MUITO
Monique Gardenberg: O Brasil é refém de um jogo de palavras
Por Eron Rezende

Monique Gardenberg, 57, não gosta de multidões. Tem pânico. Nos contratos, estipula sua ausência dos shows que rege. "A orquestra, uma vez afinada, pode deslizar sem mim", diz ela, que trouxe para o Brasil Madonna, Rolling Stones, Elton John e Ray Charles numa época em que ninguém achava que isso fosse possível. Antes e depois dos astros internacionais, pôs no currículo a produção de shows para a elite da música nacional - Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Nando Reis, Marina Lima. Mas Monique, baiana de fala branda e riso alto, nunca foi dada ao frenesi dos grandes eventos e, quando seu nome já era grife, resolveu colocar mais um samba na biografia: elegeu o cinema como forma de compreender a própria vida. Quando dirige um filme, tem um "sorriso cinema", como ela diz à Muito. Em sua filmografia estão Jenipapo (1996), Benjamim (2004) e Ó paí, ó (2009), além de curtas e videoclipes. Em 2017, ela iniciará a feitura de dois novos títulos: a continuação do sucesso de público Ó paí, ó, a ser filmada em fevereiro, durante a festa de Iemanjá, em Salvador, e a adaptação do livro Caixa Preta, do escritor israelense Amós Oz. Nesta entrevista, Monique fala sobre filmes, feminismo, os rumos do país e as feridas pessoais que decidiu estancar.
Você sempre esteve envolvida com o audiovisual, mas passou dez anos sem assumir a direção de um filme. Dirigir é um peso?
O peso está em parir uma ideia que faça sentido contar e, também, em financiar essa ideia. O peso, para mim, não está em comandar uma equipe. Quando entra a equipe de criação e todos trabalham juntos, essa é a parte mais feliz. As pessoas que me conhecem dizem que eu tenho um 'sorriso cinema', que aparece quando estou filmando. Mas fazer um roteiro, achar o dinheiro e negociar é árduo. Caixa Preta, por exemplo, está nesse processo de encontrar atores, negociar com produtores. O peso está nesses ajustes.
No livro, Amós Oz faz uma representação do embate ideológico que acontece na Palestina. Quanto do desejo de adaptar essa história foi o de compreender a história de seu pai, um judeu polonês?
Meu pai saiu da Polônia e foi para a Alemanha com 2 anos de idade. A irmã dele ficou para trás, porque a família não tinha condições de levar um bebê. Meus avós e meu pai passaram a morar em Berlim. Meu avô era do partido comunista polonês e precisava andar disfarçado. A família foi migrando para diversos países até chegar ao Brasil. Da Alemanha para a Bélgica, depois para a Inglaterra. Iam fugindo quando o lugar ficava barra pesada. Essa sensação de ir sendo expulso, de fugir pelo que você é, está em Caixa Preta, uma metáfora para a questão palestina, um conflito que não se resolve. É uma coisa que me afeta diretamente, um mundo que também é meu.
Em Ó paí, ó (2007) você filma a periferia. Uma maneira de investigar um mundo que não é seu?
O que eu tenho, e está sempre comigo, é motivação política. Jenipapo (1996) era sobre os sem-terra; Ó paí, ó fala da população negra. No Brasil, a gente teve a bênção de ter os blocos afros baianos, que trouxeram o orgulho e a postura de dignidade. Mas é importante continuar falando. O preto, no Brasil, ainda está ligado a classes inferiores. Estamos longe de qualquer conquista significativa. A busca por justiça social move os filmes que faço.
E de onde vem a fama de ser o "Waltinho Salles de saias", como se você, tal qual o diretor, fosse herdeira de um banco?
Foi algo do início da minha carreira no cinema, quando surgi com um curta, Diário noturno (1993). Queriam saber qual dos apartamentos eu tinha vendido para bancar o filme e eu nem apartamento tinha (ri). Não cresci rodeada de dinheiro, pelo contrário. Meu pai encarava a vida como uma aventura e pulava de cidade em cidade. Ele decidiu sair de Salvador e ir para Santos quando eu tinha 13 anos. Quando chegamos lá e ele quis ir para Recife, minha mãe não quis. A gente não tinha um centavo na época. Aí minha mãe foi forçada a mandar cada um de nós - eu, e meus irmãos, Sylvia e André - para a casa de parentes. A gente ficou dois anos cada um em um ponto da Bahia, minha mãe no Rio e meu pai no Recife. Foi uma diáspora. Só quando minha mãe pôde, alguns anos mais tarde, levou a gente para o Rio. Tive que arrumar logo um emprego como secretária para ajudar em casa.
