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Nossa Senhora do Rosário dos Pretos celebra 123 anos de resistência

Espetáculos marcam o dia do aniversário da igreja que tem a alegria como dom de Deus

Publicado domingo, 10 de julho de 2022 às 08:00 h | Autor: Vinícius Marques
Fiéis ofertam pães nas missas das terças-feiras
Fiéis ofertam pães nas missas das terças-feiras -

Num dos cantos da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho, um casal espanhol com um bebê assiste atento à apresentação do espetáculo África, Um Conto Cantado, do Grupo de Teatro da Polícia Militar da Bahia, realizado na última terça-feira, como parte das celebrações aos 123 anos que a Irmandade dos Homens Pretos foi elevada a Venerável Ordem Terceira.

Sem entender muita coisa, aproveitando as similaridades da língua castelhana com o português, o casal repetia algumas palavras, como se quisesse anunciar um ao outro que compreendiam o que era dito mais à frente, no altar.

Vindos de Madrid, Daniel e Laura Martin estão no Brasil pela primeira vez. O casal queria aproveitar as férias para passear com o filho de apenas um ano e cinco meses, que no colo do pai dançava com as canções apresentadas pelo grupo teatral. Laura estava encantada, não sabia que encontraria uma apresentação daquele tipo quando decidiram, aleatoriamente, entrar na igreja ao ouvir os ritmos que ecoavam pela ladeira do Largo do Pelourinho.

“Ouvimos um som muito bonito e entramos. Não tenho palavras, estou fotografando para que o pequeno Pedro possa ver quando crescer”, conta Laura, enquanto dança. A animação e surpresa dela aumentou quando ficou sabendo que aquele grupo não fazia parte do núcleo da igreja, mas que eram todos da Polícia Militar. “O quê? São policiais? Isso é incrível”, disse.

Grandes impérios

A apresentação do grupo conta a história dos grandes impérios e civilizações africanas como Egito, Kush, Gana, Benin, Mali, Axum e as contribuições do negro nas letras, nas artes e nas ciências para o crescimento da humanidade, acompanhado de muita música.

Tudo isso é muito próximo ao trabalho que a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos realiza desde sua edificação, há mais de 300 anos.

O grupo de teatro da PM-BA, formado pelos sargentos Luis Anselmo, Zuleica, Marcelo, Pedro Teles, Jeã Paulo, Celina e o cabo Luis Carlos, abriu o Julho Cultural das comemorações. “A energia que a peça tem faz me conectar com os nossos ancestrais em solo sagrado e para a comunidade, reforçando a certeza de que a missão é compartilhar”, diz a sargento Zuleica, do Grupo de Teatro da Polícia Militar da Bahia. Essa não era a primeira vez da sargento na igreja, já que ela e outros membros do grupo teatral frequentam a Rosário dos Pretos. Tudo era muito habitual para eles.

Ao final do espetáculo, a missa dedicada a Santo Antônio de Categeró tem início. Realizada toda terça-feira, às 18h, a devoção segue a mesma animação do espetáculo apresentado alguns minutos antes: com muita música e dança. O casal espanhol continuava em pé, no canto da igreja, agora não mais sozinho. A igreja já estava completamente lotada, com diversas pessoas em pé por todos os lados.

No início da missa, o Padre Paulo Henrique perguntou quem vinha de fora. Mãos levantaram e anunciaram pessoas vindas de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Estados Unidos e Alemanha. O casal espanhol ficou acanhado e sorriu um para o outro, mas sem levantar as mãos. A casa estava cheia de gente de toda parte, mas principalmente de Salvador, como o próprio padre ressaltou ao pedir que os locais mostrassem presença também.

Celebração

A celebração da missa dedicada a Santo Antônio de Categeró tem um carinho especial dos fiéis, que já conhecem as músicas e, parecendo uma coreografia, realizam movimentos ao mesmo tempo, mesmo sem ensaios. Abraços, mãos levantadas e canto coletivo fazem parte da missa, que é apelidada de Terça da Bênção.

