouco o que foi de verdade a produção de Amélia Rodrigues e como pode ser acionada 
de novo como  um aspecto cultural da própria Bahia", diz a professora e crítica
"As pessoas articulam muito pouco o que foi de verdade a produção de Amélia Rodrigues e como pode ser acionada de novo como um aspecto cultural da própria Bahia", diz a professora e crítica -

Após quase 140 anos, o romance O Mameluco, da escritora baiana Amélia Rodrigues (1861-1926), publicado originalmente como folhetim no jornal Echo Sant'Amararense, em 1882, acaba de ter sua primeira edição em livro,  pelo selo editorial paraLeLo13S. A dedicação e as pesquisas da doutora em Literatura e Cultura Brasileira e professora de Letras da Ufba, Milena Britto,  que escreve a apresentação e um ensaio no livro, garantiu  a seleção do projeto no  Rumos Itaú Cultural 2019-2020. "Amélia Rodrigues foi uma intelectual do tempo dela de uma forma muito completa”, diz Milena, que ao mesmo tempo em que se dedica a pesquisas,   se emociona quando vai a slams [batalhas de rimas] e pensa que "não é a formação acadêmica que faz o bom artista". Essas dimensões devem se fundir, atualmente,  no planejamento da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip,  programada para novembro, em que ela é uma das curadoras, ao lado da editora Fernanda Bastos e do crítico literário Pedro Meira Monteiro.

A que você atribui o fato de O Mameluco, publicado em 1882 como folhetim, não ter tido uma edição em livro até agora, com a publicação do selo paraLeLo13S?

São duas coisas que interpreto com meu olhar sobre a época. Uma é que a temática, da forma que ela articula no romance, não teria como ter um sucesso estável quando ela escreveu, porque ela estava  no bojo daquela sociedade que tinha ideias totalmente opostas sobre o problema racial. Embora os temas no romance favoreçam, no final,  uma perspectiva branca, é um romance que denuncia a hipocrisia dos poderosos, o desmando aleatório, o controle e opressão de pessoas escravizadas e indígenas.  Ela era jovem quando publicou, tinha 21 anos, e com o envolvimento dela com a religião católica, esse romance não cabia com o que ela se tornou depois, uma missionária em prol da educação das mulheres a partir da visão católica.  A própria Amélia Rodrigues não citava essa obra dela, tanto que a obra ficou perdida mesmo. Foi citada em alguns textos em homenagem a ela,  até que um dia que eu estava pesquisando outro material dela e encontrei um recorte e dava para ver o nome do jornal, e foi assim que cheguei ao romance. Essa é uma explicação ligada ao conteúdo, ao contexto da autora. A outra explicação já tem a ver com o desinteresse da historiografia sobre a publicação de mulheres e, nesse sentido, acho que o Brasil inteiro tem que fazer uma grande volta aos arquivos, porque a gente pode ter outras Maria Firmina dos Reis (1822-1917), por exemplo, uma mulher que demorou muito a ser resgatada, até porque foi uma precursora do romance. A historiografia brasileira, no aspecto literário, ao contrário de outros países, não trata essas publicações de mulheres como um objeto cultural. 

Partindo de uma história de amor numa fazenda do Recôncavo baiano, O Mameluco trata de mestiçagem e preconceito, quando ainda havia escravidão, durante a Guerra do Paraguai. É possível imaginar a recepção da obra a partir do perfil  conservador do jornal  Echo Sant'Amarense?

Acho essa especulação interessante. É um pouco chocante quando a gente vê que o folhetim tinha muito destaque na página, e você vê ao lado ou na mesma página senhores oferecendo recompensas para quem achasse os escravizados. Percebemos que já tem um público que quer ver alguma espécie de progresso. De qualquer maneira, sendo conservadores ou não, todos os grupos estavam pensando o que aconteceria racialmente com a nação. Ao contrário da gente, que já é formado por uma pedagogia da nação, do encontro de raças, ali era onde estava se formando essa ideia, eles não tinham a definição, era um panorama social muito desequilibrado.  Considero que  essa é a grande força e coragem de Amélia como mulher,  ela resolveu enfrentar uma contradição, um paradoxo dentro do panorama onde ela estava bem imersa, que era a manutenção do poder de poucos e uma grande população que já se misturava e estava se reelaborando, tanto que ela faz questão de mostrar as várias mestiçagens. Ela era jovem, estava no auge do reconhecimento público e gozava do prestígio o suficiente para ter acesso ao jornal. Possivelmente, quem administrava o jornal tinha interesse em colaborar com essas discussões, mas como acontece no mundo contemporâneo, o próprio jornal era patrocinado por esses anúncios.

