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“Minha vida é na contramão da história”, diz etnolinguista

Yeda Pessoa de Castro lança sua nova obra, o livro Camões com Dendê

Publicado domingo, 05 de junho de 2022 às 06:00 h | Autor: Vinicius Marques
professora Yeda Pessoa de Castro que é etnolinguista, doutora em línguas africanas e membro da Academia de Letras da Bahia.
professora Yeda Pessoa de Castro que é etnolinguista, doutora em línguas africanas e membro da Academia de Letras da Bahia. -

Depois de publicar os livros Falares Africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro e A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do séc. XVIII, Yeda Pessoa de Castro está lançando agora sua mais nova obra, o livro Camões com Dendê: o português do Brasil e os falares Afrobrasileiros. No currículo de Yeda, hoje com 86 anos, estão seu trabalho como etnolinguista, suas formações como mestre em Ciências Sociais pela Unife (atual Universidade Obafemi Awolowo), na Nigéria; doutora em Línguas Africanas pela Unaza (atual Universidade de Lubumbashi), no Congo; consultora técnica em Línguas Africanas do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo; membro da Academia de Letras da Bahia, e do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan em Línguas e Culturas Africanas. O extenso currículo não é de se espantar, visto que é o resultado de toda uma vida dedicada aos estudos linguísticos-culturais da África no Brasil. No novo trabalho, publicado pela editora Topbooks, Yeda se debruça na sua última pesquisa, iniciada há 20 anos, em que apresenta um “abecedário” de termos originários. Nesta entrevista, a etnolinguista condecorada no grau de Comendadora da Ordem Rio Branco pelo Itamaraty e com a Comenda Maria Quitéria pela Câmara de Vereadores da Cidade do Salvador, fala de como surgiu o interesse pelo campo da pesquisa, da dívida brasileira com as heranças africanas e dos próximos trabalhos.

 A vida da senhora é dedicada à pesquisa linguístico-cultural do Brasil. Quando surgiu esse interesse e por quê?

Esse interesse surgiu quando eu era pequena. Quer dizer, pequena eu continuo, quando eu era garotinha ainda. Nasci na Barroquinha, Baixa dos Sapateiros. Meu pai era funcionário público e minha mãe dona de casa. Ali na Barroquinha, a vizinhança era formada por pessoas negras. Eu estava sempre com todos eles e ficava muito curiosa que alguns deles falavam algumas palavras que eu não entendia. Aconteceu que quando eu fiz 7 anos, meu pai me deu de presente um livro chamado O Aviãozinho Vermelho, escrito por Érico Veríssimo, que foi publicado exatamente no ano em que eu nasci, 1936. Esse livro conta a história de um menino branco que recebeu de presente de aniversário um livro e um aviãozinho vermelho. Ele sonha que está viajando nesse aviãozinho por vários lugares, inclusive na África. Lá aparecem muitos meninos negros falando coisas que o menino não entendia, e dizia que eles não falavam língua de gente. Aí você vê o preconceito. Fiquei intrigada. Pensei em todas as crianças negras com quem eu brincava. Eu estava curiosa porque eles falavam a língua que eu entendia, como é que no livro não se entendia?  E aí começou a despertar o interesse em saber que língua era aquela que falavam na história. Em determinado momento, eu disse: 'Sabe de uma coisa? Quando eu crescer vou me dedicar a estudar essas línguas porque quero saber o que eles estão dizendo'. Foi aí que surgiu, então, meu interesse e meu propósito de estudar as línguas africanas. Fiz vestibular para o Instituto de Letras, da Universidade Federal da Bahia, para poder saber alguma coisa de alguma língua africana que pudesse me ajudar a entender aquela língua que eles falavam. Me matriculo e faço o curso todo e não tem absolutamente nenhuma informação, nem sequer de leve se falava. É o que acontece até hoje. Cadê as línguas indígenas? Cadê as línguas africanas? Só em curso de extensão. Insisti e continuei a buscar, até que enfim apareceu na minha vida o professor Agostinho da Silva, fundador do Centro de Estudos Afro-Orientais. Depois, fui para a Nigéria e lá entrei no departamento do Instituto de Estudos Africanos da Universidade de Ifé. Em 1976, fui para o Congo, onde fiz meu doutorado e estudei o bantu.

 A senhora está lançando agora o seu mais novo livro, Camões com Dendê. Como se deu a pesquisa para essa obra e quais os novos resultados que encontrou?

