MUITO
Novo filme de José Walter Lima estreia no dia 14
Visão da mente criativa do cineasta baiano José Walter Lima faz parte do longa Brazyl, uma ópera tragicrônica
Por Pedro Hijo
O demônio entra em cena. Não o personagem bíblico do anjo rebelde expulso do céu. Mas, um representante das ordens ditatoriais de países hegemônicos que se confunde com a figura religiosa. Em meio ao fogo, o diabo anuncia que a Terceira Guerra Mundial já começou e que será ainda mais bélica do que as disputas anteriores.
A visão da mente criativa do cineasta baiano José Walter Lima faz parte do longa "Brazyl, uma ópera tragicrônica", que entra em circuito nacional no dia 14 de novembro, com estreia em Salvador no Cinema do Museu, do Circuito Saladearte, no Corredor da Vitória, às 19h, com a presença do diretor, atores do elenco e equipe técnica. “É um filme transcendental”, diz Walter, que também é dramaturgo, diretor, artista plástico e produtor cultural.
O filme é a adaptação de uma peça criada por Walter, inspirada na efervescência artística do teatro da década de 1960. A pandemia do vírus Covid-19, no entanto, promoveu uma mudança de planos e impediu que a peça seguisse sendo apresentada. "O teatro é uma coisa que acaba em si mesmo, é muito efêmero, o cinema tem essa ideia de ter uma longa duração, então, resolvi adaptar a peça para um filme", conta o artista.
A produção do filme durou dois anos e acompanhou o fim da pandemia e do governo do presidente Jair Bolsonaro. A ascensão da extrema direita no Brasil foi um estímulo para o argumento da obra. "O longa é uma panorâmica desse país que é dominado pela injustiça social e por uma elite colonizada que não abre mão de nada", explica Walter.
Na produção, teatro e cinema se encontram, mas nada parecido com o que o cineasta dinamarquês Lars Von Trier propôs na adaptação de Dogville, em 2003. “Está mais para Carmen”, diz Walter, se referindo à produção de 1993, dirigida pelo espanhol Carlos Saura. Para o baiano, o filme é o primeiro passo para a retomada do cinema político, poético e filosófico.
O longa-metragem reflete sobre a realidade social e política ao acompanhar episódios importantes desde a década de 1930 até os dias atuais. A trajetória compreende a interrupção da democracia pela ditadura militar e o processo de redemocratização do país.
Nascido em Salvador e filho de um bancário e de uma dona de casa, o baiano teve interesse nas artes plásticas quando jovem. “A arte estava em mim”, diz. O cinema surgiu na vida de Walter após uma provocação do cineasta Glauber Rocha. Figura central no movimento do Cinema Novo, Glauber é reconhecido por uma renovação da linguagem cinematográfica brasileira. “Ele falou para mim que as artes plásticas eram burguesas e que o Cinema era a arte do futuro. Aquilo ficou na minha cabeça”.
Em 1965, Walter conheceu o cineasta sergipano José Umberto Dias enquanto participava do desenvolvimento do documentário O carroceiro, que registra o itinerário de um trabalhador durante o seu percurso diário. Umberto conta que a geração dos anos 1960 emerge da repressão histórica: "Éramos das ruas, dos becos, dos ciclos de estudos, das reuniões subterrâneas, da denúncia. Éramos uma geração em transe".
A opressão do Regime Militar estimulava a resistência artística dos dois. A primeira parceria de trabalho da dupla foi em 1975, quando Umberto atuou como assistente de direção em dois curtas dirigidos por José Walter: Smetak, o alquimista do som e Bahia, por exemplo. "Fizemos história com H maiúsculo", diz Umberto.
Provocação
A veia artística de Walter deu vasão a uma vertente como produtor de shows musicais na Bahia. Um dos momentos mais emblemáticos desta carreira foi a produção do encontro entre os cantores Gilberto Gil e Jimmy Cliff, em 1980, na Arena Fonte Nova, em Salvador. A bem-sucedida turnê passou por outras cidades como Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
Quando fala sobre os trabalhos em diversos setores artísticos, Walter se denomina como um “animador cultural”. Por trás das produções, conta o diretor, está sempre o desejo de formar novas gerações nas artes. “Eu acredito no sistema independente, porque quando trabalhamos, formamos um público consumidor também”, diz Walter, que também foi diretor do Festival Internacional de Cinema Oficina Futuro, em 2015.
Na ocasião, ele articulava a exibição de filmes com seminários críticos para discutir os rumos do audiovisual brasileiro. Foi neste festival que o jornalista e crítico baiano Claudio Leal trabalhou com o diretor e reafirmou uma amizade inspirada em “devaneios artísticos”. “Waltinho tem um fascínio por pensadores e gente mais maluca, pessoas capazes de subverter o pensamento convencional sobre o cinema e a sociedade”, diz o jornalista.
Segundo Claudio, Walter é vocacionado para as amizades. “Ele tem uma presença que não é só artística, mas também solidária, delicada”, conta. “Mas também gosta de atiçar polêmicas e expressa opiniões duras, já brigamos três vezes, mas sempre reatamos porque é impossível ficar brigado com ele”.
O novo filme dirigido por Walter é mais uma de suas provocações. Assim como canta Caetano Veloso, o dramaturgo aponta problemas na atual “ordem mundial” e vai além: propõe um despertar político. “Tem que ter uma nova ordem mundial, mas, enquanto o mundo for unipolar, não vai dar”, afirma. A descentralização de poder é prioritária para a renovação social proposta por Walter. “Ou acontece uma revolução planetária, ou não acontece revolução, porque estamos sempre dependendo de outro país”.
O desempenho do ex-presidente Donald Trump nas pesquisas eleitorais para a presidência dos Estados Unidos é um exemplo do crescimento de uma onda reacionária, segundo o dramaturgo. “Vivemos um momento difícil, é uma trama de direita horrorosa”, lamenta.
O cinema de Walter é uma conversa entre as críticas políticas e a experimentação, segundo o amigo Claudio. Para o jornalista, entre as cenas das obras do dramaturgo baiano é possível sentir a encruzilhada afetiva e estética de diretores italianos, franceses e brasileiros. “A opção de Waltinho é sempre pelo caminho mais árduo da experimentação”, diz Claudio.
Para Walter, Brazyl, uma ópera tragicrônica é um manifesto cinematográfico que desafia a complacência: “O brasileiro precisa desse chacoalhão político”.
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