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CRÔNICA

Minha pele é metalinguagem

Confira a crônica da psicanalista Antonia Damásio

Por Antonia Damásio*

26/05/2024 - 4:00 h
Imagem ilustrativa da imagem Minha pele é metalinguagem
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Ébano e marfim, livre tradução de uma melodiosa música que McCartney canta em duo com Stevie Wonder. Ela se reveste de tons que nos elevam e fica difícil pensar profundamente sobre os efeitos separatistas num piano tão harmônico. O arranjo, a melodia, nos conduzem para outro lugar. Nem mesmo a Bahia traz à tona, tão facilmente, as nuances do debate da cor. Ter a alma nua, descobrir a linguagem da pele, é atravessar muitas camadas de melanina e lágrimas. É meter o dedo no recalque, é rolar os dados em uma construção histórica que nos atravessa a alma e a África.

A nossa travessia requer que, para além da miragem, encaremos a nossa nudez e o mutismo, juntamente. A negação é uma defesa, e o racismo, indefensável. Foram décadas alienada desta condição, anestesiada pelo impulso à sobrevivência. Quem vive no corre não tem tempo para sentir, apenas sofre os efeitos da diferença mais que anatômica entre os pares, entre os sexos, os olhares e as categorias sociais.

Quando me dei conta, já era uma mocinha. De dentro de um caiaque, aos dezesseis anos de idade, fui abordada por um veranista, da mais que tradicional família baiana. Ele me olhava com interesse e curiosidade. Eu flutuava, ainda que não soubesse nadar. Ele se incumbiu de fazer a minha proteção. Nada lhe pedi. Por fim ele se entristeceu, como o jovem rico interpelado por Jesus:

— A minha família jamais aceitaria alguém da sua cor.

— Pretendo ficar aqui por quinze dias. Você ainda não viu nada. Ficarei muito melhor. Preta, azulada.

Aquele episódio foi uma fagulha, mas a onda bateu, e o fogo apagou. Não foi o suficiente para que eu despertasse para o fato de que mesmo na Bahia o esperado era ser menos negra.

Acreditei por algum tempo que a gente escolhia os amores pelos favores do Olimpo. E que o mensageiro usava uma venda e uma balança para pesar os corações. O amor e a justiça divagando de mãos dadas. Uma mistura de lenda urbana e narrativas greco-egípcias. Alguma coisa entre o olhar e a voz. Um semitonal.

Não tinha cor, nem traços específicos. O amor me chegava assim, fantasmaticamente. No campo sempiterno das ilusões, repousam as divagações e teoremas acerca das leis da atração. Assombradas somos pelos príncipes que habitavam os lúgubres castelos da imaginação. Os ardis medievais. Ali repousam intranquilos os traços do que seria desejável num parceiro, no evangelho segundo a mentalidade colonial.

Exorcizar os dogmas da escravidão não é tão simples quanto fritar em um tacho. Agradeço por existir neste momento em que os muros podem ser derrubados e os sentimentos decupados. Emergem de parte a parte a necessidade de nomear, de dar forma e continente a sentimentos de alta complexidade. A tessitura das relações se mostra mais intricada que os teares de macramé.

Vaguei de um colono a outro, sem me dar conta do relevo do meu território. A solidão da mulher preta jamais pousou no consultório com a clareza apresentada por Bell Hooks, com as letras talhadas de Isabela Figueredo.

Preto no branco. Quantos negros havia naquele curso da Ufba? E quantos colegas passaram naquele concurso? E na segunda graduação? E as três especializações que você fez?

Ainda a caminho da roça, paramos para esticar as pernas e fazer um lanche. Buscamos a sombra. Encosto eu e a minha amiga, que segura firmemente o seu cocker spaniel. Uma senhora puxa conversa com ela, fala sobre sua fazenda nos domínios do Jequiricá. Interpelei a primeira vez. Ela fez a egípcia. Reincidi para não concluir precipitadamente. Mas não era outra coisa. A preta que estava ao lado só poderia ser a criada. Invisível. Temos muito a revisar.

Minha viagem foi ótima. Cozinhei o quanto quis, e tive prazer nisso. Estive perto da toca da onça, onde nasceu minha mãe. Senti que era essa a minha herança, ser muito negra e muito índia. Ser filha das águas e ainda ter os pés fincados no chão.

*Psicanalista

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Tags:

Cultura Afro-Brasileira DISCRIMINAÇÃO experiências pessoais identidade racial racismo reflexão social

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