Durante meus estudos, surgiram hipóteses sobre a interferência das raízes africanas no Brasil. Essas hipóteses foram publicadas e hoje se tornaram probabilidades. Isso começou em 2001. Agora, 20 anos depois, temos probabilidades e algumas certezas sobre a origem do português do Brasil em contato com as línguas africanas. Foram 20 anos de pesquisas ininterruptas e intensas. Pesquisas sobre o Brasil, mas também Angola, Congo e Nigéria. Observei que a maior consequência do tráfico transatlântico para o Brasil, com o encontro de falantes africanos, foi a alteração da língua portuguesa arcaica, das caravelas, com a língua bantu, que teve uma população de quatro milhões que foram escravizados da África para cá. E essas pessoas foram espalhadas por todo o Brasil. A consequência direta desse encontro entre falantes africanos com o português do Brasil arcaico das caravelas foi uma alteração em todos os setores. Principalmente na fala, na pronúncia. A pronúncia do português do Brasil é marcada pela presença de vogais, é vocalizada, sem a pressa da enunciação lusitana. A deles é uma pronúncia ligeira, rápida.

 De que forma esse novo trabalho se diferencia dos seus dois primeiros livros?

A diferença é que nesse trabalho eu transformo as hipóteses anteriores, porque ao longo de 20 aos eu testei essas hipóteses, e hoje elas foram transformadas em probabilidades. E algumas delas são verdades. Além desse fato, de a pronúncia vocalizada ser a marca identitária, as estruturas semelhantes do português arcaico das caravelas com a língua bantu, inibiu o surgimento de prováveis creoles no Brasil. Essas duas coisas eram hipóteses e acabaram se tornando probabilidades nessa pesquisa. Além do uso de vogais, como citei, muito presente nas nossas músicas e que é muito usado em onomatopeias também.

A senhora acredita que hoje exista um movimento de reconhecimento das heranças africanas, em relação à língua, por exemplo, para o povo brasileiro?

Até hoje o Brasil tem uma dívida muito grande, e a culpa é da academia. A academia é o principal discriminador das lembranças do Brasil. Por quê? As línguas africanas são vivas de oralidade. Nós temos uma didática, um ensino, que é focado na escrita em letras, na escrita literária. Se não estiver escrito em letras, não é lembrado, não é sério. E assim toda manifestação oral passa a ser folclore. É o caso, por exemplo de religiões afro-brasileiras: eles não seguem as normas das religiões escritas, nunca tiveram uma Bíblia.

Para além das suas pesquisas, a senhora integra organizações como o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan. Como é conciliar essas atividades?

É fácil. É muito fácil. Eu me aposentei muito cedo e sempre me dediquei, mesmo quando estava ensinando na Ufba, às línguas africanas. Sempre me dediquei a fazer com que se respeitassem as religiões afro-brasileiras. E quando me aposentei na Ufba, eu já fazia parte do conselho do projeto da Unesco, que era um projeto dedicado a valorizar a África e as línguas africanas. Me dediquei a essa pesquisa também. Aconteceu que... Minha vida é na contramão da história. Foi fundado o Conselho Consultivo do Iphan e me convidaram para fazer parte. A mesma coisa com o Museu da Língua Portuguesa, quando ele foi fundado eu também fui convidada para poder intensificar essas pesquisas.

 A senhora já está pesquisando para um novo livro? Qual é a próxima novidade?

 Estou sim. Mas dessa vez, vou escrever um livro chamado Minha Vida é na Contramão da História.

Vai ser uma biografia?

Não, não vai ser uma biografia. Vai ser uma narrativa de todos os acontecimentos que eu passei nessas pesquisas. Eu sofri muita discriminação no Brasil, e aqui na Bahia até hoje, por me dedicar aos estudos africanos. Tem três universidades na Alemanha que ensinam, aqui ninguém quer saber em quem quer ensinar kimbundu, uma língua de Angola, por exemplo. Tentei propor uma disciplina de kimbundu na Uneb e resultado: não aceitaram. Eles não disseram nada. De um dia para o outro recebi um aviso de que eu não era mais coordenadora dos outros estudos africanos da Uneb. Simplesmente, do nada, me botaram para fora.

E a senhora vai contar essas histórias nesse livro?

Vou falar que a Universidade Federal da Bahia, que está assentada numa cidade que tem uma maioria da população negra, no entanto, não dá a mínima importância para a língua africana. Só recentemente um grupo de estudos lá na Ufba começou a ensinar yorubá e kimbundu, mas como um curso de extensão. E não é isso. Tem de colocar como uma disciplina curricular, ao lado do japonês, do alemão, do inglês. Aí sim. Tem ainda os indígenas. É muito estranho isso, não acha? Além disso, não gostam que se fale no assunto. Foi o que aconteceu. Até hoje estou falando, mas não adianta. Talvez agora comece a adiantar alguma coisa, acabar com essas estruturas.

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