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CRÔNICA

Na órbita das palavras

Por Da Redação

24/04/2022 - 12:06 h
Imagem ilustrativa da imagem Na órbita das palavras
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A vida das palavras não é fácil. Assim como nós, elas nascem, sofrem por maus relacionamentos, se desgastam pelo excesso ou pela falta de uso. Algumas delas envelhecem de pijamas diante da televisão. É o caso de SUPIMPA, antigo elogio. Outras, veem-se ligadas a significados obscuros, alheios à sua origem e história de vida. Foi o que aconteceu com a simples e matuta LARANJA, contaminada por operações de má-fé. Lembro um dia, quando colhia laranjas no pomar do sítio dos meus avós, e com os bolsos cheios (de frutas), disparei:

— Preciso de uma CATALARCA!

— O que é isso?

— É uma pinça cortadora pregada a uma arca para recolher o fruto que cai. Eu que inventei esta palavra — falei, orgulhosa, antes de ouvir a gozação do primo pré-adolescente.

— A sua cabeça é igual a de Zé Biboca. Palavra é coisa séria, e não é qualquer criança estúpida que pode criá-la — ele disse.

Fiquei revoltada com a comparação, todos na região conheciam o Zé Biboca, que perambulava pelas ruas usando um vocabulário próprio e ininteligível. Apenas algumas palavras suas eram usuais, talvez por questões de sobrevivência. Curiosamente, todas elas começavam com letra C, como comida, cobertor, casa, cama e calçado.

Em outra ocasião, à mesa de jantar, soltei:

— Hoje à tarde, um TRANSUENTE foi roubado aqui na rua… Não pude terminar a frase. A risada dos adultos foi geral, e alguém falou:

— Você quis dizer TRANSEUNTE!

Fiquei estupefata (palavra que detesto porque algo parece explodir dentro dela). Não era um ENTE, uma pessoa que TRANSITAVA, que havia sido roubado? Pensei em silêncio.

A partir dos dez anos, passei a ler tudo que podia, inclusive a coleção de José de Alencar que havia lá em casa. Lembro que odiava os vocábulos que teciam a prisão singela das donzelas do século XIX, sobretudo os verbos CORAR e DESFALECER.

Queria aprender o maior número de palavras para nunca mais sentir necessidade de inventar alguma. Passei a observar o que provocava o alvoroço delas dentro de mim, e cuidei de vigiá-las antes de ganharem a vida lá fora. Aprendi a respeitar também o silêncio delas, quando, incapazes de nomear certos sentimentos e experiências, desapareciam ou simplesmente escorriam pelas minhas faces.

Ao cursar o segundo grau, conhecimentos de etimologia, sintaxe e regras gramaticais me levaram a pensar que a língua era coisa para senhores de gravata sentados em repartições no alto do mundo.

Preferi dedicar-me à arquitetura, profissão que trata de coisas mais objetivas e sólidas. Ou nem tanto. A palavra PAREDE começa com a sílaba PA, o som de algo sólido caindo no chão, e termina com REDE, um artefato que balança. Ela sempre me assombrou.

Por interesse e área de especialização, a palavra PAISAGEM tornou-se a mais cara no exercício da minha profissão. Com o tempo, percebi a fragilidade dela ante outros termos como LUCRO e PODER no universo urbano brasileiro.

Um dia, ouvi o poeta Manoel de Barros falar do nascimento “dos primeiros sussurros”, das palavras e da importância delas no arejamento do idioma, razão pela qual, não raro, ele utilizava a sintaxe das crianças, dos bêbados e dos loucos. Eu me senti perdoada por antigas transgressões.

Naquele dia resolvi me embriagar.

— Quero construir imagens de devaneios, eu disse para mim mesma — Logo, o vinho, um companheiro complacente, respondeu:

— E por que não?

Aruane Garzedin - Artista, escritora e arquiteta

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Aruane Garzedin crônica Na órbita das palavras

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