CRÔNICA
Miss Simpatia
Confira a crônica da psicanalista Antonia Damásio
Por Antonia Damásio*
Não duvido que poderia ser uma pessoa melhor, trabalhada nas benfeitorias da senzala. Com um pouco de esforço e jeito, como Bob Cuspe nos diria, a casa dos cinquenta nos autoriza a ser piores sujeitos. Escolhi esperar e me permitir saídas menos simpáticas. Liberdade se conquista com anos de prática, na força do detox e da páprica, que pode ser picante ou defumada. Tudo, menos doce.
Esse salto no escuro, sem paraquedas, corresponde ao passe livre para mandar tudo às favas, sem retroceder. O castigo de quem se arrepende e pensa em olhar para trás, é virar uma estátua de sal. Foi assim com a mulher de Ló. Não tenho saudades de Gomorra. Sequer representaria bem a mulher do pão de ló. Bolo de rolo, talvez, mas confeitaria nunca foi meu forte. Nem tudo é selfie-made. Quase tudo tem no delivery.
E pra acabar de me quebrar, inventaram o pão de frigideira. Na verdade, trata-se de um bolo omeletudo. É só tascar os ovos, mexer de qualquer jeito, e está feito. Quase tudo instantâneo e insosso. Tem comida que me irrita de verdade. Aprendi a discernir com a Rita Lobo, e sigo essa matilha. A cartilha da glutonaria adverte: mata-se duas vezes o mesmo ovo quando não rendemos a ele um tributo gourmet e oferecemos uma finalização elegante.
Resisti até o último instante para aderir à air fryer. Era como trair os princípios redentores do legítimo fogão a gás. O fato é que ganhamos tempo para torrar dinheiro. A conta sempre chega. Noves fora as queixas, facilitamos a vida um bom bocado. Salvamos todas as cenouras murchas e as velhas beterrabas. Tudo fica como novo e, creiam, parece até mais apetitoso. Os vegetais passam por harmonização facial. É um fenômeno esse equipamento. A banana molenga e suada ganha ares de banana passa. Tudo passa. Mas esse é um investimento com retorno garantido.
Sinto o som de estalactites. Um pouco de canela e cardamomo e já há fila no gargarejo. A esta altura já avancei para a frutaria. Desidratar virou quase uma obstinação. Um transtorno ter traços obsessivos. Semana passada ganhei uma jaca mole enorme. Em seu feed, no Facebook, o escritor Franklin Carvalho nos adverte que jaca mole é para ser dividida. Inventei um jeito de subverter a ordem, em nome da gulodice da casa dos 50. Meti mão na malvada carne e a destrinchei completamente. Um trabalho de paciência, grude e malemolência. Fui debulhando cada caroço e arrumando os bagos nas grades da potente air fryer. Era como um imenso varal. As jacas coaravam no tempero gostoso.
Tratei-a com a deferência de um artista frente a sua primorosa tela. Natureza morta. Pinceladas de canela, noz moscada e cardamomo. Alterei a programação, ajustei o temporizador e deixei que o aparelho fizesse a parte que lhe cabia. Uma estufa digna. O perfume se espalhou pela casa e infundiu por toda a vizinhança. A jaca fofoqueira lançou seu feitiço pelos ares. Especiarias com vento salitroso dão match.
Queria dizer que a receita rendeu novos amigos, que fomentou uma rede de sucesso, mas a verdade é que inventei um jeito de tornar uma jaca enorme e comunitária em um pote refratário de delícias. Desidratada, dura muito mais. Não sou obrigada a dividir com ninguém. Foi uma experiência de alquimia. Mudamos de textura, de volume e agora é tudo meu.
Aos que nesse instante me lançam olhares de fuzilamento, advirto que há um mandamento e sua respectiva sanção para cada pecado capital. Podem me julgar e lançar-me no Tribunal do cancelamento. A praga da engorda já não me pega no compasso. Eu falei faraó o-ó. Minha expertise em efeito sanfona me autoriza a adicionar iogurte de alto valor proteico, degustando cada baga, dançando lambada. E fazendo a egípcia do pole dance. É verdade esse bilhete. E tudo termina bem. Passem bem.
*Psicanalista
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