Uma dessas pessoas que, também em pé, acompanhou a celebração quase coreografada foi o ator Evaldo Macarrão, de 31 anos, mas que visita a igreja desde a infância, acompanhado do pai, que era devoto de Santo Antônio de Categeró.

O ator de Capitães da Areia conta que ainda pequeno soube da importância da devoção do pai pelo santo pelo fato de ele ser um santo preto da Igreja Católica. “Tem uma relação muito forte com a questão racial e com a devoção mesmo da igreja, a historicidade dessa igreja”, explica Evaldo.

“Vinha aqui muito pequeno com meu pai e hoje, ainda assim, retorno algumas terças-feiras, que é o dia de homenagem a Santo Antônio de Categeró. Hoje venho em homenagem a celebração não só ao santo, mas ao meu pai que já se encontra lá no céu, com Santo Antônio de Categeró, inclusive, mas que amanhã, se estivesse aqui, faria 70 anos. Então, nada melhor do que vir nesse lugar sagrado para contemplar e saudar, reverenciar meu pai que se encontra na luz, lá no céu”, diz o ator.

Evaldo participa de toda a missa e leva os pães para a bênção, tradição da igreja nas terças-feiras. Para ele, a oferta dos pães significa solidariedade, uma forma de lidar com a religião, pensando na sociedade e nos irmãos.

“Acho que esse é o real sentido da religião, agregar, abraçar, acolher. Ofertar o pão é estar nesse lugar de afeto, de cuidar, de se importar com o alimento do outro. Isso é bem bacana, bem simbólico para mim”, afirma.

Naquela noite, ele tinha ainda um outro compromisso. Da missa para Santo Antônio de Categeró, ele foi para o Ilê Axé Opô Afonjá, afirmando a autonomia que permeia a Igreja do Rosário – o Orixá e o Santo. Na terça-feira, o Opô Afonjá realizava uma festa para Xangô, do qual o pai de Evaldo também era devoto e filho.

Essa tradição da Terça da Bênção é uma das tantas realizadas pela igreja e a Irmandade do Rosário dos Pretos, que possui uma média de 130 membros em todos os seus segmentos.

De acordo com o Padre Lázaro Muniz, que esteve à frente da igreja entre 2012 a 2019, retornando em março deste ano, para os negros e negras, a comida, a dança, a festa, a alegria e a missa são dons de Deus, então, todos as celebrações da Igreja do Rosário acabam sempre com alguma refeição, que é um pouco da ligação com a africanidade.

Pádua e Categeró

Ele conta que na missa de terça, o costume de levar o pão era para Santo Antônio de Pádua, mas Categeró tem o nome de Antônio graças ao santo português, e como a Igreja do Rosário sempre procura cultuar os santos negros e negras, houve essa junção.

 “O pão que o povo oferece, que a tradição é oferecer para Santo Antônio de Pádua, se transformou em Categeró. O povo entra, dança e canta, depois o pão é partilhado, distribuído, levado para casa. O pessoal mais carente da área também vai receber o pão. Partilhamos o pão, água benta, dança... É uma grande festa”, explica.

Membro da irmandade há 28 anos, o atual prior, Adonai Passos Ribeiro, conta que essa tradição africana incorporada na igreja se estende para toda a comunidade, não ficando restrita apenas aos fiéis. “Aqui é uma casa de inclusão, e não de exclusão. A história do Rosário dos Pretos começa no porão da Igreja da Sé em 1604. Eles construíram esse templo e estamos aqui resistindo, não só resistindo, como mantendo essa cultura africana”, afirma Adonai.

Apesar de a missa de terça-feira ser bastante popular, Adonai ressalta que a missa principal é aos domingos, às 9h, em louvor a Nossa Senhora do Rosário. O prior acredita que a popularidade da missa de terça-feira ser maior é devido ao fato de que os fiéis estão vindo do trabalho e já têm a missa agendada na programação de volta para casa.

