Novas vozes no pagodão: a música baiana que rompe fronteiras | A TARDE
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Novas vozes no pagodão: a música baiana que rompe fronteiras

Publicado domingo, 21 de novembro de 2021 às 06:05 h | Autor: Bruna Castelo Branco
Guell Cadillac: cantando a própria realidade | Fotos: Rafael Martins | Ag. A TARDE
Guell Cadillac: cantando a própria realidade | Fotos: Rafael Martins | Ag. A TARDE -

Tertuliana Lustosa começou a carreira de cantora de pagode baiano vendendo brigadeiro na praia do Porto da Barra. Para chamar atenção entre os tantos vendedores ambulantes que trabalhavam por lá, Tertuliana, que hoje é vocalista da banda A Travestis, empresária e produtora musical, foi perdendo a vergonha de cantar.

“Eu tinha vergonha da minha voz. Quando estudei História da Arte na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), aprendi tudo sobre gravação, na época eu era DJ de funk carioca. Uma vez, decidi gravar uma música com a minha voz. Mas só perdi a vergonha mesmo quando comecei a vender brigadeiro cantando em Salvador”.

No final de 2019, a jovem piauiense montou a banda de pagode. A ideia, que era ser ouvida pelos paredões da cidade, deu certo: no carnaval de 2020, a voz de Tertuliana começava a se tornar conhecida na cena. Mas, aí, depois de um início promissor, veio aquela história que se repetiu pelo mundo: chegou a pandemia e tudo parou. A cantora, que já tinha trocado os brigadeiros pela carreira artística, viu a agenda vazia. E agora?

“Minha época em que tive mais sucesso nos paredões foi durante o carnaval de 2020. Logo depois, nós tivemos as medidas de isolamento e os shows caíram todos. E aí eu comecei a focar nas plataformas digitais. Comecei a fazer mais pagotrap (pagode + trap), trabalhar com outros ritmos. Antes da pandemia, eu só lançava pagodão, pensando mais nos paredões mesmo. Depois, busquei ir além, trazer um pouco de outros estilos”, relembra.

E ela foi além mesmo. Além de ter regravado a música Tímida a convite de Pabllo Vittar, a cantora lançou, em março deste ano, um single com Danny Bond, outra artista pop. Assim, explica ela, valorizado por artistas conhecidos nacionalmente, o pagodão baiano vai quebrando fronteiras.

“Geralmente, o público do pagode fica muito restrito a Salvador, ao Nordeste. Agora, depois de Salvador, São Paulo é a cidade que mais me escuta nas plataformas digitais. Por exemplo, com Me Gusta (produzida por RDD e Chibatinha, da banda Àttooxxá, e com participação de Nicki Minaj), Anitta internacionalizou o pagotrap. Com Tímida, que tem um estilo paredão, também internacionalizei esse estilo. Uma das poucas artistas brasileiras que conseguem alcançar um público internacional são Anitta e Pabllo Vittar, e eu regravei com Pabllo”.

Imagem ilustrativa da imagem Novas vozes no pagodão: a música baiana que rompe fronteiras
Tertuliana: regravação de Tímida, com Pabllo Vittar, e fusões sonoras

Música das ruas

Mas a fronteira geográfica não é a única que Tertuliana quer ajudar a quebrar. Em uma cena ainda dominada por homens – tanto artistas quanto público –, corpos diferentes ainda são atacados. 

“Para mim, é muito difícil porque eu passo por muitas situações de transfobia, você vê o que a gente passa. Lancei a música Tieta porque Tieta do Agreste (personagem de Jorge Amado) é rejeitada e expulsa por conta da sexualidade dela, e vejo que nós, LGBTs, também passamos por isso”.

E, com novas vozes, como aponta a cantora, também vai nascendo um novo público. Desde que começou, Tertuliana tem percebido que, cada vez mais, o público LGBTQIA+ tem “abraçado” o pagodão baiano. 

“Estou montando a minha agenda de shows com contratantes de pagodão baiano, LGBTs e pop também. Me tornei uma artista muito conhecida no universo LGBT, e esse público está conhecendo mais e se interessando pelo pagodão”.

Ontem, por exemplo, A Travestis estava em Aracaju se apresentando com a cantora Ludmilla. “Nessa mistura, vou sempre trazendo algo que é regional com algo nacional ou internacional”, diz a artista.

Como produtora e empresária, Tertuliana dá espaço para vozes ainda vistas como incomuns na cena. Uma delas é a de Kevin Brito, que começou na arrochadeira e migrou para o pagode. 

Faltava alguma coisa

De acordo com ele, havia uma sensação de que ainda faltava alguma coisa ali: uma voz masculina gay. Este ano, o cantor lançou Sequência de Raba, que foi parar na lista Viral Salvador, do Spotify, e por lá passou semanas. 

“Eu sentia falta de uma voz masculina LGBT no pagode. Já tínhamos algumas drags, algumas mulheres também conquistando um espaço, mas nunca vi uma voz masculina gay além de mim”.

E isso é certo. De acordo com o pesquisador Ledson Chagas, doutorando na Universidade Federal Fluminense e membro da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular, de 10 músicas de pagode baiano que ele escuta nas ruas atualmente, oito são de Robyssão, que passou quase 7 anos sem aparecer muito e continua sendo um dos principais nomes do gênero nos paredões da Bahia.

“Nos paredões, nessa cultura ‘informal’, Robyssão é um dos nomes mais importantes. Ele trouxe o pagofunk, com as letras de ‘putaria’. No mainstream, acho que o principal artista é Léo Santana, que consegue ir para o Faustão, Luciano Huck, Marcos Mion… e quando falo em mainstream, não é depreciando, não. O objetivo é o mainstream. Ninguém grava CD para tocar só em paredão, na mala do carro dos outros. A ideia é circular, tomar o mainstream, chegar lá”, considera o pesquisador.

