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08/05/2022 às 6:04 - há XX semanas | Autor: Clara Cerqueira

CRÔNICA

Minha casa era como a casa dos Buendía

Um dia, a família me incumbiu da tarefa de escrever sobre minha avó. Fiquei tão nervosa que congelei, suei frio e quase chorei, mentira, chorei mesmo de tanto nervoso e ansiedade - ela era das letras e se eu errar o português? Tudo que sei sobre ela sei apenas de ouvido e se eu não tiver nada para contar? E se? E se?

Desesperada, deixei o “e se” de lado e liguei para minha mãe. Chorei de novo, claro, e comandei: me conte sobre minha avó. O resultado de todas as conversas que tivemos depois disso foi uma das coisas mais incríveis que já me permiti: conheci um pouco de minha avó, conheci melhor minha mãe e, de quebra, entendi melhor quem eu sou.

— A vida era um entra e sai, porque minha casa era uma escola.

Disse-me minha mãe, filha mais velha de minha avó Candolina, nascida Cândida Maria em homenagem ao avô e vivida Cândida de candura mesmo. O Maria era o nome cristão geral, todas as filhas eram Maria e eu, por muito pouco, não fui Maria também. Clara Maria, minha tia me chama assim. De minha avó minha mãe puxou o ser médica, pois dizem que dona Candolina Professora sonhava com a medicina e fez até curso de enfermeira para ir para a guerra no estrangeiro, mas ficou professora aqui na Bahia mesmo, nessa terra de régua, compasso e poesia.

De resto, ela não é tão dada a gente como era Candolina, sempre às voltas com alguma benfeitoria, sempre botando mais um para dentro de casa. Ela até puxou de minha avó o gosto pela adoção, mas tenho a impressão de que praticaram essa propensão de formas um tanto diferentes. Mas não divaguemos, voltemos à casa.

— Essa casa era onde minha mãe? Pergunto tentando juntar as pontas. Estou aprendendo a botar as coisas passadas em seu devido lugar.

— Essa era a casa da Joana Angélica, que depois demoliram para construir o viaduto ali perto do Severino, onde minha mãe ensinava. Essa era a casa da primeira escola, onde sua dinda se alfabetizou. Tinha os alunos que viviam entrando e saindo, tinha os professores e as secretárias. Tinha os aderentes também, que estavam ou não na escola. Teve Cláudio, um menino que perdeu a mãe. O pai dele ficou numa situação meio complicada e pediu a minha mãe para tomar conta do menino. Teve outra menina que chamava Dulce que eu não me lembro como chegou, mas ficou lá um tempo. Teve uma grávida que pariu lá em casa e ficou com o neném até que uma parente dela adotou a criança e eles foram embora. Teve a velhinha que ficou lá por arte do Frei do Mosteiro, como a grávida, e assim ia aparecendo gente.

— E essas crianças, essas pessoas, ficavam onde? Tinha um quarto, um quarto de hóspedes, ou ia enfiando no quarto de vocês mesmo?

— Não, ia enfiando lá no sótão. O sótão era grande e a gente ia botando umas camas.

Esse sótão era uma daquelas coisas que sempre acenderam as luzes de minha imaginação, como um daqueles lugares que vão crescendo e se adaptando aos novos moradores e a suas histórias; como o lugar onde minha mãe dormia e de onde dizia subir no telhado, através de uma janelinha, para ler seus livros.

Queria essa janelinha e queria mais do que tudo aquele quarto escondido, aquele lugar todo fechado, com estantes dos quatro lados, onde moravam os livros de minha avó, seus poetas românticos e seus autores não tão românticos assim, com quem aprendia sobre pedagogia, sociologia, psicologia e todas as “gias” de que tanto gostava. Queria ter estado em sua intimidade, ter sentado em seu colo e ter feito parte de suas histórias.

Mas a solidão veio como um trator e passou por cima da casa, de tudo. E quando minha família me disse que escrevesse sobre ela, senti que a mim restava apenas a tarefa de tentar construir viadutos.

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