Você se tornou cineasta no momento em que Collor fechou a Embrafilme. O que a fez permanecer acreditando?
Na época, quando mostrei o roteiro de Jenipapo ao (cineasta) Miguel Faria Júnior, ele disse para seguir meu caminho, produzindo shows, e tentar fazer o filme com ajuda 'lá de fora', porque, no Brasil, ninguém iria me ajudar. Aí foi que mandei o roteiro para (o compositor norte-americano) Phillip Glass, que topou fazer a trilha. O Phillip mandou para o (produtor) Alan Paul, que topou se juntar à equipe. A roda começou a girar. Mas me endividei muito, acho que pedi dinheiro para o meio artístico todo. Foi uma ousadia. Cheguei a discutir na análise anos mais tarde (ri). Mas, quando você acredita muito na força de uma coisa, não tem outro caminho a não ser se jogar.
Recentemente, o governo interino de Michel Temer esboçou a extinção do Ministério da Cultura (MinC). Como viu a medida?
A decisão apressada de extinguir o MinC foi um retrocesso absurdo, depois das conquistas que tivemos, especialmente nos anos em que Gil e Juca Ferreira estiveram à frente do ministério. As conquistas do MinC são exemplares para muitos países. Ficou evidenciado o desrespeito. E acho que há algo ainda: uma forma de retaliação, porque a classe artística vê esse governo como golpista. Foi uma punição.
Na década de 80, você chegou a se engajar politicamente. Como avalia os 13 anos de governo do PT, que chegou ao poder com um discurso de esquerda e agora sofre um impeachment?
O PT conseguiu, mesmo com todos os defeitos, mudar o foco. O foco do governo petista foi o povo. Por mais que alianças tenham sido feitas para sustentar esse projeto - alianças que se mostraram muito danosas -, o governo do PT não foi focado na elite. Mas o Brasil vive hoje refém de um jogo de palavras e de interesses pessoais. Quando Temer abandonou Dilma, ao mesmo tempo em que Cunha se voltava contra ela, não se conseguiu votar uma pauta boa para o país. Por outro lado, o PT chegou ao poder e vieram as alianças com partidos pequenos, depois com o PMDB. E olha no que deu? Não sei como teria sido se essas alianças não tivessem sido feitas. Mas jogar o jogo da maneira como foi jogado foi uma lástima.
Desde as manifestações de 2013, fala-se num despertar político. Os brasileiros estão mais interessados nos rumos do país?
Acho que há um despertar, mas ainda é imaturo. Hoje, o maior princípio que está em jogo é o da democracia. Se você tem um governo que não lhe satisfaz, você critica e se opõe. Você não arma um golpe. Fazer da pedalada fiscal ou mesmo da corrupção, que é sistêmica, a desculpa para impedir um presidente eleito pelo povo é uma tristeza. Fico com vergonha. Depois de conquistarmos o direito de votar, de se reunir e de ter opinião, é frustrante ver um golpe articulado. O ministério do Temer é a prova: uma distribuição de cargos aos articuladores do impeachment. É triste. E acho que, a reboque, vão continuar tentando massacrar o Lula. Vão tentar de todas as maneiras expô-lo ao sacrifício, porque não querem que ele esteja 'vivo' em 2018. Se isso se agravar, o povo vai para a rua. Eu serei a primeira, como já fiz nos tempos de movimento estudantil, na faculdade de economia.
Como uma menina que queria ser atriz foi parar numa faculdade de economia?
Era muito menina e, quando vi que minha mãe estava cuidando da família sozinha e cada filho estava na casa de um parente, pensei que uma forma de ganhar dinheiro seria fazer economia. Uma decisão ingênua.
Foi no centro acadêmico da faculdade que você produziu os primeiros shows. Como funcionava?
Eu estava na faculdade, na UFRJ, que tinha no centro um pátio, o Teatro de Arena, que havia sido fechado pela ditadura em 1972, durante um show do Gonzaguinha. Quando entrei no centro acadêmico e no movimento estudantil, veio a ideia de reabrir o teatro, também com um show do Gonzaguinha. Era o início do movimento de abertura. A gente ia catar os artistas no Baixo Leblon - Fagner, Moraes Moreira, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo. A gente fazia direitinho. Usei minha bagagem de secretária, um senso de organização, agenda, arquivo...