Para ser legitimado no pagodão, como explica Ledson, o artista precisa ganhar as ruas – o que, diga-se de passagem, está longe de ser uma missão fácil e rápida. 

“O pagode não é uma música que surge para concretizar os anseios de grupos que se colocam como progressistas, não surgiu para isso, com esse objetivo. O pagode é uma música das ruas. A gente sabe que alguém conquistou um espaço quando sai e ouve tocando. Para os grupos minoritários, é uma questão de desafio. O que confirma algo como verdadeiramente pagode é estar nas ruas”.

Bruta por natureza

Guell Cadillac é uma das que decidiu encarar o desafio. Nascida em Retirolândia, no interior, cresceu ouvindo música de vaquejada. “Piseiro, sertanejo, forró, todos os ritmos interioranos”, aponta a cantora. E é disso que trata um dos singles dela, Bruta por natureza, que homenageia as mulheres da vaquejada e traz influências do brega funk e do pagode. 

Quando olha para a cena musical da Bahia, principalmente para os paredões, ainda vê um mercado homogêneo, quase que 100% dominado pelos rostos de sempre.

“A indústria musical, em geral, é dominada por homens. Agora, a gente está tendo voz para cantar nesses ambientes, e estamos levando essa vivência para o público LGBTQIA+. Se eles começarem a se enxergar ali, vão começar a consumir. Então, isso é muito bonito, muito interessante, pessoas LGBTs cantando as suas realidades. Fico muito feliz de ver mais pessoas LGBTs entrando nesse mercado”. 

E o trabalho para conquistar mais espaços segue – mês que vem, vai lançar uma parceria com um artista de Fortaleza. “Não posso falar muito sobre agora. A música está maravilhosa e tem tudo para hitar”.

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RDD, do Àttooxxá: no radar do exterior | Foto: Edvaldo Raw | Divulgação

Verão e paredão

Mas, afinal, por que dizer “pagodão” e não “pagode”? Existe diferença entre um e outro? Como explica RDD, produtor musical e membro da Àttooxxá, não.

 “Eu vou falar o que eu acho. Quando a gente começou a rodar muito, a galera lá de Sampa, do Rio de Janeiro, começou a linkar Àttooxxá ao axé. A gente falava que era pagode, mas eles diziam ‘não, pagode é o do Rio, de São Paulo’. E aí passei a falar de ‘pagodão’ para deslinkar. Aqui, a gente conhece o pagodão como pagode mesmo. Mas a ideia foi ajudar as pessoas a deslinkar do axé”.

Nesse verão, com o retorno das festas, Àttooxxá, que tem levado o pagode baiano para o resto do Brasil há alguns anos, está voltando aos palcos. Para RDD, que se lançou também na carreira solo de produtor durante a pandemia, conseguir reconhecimento nacional e internacional com o pagode leva tempo e muito, mas muito trabalho. 

“Quando comecei lá atrás, falaram que era maluquice, né. Mas a gente foi acreditando no nosso trabalho, sempre com todo o respeito a todo mundo que veio antes. A gente sempre acompanha, pesquisa mesmo. Com 11 anos trabalhando, a gente conseguiu ir chegando em outros lugares. A gente está no radar da galera de fora (do país) faz tempo. Faltava mais a galera daqui entender. Leva um tempo, né, a gente sabe que leva um tempo, é um trabalho difícil de digerir, tem muita informação. Agora, durante a pandemia, a gente (Àttooxxá) lançou música com Major Lazer. A gente vem trabalhando com muito respeito há alguns e colhendo os frutos agora”.

Porém, para quem está começando e pensa em trabalhar com pagode de paredão, a volta dos eventos também anunciou um fim: após uma festa paredão terminar com seis mortes e 18 feridos no bairro do Uruguai, em Salvador, o governador Rui Costa proibiu esse tipo de festa em todo o estado. Para acontecer, só com autorização das prefeituras e aviso prévio à Polícia Militar.

Dilema da cultura

Para Ledson Chagas, o problema da violência nos paredões não é no pagode em si – até porque não é só na Bahia que essas festas existem. 

“Esse tipo de festa acontece no Brasil inteiro, mas com outros nomes. É um dilema da cultura. A festa paredão é uma cultura, tem aspectos positivos e negativos, mas é preciso ser respeitado como cultura. O pagode baiano, antes de ser um gênero massivo, era um gênero de bairro, ‘informal’. Não ia para a rádio. Depois, foi crescendo, alcançando mais espaço. E aí, na Era Paredão voltou para o bairro, e com uma linguagem específica que é a que o paredão pede, que o público demanda, que é a ‘putaria’”.

Tertuliana, que entrou para a música em 2019 com o objetivo de ficar conhecida nos paredões, acredita que a simples proibição não seja a solução. 

Na mesma semana em que os eventos foram proibidos, por exemplo, 23 paredões clandestinos foram interrompidos pela PM.

 “Eu acho que a proibição dos paredões é mais uma vez o elitismo se manifestando. É uma cultura de favela, periférica. Eu fui criada nesses paredões de arrocha, reggae… e esses, muitas vezes, são os únicos eventos que chegam na periferia, que não recebe muitos investimentos. E isso não prejudica só as favelas. Quem é do interior, por exemplo, fica bloqueado sem esse tipo de evento. Na minha visão, desse jeito que aconteceu, a proibição colabora com o extermínio do lazer em alguns lugares. Às vezes, é tudo o que tem lá”.

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