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07/07/2024 às 0:37 - há XX semanas | Autor: Luisa Lá Lasserre

CRÔNICA

Nem tudo é espuma

Confira crônica deste domingo

Imagem ilustrativa da imagem Nem tudo é espuma
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Da varanda do apartamento, eu olhava o mar a quilômetros de distância. Via duas marolas correndo lateralmente, perdidas naquele manto azul. Que estranho! Andavam rápido em diagonal, já não pareciam ondas. Ajustei o olhar para observar melhor aquele rastro de espuma branca que riscava o oceano.

Não é novidade que meus olhos míopes já não veem tão bem assim, de longe. Seriam peixes? Golfinhos? Baleias? Não, iam sempre em um mesmo ritmo e em um traçado lateral, como se quisessem chegar à praia. Tinha algo mais ali. Pensei vislumbrar um braço em movimento repetitivo, como quem rema. Seriam canoas? Praticantes de stand up! Sim, eu podia apostar que era isso mesmo.

Eu via a cena, mas não conseguia distinguir todos os elementos dela. Enxergava apenas em parte. Sabia que havia mais ali do que eu estava sendo capaz de perceber, só não identificava bem o quê. Mais tarde, sentada no sofá, me lembrando disso, pensei que é assim também, tantas vezes, na vida. O que vemos não é tudo.

Por mais que uma cena esteja bem à nossa frente, não quer dizer que a enxerguemos na totalidade. Que a gente consiga vê-la não significa que a veja bem, que esteja próxima o suficiente para distinguir todos os detalhes, as nuances. A gente observa o rastro de espuma sem saber o que o provoca.

A gente vê o que o outro tem, mas não do que precisou abrir mão. A gente vê a decisão tomada, não todo o percurso que levou até o ponto de fazer aquela escolha. Vê a conquista do momento, mas não os meses e anos de esforço para conseguir chegar lá. Vê o que se mostra, mas não o que se esconde.

Na festinha de aniversário, a gente vê a criança cheirosa e arrumada. Mas não vê o berreiro e a birra para tomar banho e vestir a roupa. No elevador, vê a mãe de cara amarrada. Não vê a noite em claro que ela passou nem o tanto de base que precisou para disfarçar as olheiras, poucos minutos antes.

Aquele conhecido que cruzou sem cumprimentar… quem disse que foi de propósito só por causa daquilo que você falou outro dia? Alguém foi capaz de enxergar as preocupações que tomavam conta da cabeça dele bem naquele instante? E quanto à resposta monossilábica? Você leu os caracteres da mensagem, sem fazer ideia da correria do outro lado.

Na rede social, a gente vê a foto e a declaração. As discussões e os desentendimentos, alguém viu? A gente admira as imagens bonitas da viagem, não sabe quantas parcelas foram necessárias para fazê-la caber no orçamento. Quantos dias a mais de trabalho e horas extras para pagar as férias?

Por isso é tão difícil para nós julgarmos o outro, saber o que se passa de verdade no íntimo de uma pessoa ou toda a sequência de atos que levou a uma situação. Não temos acesso total nem a nós mesmos. Na nossa casa interior, há sempre um cômodo trancado, aqui e acolá, cuja chave escapou das nossas mãos e ainda estamos tentando achar.

Quem sabe, temos um quarto como o retratado no quadro de Vermeer, em que a parede aparentemente vazia ocultava um segredo. Em “Garota lendo uma carta em uma janela aberta”, a imagem de um cupido foi descoberta somente séculos depois, escondida por camadas de tinta e verniz. Por muitos anos, a pintura foi vista, mas a cena não estava completa.

Assim também se deu naquele dia, quando a espuma desapareceu no encontro da água com a areia. Eu podia ter pensado que era mesmo só uma marola. Uma ondinha de nada, levada pelo vento. Eu vi apenas um rastro branco riscando o azul. Mas só quem remou no meio do mar sabe quantas braçadas lhe custou até chegar à praia.

*Jornalista e escritora

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