Durante a missa, os pães, ofertados antes do início da celebração, entram em cestas carregadas por membros da irmandade. Primeiro vêm as mulheres, depois os homens. As cestas passeiam por toda a igreja e são postas nas escadarias do altar, e lá ficam para então serem benzidas pelo padre até o fim da missa, que é quando todos podem pegar uma unidade e comer ou levar para casa.

Revolta dos Malês

Entre as outras tradições da igreja com comida estão o caruru para Santa Bárbara, em dezembro, e a feijoada para Santo Antônio de Categeró, em janeiro. Em outubro, em celebração a Nossa Senhora do Rosário, um escaldado de bacalhau é servido. Segundo Anália Santana, pedagoga com especialização em História Africana e Afro-brasileira, esse escaldado remete às tradições da época da Revolta dos Malês, em 1835, quando os negros que estavam no Rosário realizavam esse bacalhau com e sem toucinho branco para despistar as autoridades.

“Alguns irmãos mais velhos diziam para nós que foi feito o bacalhau com toucinho para mostrar para as autoridades, e outro sem toucinho para aqueles que eram da denominação malê. Embora a gente não tenha nenhuma fonte que afirme isso, temos a oralidade, a fonte das narrativas orais. Esse bacalhau já é servido há quase 100 anos, só não foi servido agora na pandemia por uma questão de saúde pública”, conta Anália, que há 20 anos frequenta a Igreja do Rosário e há 17 anos foi convidada para fazer parte da Irmandade.

Para além dessas tradições com alimentos, a igreja e a irmandade possuem também uma forte atividade com projetos sociais. Padre Lázaro destaca que a igreja nasceu já com esse propósito, de ajudar os negros e negras que eram colocados no Pelourinho, no tronco, e muitas vezes morriam ali. Ele frisa que trabalham especificamente na linha da promoção e da cultura dos negros e negras para que sejam mais empoderados.

Antes da pandemia, eram oferecidos cursos de informática, de auxiliar administrativo, dança, corte e costura, artesanato e outros. O primeiro-secretário da Irmandade Rosário dos Pretos, Willian Justo, conta que esses cursos eram oferecidos em parceria com o Senac.

O prior Adonai Passos Ribeiro ressalta que eles têm encontrado algumas dificuldades para retornar às atividades, como a falta de patrocínio e doações.

No entanto, atualmente, a irmandade se prepara para a aquisição de um imóvel, o de número 21, ali mesmo no Largo do Pelourinho, para ser o Centro Comunitário, Social e Cultural da Igreja do Rosário dos Pretos. O local está sendo pensado com o objetivo de ser um espaço e estrutura para acolher especialmente a população negra e ofertar cursos profissionalizantes.

Combate à intolerância

A irmandade possui também um assento no Conselho Municipal das Comunidades Negras (CMCN) e no Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado (CDCN). “A irmandade, ao longo da história, sempre combateu a intolerância religiosa e também a intolerância racial. Justamente, por conta disso, que a gente faz esses cursos para a população. É uma forma de inserir o negro no mercado de trabalho”, destaca o primeiro-secretário.

As apresentações culturais em celebração aos 123 anos de elevação a Venerável Ordem Terceira seguiram com uma apresentação das Ganhadeiras de Itapuã e do Grupo Ofá, no sábado, também nas dependências da igreja.

A programação continua nesta terça-feira (12), às 17h30, com uma apresentação da Orquestra Sinfônica da Bahia (Osba). No programa do concerto, há peças de Bach, Mozart, Elgar e Luiz Gonzaga. A Polícia Militar da Bahia retornará no dia 19, agora com o coral da instituição, acompanhados da cantora e instrumentista Priscila Rosa. No dia 26, uma outra apresentação musical está sendo planejada, ainda a ser divulgada.

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