OLHARES
Natureza rediviva por Baldomiro Costa
Doutor em História da Arte, professor da Escola de Belas Artes (Ufba) e museólogo
Por Luiz Freire*
Repetindo o trajeto cotidiano entre a Residência Universitária 1 (RU-Ufba), na Vitória, e a Escola de Belas Artes, Baldomiro da Cruz Costa percebeu uns funcionários da prefeitura limpando o jardim do Campo Grande, recolhendo as folhas secas, amontoando-as para o descarte. Em um dado momento, observou a plasticidade das palhas secas das palmeiras imperiais (Roystonea oleracea, espécie originária das Antilhas) caídas naturalmente e amontoadas.
Surgiu, então, a ideia de dar um destino diferente, de conceder uma nova vida a essas palmas, levando-as e reordenando-as no cubo branco da galeria de arte. Inicialmente, esse ato de apropriação e deslocamento se deu nas dependências da RU, onde morava, e na EBA (Áreas externas – 1989, Galeria do Aluno – 1990, e Galeria Cañizares – 2005) - e no Canela, 1989, onde realizava a Licenciatura em Desenho e Plástica desde o ano de 1983.
Beneficiado pelos conhecimentos fluentes na escola e ciente dos projetos ambientais dos artistas Juarez Paraíso, Edson da Luz, Frans Krajcberg e da Land Art (1960-70), Baldomiro deslocou as palhas, reordenando-as em contextos naturais das dunas de areia branca da Lagoa do Abaeté (1989), em Salvador e nas de Natal, no Rio Grande do Norte. Esse toque diferenciado definiu o caráter de suas intervenções, que variaram até o século 21.
O artista escolhe as palmas por critérios próprios, nos quais estão incluídas a expressividade das folhas, dos caules, a escultura natural que há nelas, manipulando-as e transformando-as minimamente. A manipulação não é fácil, as palhas têm farpas e são cortantes.
Na implantação no cenário natural, Baldomiro explora as possibilidades de composições, agrupamentos, linearidade, disposições ritmadas, contando, por vezes, com a participação de crianças, filhos das lavadeiras, que influíram nos arranjos e imprimiram ludicidade à ação.
Estética e significado atuam conjuntamente para visualidades e interpretações afinadas com os problemas contemporâneos, para o principal deles, a destruição da natureza e importância de preservá-la. Folhas secas são frequentemente abordadas como sujeira, entretanto, são outros estados da natureza, que contribuem para os ciclos de vidas dos demais seres e do próprio reino vegetal.
O deslocamento dessas palmas para ambiente diferente amplia a percepção humana de suas virtudes. Quando esse deslocamento se faz na própria natureza, todos os aspectos de fruição são alargados e a consciência da questão aflora, cumpre-se alguns dos desígnios da arte e do artista.
Natureza
Ao entrar na casa-atelier do artista, em Itapuã, de pronto entendemos sua relação com a natureza: um pequeno e aconchegante jardim, por ele construído, é composto por duas pitangueiras que dão frutos, uma trepadeira que recobre uma pérgula, sombreando uma área em que há uma espreguiçadeira antiga de madeira, uma rede, vasos com arbustos, espadas de Ogum, pedras de rio sobrepostas, piso de pedras com faixas em pedra portuguesa e pássaros cantando. Tudo ordenado para propiciar tranquilidade, influenciado que é pelo Zen Budismo.
Os jardins sempre lhes foram próximos, pois o pai, José Pereira da Costa (Zeninho) era negro, natural de Santo Estevão, mestre de obras, carpinteiro e também paisagista. Mudou-se com sua mãe, a dona de casa Marly da Cruz Costa, parda, e Baldomiro aos 4 anos de idade, para a cidade de Nova Osasco (SP), onde o artista estudou e permaneceu por 11 anos, até que retornou com a família à cidade natal, onde concluiu o ensino médio e junto com dois amigos, Washington Ribeiro e William Araújo, trabalhou com pintura e serigrafia sobre camisas de malha. Ao ser aprovado no vestibular, mudou-se para Salvador.