Você diz no ensaio que "o romance é um testemunho de que a ideologia colonial sempre prevaleceu na sociedade baiana". Que traços de colonialidade você reconhece na sociedade  contemporânea?

Acho que uma das grandes coisas que a gente convive é o racismo contra as pessoas negras. Até hoje todos os edifícios, até os que estão sendo construídos agora têm o elevador de serviço, têm os quartinhos de empregadas. Estou falando de uma classe alta, obviamente, mas dentro dessa estrutura existe uma separação radical entre quem presta o serviço e quem consome. Isso também está refletido na cor da pele e na classe social: são pessoas que vivem na periferia da cidade, negros, negras e mulatos que não têm acesso a uma experiência salubre. Mas também nas dinâmicas sociais. Se você vai ao TCA você vê pessoas de pele branca, e se você vai na Concha Acústica, é um público diverso. Então, temos ambientes separados. Por que isso? Por causa do preço mas também por causa de outras condições, se não é um artista negro ou negra é como se as pessoas não fossem bem-vindas ali, ou elas sentissem isso. Uma das formas que a gente percebe o racismo colonial permanecer é de forma estrutural. Na universidade, nos cursos de elite, a maioria é branca. Os transportes públicos são sucateados e o uso é de pessoas negras pobres. A sociedade não se envolve na organização urbana das periferias, não se mexe para saber por que aconteceu um genocídio de jovens negros anos atrás, como é que estão os presídios. De certa forma, há uma aura de branquitude que organiza a sociedade.   É muito triste o resquício de uma estrutura que a gente percebe que se mantém. Quando  lemos um romance desse, a gente entende por que se mantém, porque foram projetos artificiais de união. Quando Amélia coloca essas questões, esses desencontros, é para tentar entender o que vamos fazer dessa pátria que a metade da população é negra: como é que brancos e negros vão dividir? A única coisa que não querem dividir é o poder.  A gente aprendeu a dividir pouco os espaços entre todos nós, e não é um problema que interessa só às pessoas negras, indígenas e mestiças. 

Você considera que a Bahia, apesar de Amélia Rodrigues dar nome a uma cidade desde 1961, reconhece a importância da autora de O mameluco?

Acho que reconhece a importância dela de forma limitada. Porque realmente ela é ovacionada como uma grande pedagoga, como a professora. Mas é preciso remexer um pouco na história, porque ela foi precursora do jornalismo, fundou a primeira revista dirigida e escrita por mulheres, ela tem uma contribuição intelectual para além do trabalho de poesia, de dramaturgia e romancista.  Amélia Rodrigues foi uma intelectual do tempo dela de uma forma muito completa: ela traduziu, se  envolveu nos problemas políticos e sociais da cidade.   Ela é elogiada, é nome de cidade,  um reconhecimento porque ela foi uma grande voz, mas as pessoas na Bahia articulam muito pouco o que foi de verdade essa produção e como pode ser acionada de novo como  um aspecto cultural da própria Bahia. Nesse sentido, a falta de circulação e divulgação desse trabalho também dificultam isso. Por isso que é importante o apoio do Rumos porque era um processo de livro que seria caro, e a editora queria trazer o livro de uma forma que o próprio romance guiasse a discussão. Acho importante que esse tipo de obra, não só a minha pesquisa, não fique só na academia, porque a gente é uma bolha. De forma geral, o público não acessa essas discussões. Então, acho interessante que agora, com o romance, as pessoas conhecerem que Amélia se interessou  por um tema que é um dilema hoje. Até hoje há essa questão da mestiçagem brasileira, esse apaziguamento da convivência racial que está na história canônica, mas a realidade não corresponde a isso de forma alguma. Não vejo nada mais intelectual do que isso, uma jovem pensar ‘quero contribuir com a pátria, o que será o futuro do Brasil se isso continuar?’. Intelectualmente, ela está mexendo nessa temática, e  vale a pena discutir para que ela não seja apenas um nome de cidade.