O fato de o Brasil ser palco para nomes internacionais está relacionado com o seu trabalho como produtora. Como era nos anos 1990, quando você trouxe Madonna, Ray Charles e Rolling Stones?
Tudo na minha vida acabou sendo muito por acaso. Por isso, acredito muito no acaso. Comecei a organizar shows para ter dinheiro para o movimento estudantil, aí fui convidada pelo empresário do Milton Nascimento a virar gerente da turnê do Clube da Esquina 2 pelo Nordeste. A estreia foi em Salvador. Depois, o Chico Buarque começou a organizar os shows do (álbum) 1º de Maio e pegou uma turma de produtores do movimento estudantil. O grupo foi em uma grande excursão para Angola, com 60 artistas, entre eles Djavan. Ele me viu trabalhando, gostou e pediu para a gravadora me chamar para produzir um show. Acabei virando empresária dele e montando a produtora Dueto, com minha irmã, Sylvia. Comecei a viajar muito para o exterior e a entrar em contato com outros empresários. Um dia, me liga o Nizan Guanaes, que na época estava com a conta da Antarctica, e diz: 'Queremos trazer a loira gelada'. Eu: 'Quem é a loira gelada?'. E ele: 'A Madonna. Dê um jeito e contrate a Madonna'. Isso em 1993. Apliquei a cultura da secretária em grande escala (ri). Uma loucura, mas funcionou.
Em 2013, os festivais Sónar e SWU foram cancelados. Shows recentes de Madonna e Lady Gaga no Brasil tiveram encalhe de ingressos. A bolha do mercado de grandes shows internacionais estourou?
Vejo isso como uma saturação. Foi show demais, festival demais. Dizem que também houve um problema nos ingressos, muito caros (pausa). Mas, talvez soe estranho dizer, não vou muito a shows. O show da Madonna, em 1993, passei mal. Pedi para sair do estádio e fiquei caída num jardim do lado de fora. Quem me salvou foi o (bailarino e coreógrafo) Baryshnikov. Ele me viu caída, pegou uma lata de cerveja gelada e colocou na minha testa. Não costumo ir aos shows que eu mesma produzo. Tenho pânico de multidão.
Você já comentou que seu estalo para a arte veio ao assistir a um show de Caetano Veloso em Santos, quando tinha 9 anos. Como foi dirigi-lo no DVD de Prenda minha (1998)?
Caetano é o cara que eu admiro, sempre foi um norte na minha vida. Assim como Chico Buarque. Duas linhas de pensamento que convergem e divergem, mas que nos ajudam a refletir sobre o país, a vida, o nosso desejo. Por incrível que pareça, mesmo com a convivência que temos, ainda não consigo estar totalmente à vontade quando estou dirigindo ou trabalhando com ele. O Caetano vai estranhar ler isso. Mas, no meu íntimo, ainda estou diante de alguém que admiro demais. O desafio é imenso, porque ele é uma história enorme da minha vida, desde a primeira vez que eu o vi no palco. Era o símbolo da liberdade.
Há 30 anos, você lidera a produção de grandes eventos. Como vê a participação das mulheres nos negócios?
Comecei sem pensar que era mulher e continuo fazendo as coisas sem pensar que sou mulher. Sem dúvida, as mulheres têm que continuar lutando por igualdade de direitos - nossa presidente era uma mulher, agora temos um ministério macho -, têm que denunciar. Mas não acho que temos que medir as coisas de modo binário. Foi tanto tempo para dissolver os sexos que o discurso feminista obtuso me dá agonia...
Mas até que ponto a dissolução dos gêneros é realidade? Ainda não estamos na luta anterior, por visibilidade e espaço?
São lutas paralelas. A mulher vem conquistando espaço - ao menos, se levarmos em conta a história que nos precede. Mas não gosto de debitar tudo na conta do sexo. Quando você começa a debitar tudo na conta do sexo, a discussão fica estreita.
Você já disse que decidiu ser mais artista - e menos empresária - para poder purgar suas dores. Conseguiu?
Tenho conseguido. Digo que sou autoritária. Mas é um autoritarismo ligado à obstinação. Você nem sabe o motivo. Apenas faz aquilo em que acredita. O motivo é a ligação com sua própria história. Em Benjamim (2004), falei da saudade de uma pessoa que morreu, a minha irmã. Em Jenipapo, do meu pai, das viagens, do abandono. São traumas pessoais... Escrever, fazer um filme, uma peça, é um trabalho de análise. Só depois é que você descobre e enxerga os fantasmas.
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