O ingresso na EBA/Ufba considera isso como algo marcante na sua vida e carreira artística, assim como o atelier que conseguiu montar na R1, nas traseiras da casa. No caminho que leva à praia Shangri-La, colheu as folhas de bananeiras secas e deu forma as primeiras esculturas: Dom Quixote e Sancho Pança. Escolheu os personagens de Cervantes por que eles “acreditam nos seus sonhos, como nós devemos também acreditar”.
Caminho e Forma foi como denominou os desenhos feitos na areia em 2003. O estalo surgiu quando viu um gari escrevendo na praia com um ancinho que usava para coletar os resíduos.
Baldomiro construiu seu próprio ancinho com largura superior aos industrializados, encontrados no comércio, e passou a desenhar formas espiraladas, círculos e outras na praia de Placafor, próxima à sua morada, no horário da maré baixa, de preferência, pois a areia deve estar molhada para os desenhos acontecerem. Pensou nas linhas de Nazca, no Peru, nos petróglifos (gravuras sobre pedras) da Pré-História e nas intervenções de Robert Smithson (Plataforma Espiral-1970) e Eric Mat (2015).
É curta a duração dos desenhos, já que a alternância das marés dura cerca de 6h12. Uma das suas ações teve a sorte de ser vista por um grupo de turistas nacionais, que fotografaram os desenhos e lhe enviaram as fotografias.
Muitos desses feitos não teríamos conhecimento se não fossem fotografados, derivando outra produção artística, na qual estão incluídos o olhar, as escolhas, os ângulos, a luz e a sombra dos fotógrafos, e na época em que a fotografia era analógica, nas alterações realizadas no processo de revelação.
Pelo caráter efêmero, as experiências que integram arte e natureza são pouco vistas pelas pessoas nos locais e momentos dos acontecimentos, o conhecimento se dá pelos meios de reprodução da imagem e pelas descrições.
Baldomiro enfrentou a dificuldade de acesso à fotografia no século passado, em um tempo que os telefones celulares não existiam e não continham câmeras fotográficas de qualidade, como hoje.
Registrou os trabalhos com câmeras comuns e contou com o apoio de colegas e amigos, que fotografaram as ações e disponibilizaram as fotos para divulgação. Entre esses amigos, menciona Cícero Bernardes e sua esposa, Juarez Paraíso, Arão Mário, Marcos Pimenta, Márcio Gabriel, Erivam Morais, Luiz Henrique e Márcio Lima, entre outros.
Exposições e prêmios
O artista realizou exposições individuais no Goethe Institut Salvador; no Centro Cultural Amélio Amorim (Feira de Santana, BA); MAM-Ba e Museu Regional de Feira de Santana. Integrou coletivas nacionais e estrangeiras, a exemplo da Fundação Bienal de Cerveira (Portugal); MAM/Ba; Instituto Goethe Salvador; Fazarte Galeria de Arte; Galeria O Cavalete e Galeria Solar Ferrão.
Foi premiado no VI Salão Regional de Artes Plásticas da Bahia (1993) e menção honrosa na VI edição do mesmo Salão (1995). Fez instalação no Palácio da Cultura no Rio de Janeiro, integrando a ECO92; participou do Arte Portal, Romênia, 2004; do Festival Vídeo Tokyo, Japão (1992), entre outros salões e eventos artísticos.
Seguida da exposição na Galeria Cañizares, a tese de Mestrado em Artes Visuais / Ufba foi publicada em formato de livro ilustrado, intitulado Natureza ampliada (2014), sob o patrocínio do Governo da Bahia (SEC/Funceb). Nela, há uma abordagem mais integral das ações do artista. Em 2008, com o mesmo patrocínio, publicou um pequeno catálogo a cores: Baldomiro 1983-2008 – Arte Contemporânea Baiana. E seu trabalho de desenho na areia da praia consta do video documentário Arte na Cidade Salvador (2003), dirigido por Danillo Barata, e disponível no Vimeo. Contudo, sua obra precisa de maior divulgação nas mídias digitais mais abrangentes.
Atua como professor de Artes Plásticas no Ensino Fundamental 2 em escolas públicas, em regime de contrato temporário, e pinta. Atualmente, está desenvolvendo trabalho de arte-educação nas oficinas do MAM/Ba.
As ações que fez ao longo de quatro décadas podem ser repetidas em variados locais, e em qualquer tempo, mas para isso são necessários recursos financeiros, apoio, inclusive, para um registro qualificado.
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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