Além da sua experiência e atuação como professora e consultora editorial, você atualmente é uma das curadoras da edição da Flip 2022, programada para ocorrer de  23 a 27 de novembro. Como tem funcionado essa curadoria coletiva?

Eu achei muito interessante como eles propuseram, três pessoas que não são dos mesmos lugares e ambientes. Fiquei ao mesmo tempo muito assustada e muito lisonjeada por estar na Bahia e ser pensada para isso. Uma das coisas que acho positiva é que para essa programação sair lá na frente, ela já vai ter passado por impasses internos, no sentido de que cada um tem que defender uma ideia, convencer o outro a partir da sua visão de mundo, do seu lugar de fala, da sua região. Uma coisa  óbvia era tirar um pouco esse foco do Rio e São Paulo. A Flip, mesmo que tenha essa importância nacionalmente, porque aponta caminhos, revela vozes, a geografia tem que ser também representativa. Não que a gente possa escapar do mercado, porque não vamos esquecer que não é uma política pública no sentido de um evento com essa finalidade didática,  é um evento privado, mas mesmo assim pode refletir a literatura de uma maneira mais contemporânea. 

Estamos num momento já bastante tensionado no país por causa da condução política do governo federal, com reflexos assombrosos no dia a dia dos brasileiros. Para você, particularmente, qual a questão que considera importante ser refletida na Flip?

São várias questões. Mas acho importante  pensar em diálogos sobre o tempo em que a gente vive numa perspectiva mais ampla, no sentido humano, geográfico, filosófico. Acho extremamente importante a gente se voltar para a ideia do invisível, do encontro com aquilo que não se vê, e não só depois quando isso se torna um problema ou tragédia. O que aconteceu agora com o jornalista Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira faz a gente pensar não apenas na separação de indígenas ou de uma geografia do Brasil, mas como está insustentável a violência para qualquer pessoa que minimamente se preocupe com o outro. É quase como se fosse proibido a pessoa denunciar o erro. Não estávamos vivendo mais essas coisas desde a ditadura, e agora voltam. Acho importante  termos  essas diferenças todas em diálogo pelas contribuições estéticas da arte, da literatura, da poesia, que faça com que a gente encontre novamente uns aos outros. 

Você declarou recentemente que seu interesse na literatura vai desde "o poeta do slam e o verso escrito num grafite até a literatura que se pensa como parte de uma estrutura intelectual". Como é que você pensa o valor literário?

Eu penso a literatura numa perspectiva expandida. Literatura é aquilo que a palavra pode visibilizar ou atender, mas é óbvio que essa vinculação está de forma contemporânea em todos esses lugares que a gente experimenta, que a gente se põe a escutar, a ver. Então, eu realmente acho que essa literatura que se pensa como parte de uma estrutura intelectual ainda tenta se proteger muito, mas quando percebemos que convivemos com todo tipo de experiência subjetiva, e as pessoas podem traduzir esteticamente seus dilemas, seus sonhos, eu me emociono no slam quando vou escutar poesia falada, porque é poesia, eu consigo perceber ali no calor da emoção certas experiências que me emocionam mais do que outras. É uma contradição também a gente pensar que há uma coisa só nessas manifestações, não é uma coisa só. Mas quem gosta da literatura, do bom livro, do bom poeta, não tem que ter vergonha de gostar, mas se abrir para que isso se junte a outros repertórios. É simplesmente viver nosso tempo, a nossa arte hoje espelha muitas coisas dentro de lugares diferentes, não é a formação acadêmica que faz o bom artista. A gente pode gostar disso tudo junto com Clarice Lispector e Shakespeare. Às vezes, você vê um grafite e ele é cheio de referências que podem estar na literatura, mas pode ter sido criada por aquele poeta naquele momento, fala sobre o corpo naquela cidade. A gente tem a literatura de cordel, que é riquíssima e ensina versificação, ritmo; temos o rap, são tantas formas de viver a literatura, que a gente precisa se abrir dos dois lados, tanto um lado quanto o outro, abrir os ouvidos e os olhos e compartilhar experiências estéticas. Acho que a força do nosso tempo está em não precisarmos mais abrir mão de uma coisa pela outra, então, isso deveria já estar também nesses grandes festivais. 

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