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MUITO

"O argumento da falta de recursos é uma falácia"

Por Eron Rezende

22/05/2017 - 13:25 h
O juiz federal Dirley da Cunha é contrário a uma Assembleia Constituinte
O juiz federal Dirley da Cunha é contrário a uma Assembleia Constituinte -

A Constituição de 1988 entrou na mira de políticos e intelectuais. A Carta, resultado de um período em que se almejava por democracia após a ditadura militar, caducou e travou o país, justificam. No início de abril, juristas brasileiros assinaram um manifesto à nação pedindo a formação de uma Assembleia para rever inteiramente a Constituição. Para o pós-doutor em direito constitucional pela Universidade de Lisboa Dirley da Cunha, no entanto, a ideia deve ser vista com desconfiança. “Fala-se de uma nova Constituição como resposta à corrupção e à crise de representação, como se um apunhado rejuvenescido de leis tivesse a mágica de colocar na linha aqueles que não praticam as regras”, diz. “Mas uma coisa é a lei e outra coisa é a obediência a ela”. Ao longo de sua história, o Brasil passou por seis constituições, e a convocação de uma Assembleia para alterar a Carta em vigor não é ideia nova, mas ganha força com a Lava Jato atingido o pescoço de políticos de todos os matizes. Professor da Ufba e juiz federal, Dirley da Cunha já foi promotor de justiça (1992-1995) e procurador da República (1995-1999). Em sua sala, no Juizado Especial Federal, no Centro Administrativo da Bahia, recebeu a equipe de Muito para falar sobre a necessidade de se criar uma Assembleia Constituinte, a possibilidade de reforma no sistema político e o que caracteriza a Constituição brasileira.

Na opinião do senhor, o Brasil precisa mesmo de uma nova Constituição?

Jamais. Fico pasmado quando ouço alguém da área do direito dizer que o Brasil precisa de uma nova Constituição. Se essa declaração vem de um político, eu simplesmente ignoro – ele tem razões políticas. Mas quando vem de alguém que vivencia o direito, então isso me preocupa. Por que precisaríamos de uma nova Constituição? A nossa é uma das Constituições mais democráticas do mundo. É uma das mais avançadas em direção a uma sociedade tolerante, preocupada com a inclusão social. Claro, a Constituição que nós temos não é perfeita. Só que as imperfeições podem ser resolvidas com emendas constitucionais.

Temos, hoje, 101 emendas constitucionais. Não é muita coisa?

Sim, mas isso não é anormal. Não foge da normalidade, porque a nossa Constituição é muito analítica. É diferente, por exemplo, da Constituição dos Estados Unidos, que tem sete artigos e 27 emendas. A nossa Constituição, só na parte permanente (a Constituição brasileira é dividida em três partes: preâmbulo, parte permanente e ato das disposições transitórias), tem 250 artigos. E para cada artigo há minúcias. O problema é que muitas emendas constitucionais, no Brasil, são feitas para atender a demandas políticas momentâneas; feitas para atender a programas de governo e não ao cidadão. Só no tema da previdência, por exemplo, já temos cinco emendas. E se a proposta de emenda constitucional (PEC) bancada pelo governo Temer passar, serão seis emendas. A PEC do teto dos gastos (que fixa por até 20 anos um limite para as despesas públicas) é um outro exemplo, e vem para atender exclusivamente a um projeto de governo que está no poder. Esse governo que está aí, após a queda da presidente Dilma Rousseff, tem um perfil claramente neoliberalista. Então, o governo quis alterar a Constituição em face de um projeto político. A PEC dos gastos limita as despesas primárias. E o que são essas despesas? As principais despesas para atender às necessidades do cidadão nas áreas sociais. Qual é a intenção? Reduzir a participação do Estado no âmbito das políticas públicas de caráter social. Portanto, das 101 emendas constitucionais, muitas foram necessárias, visando ao aprimoramento da Constituição, mas outras tantas visaram atender exclusivamente a plataformas políticas.

Devemos caminhar então em direção a uma reforma política?

Nós precisamos de uma reforma, mas o momento político atual não é o melhor terreno para ela acontecer. Defendo a substituição do sistema eleitoral proporcional pelo distrital. O sistema distrital (no qual os cargos para o Legislativo seriam ocupados por candidatos com as maiores votações, como numa eleição para presidente) é o que melhor se comunica com a ideia de representatividade. O que representa mais a sociedade: um candidato com 200 votos ou um candidato com 200 mil votos?

O sistema distrital não facilitaria a eleição de políticos com mais dinheiro e visibilidade?

Se fosse aplicado hoje, sim. Por isso é preciso estabelecer um diálogo do sistema eleitoral com o sistema de financiamento de campanha, senão não adianta. O importante é que uma reforma política é possível de ser realizada através de uma assembleia específica, dedicada a discutir o tema. Isso pode ser feito por emenda constitucional. Nós não precisamos de uma nova Constituição para isso. Quem estuda direito constitucional sabe muito bem que não se pode trocar uma Constituição por ocasião, como se estivesse trocando uma camisa. Não é assim. A Constituição é aquilo que temos de mais sagrado – ela mantém o equilíbrio democrático do país. Trocar uma Constituição exige um fato historicamente grave.

No capítulo dos direitos sociais, há uma percepção de que a Constituição foi muito ampla, sem os recursos necessários para viabilizá-los, e que isso estaria na raiz da atual crise fiscal do país. Como o senhor vê essa questão?

O argumento da falta de recursos, no Brasil, é uma falácia. Se você me perguntar se essa questão existe na Etiópia, por exemplo, eu digo a você que sim. Mas, no Brasil, não. Nós estamos entre as maiores economias do planeta. Nós temos riquezas, temos dinheiro... É comum ouvir que a Constituição brasileira tornou a governabilidade muito difícil, por que ela estabelece direitos sociais que exigem políticas públicas onerosas. Mas esse argumento lastreado no fundamento financeiro não se sustenta diante da nossa realidade econômica. Nós temos problemas de investimento, de má distribuição de renda, de corrupção. Temos uma crise econômica. Isso não significa dizer que o Brasil esteja economicamente quebrado. As nossas reservas financeiras são altíssimas. Dizer que o Estado não tem recursos para implementar o que está na Constituição não é verdade. O Estado não implementa porque não é a prioridade do Estado.

Temos direito à saúde e à educação, mas não temos saúde nem educação. Como resolver esse impasse constitucional?

Falta o que eu chamo de vontade constitucional. Vontade de realizar o discurso constitucional, sobretudo no tema dos direitos sociais. Não é, sem razão, que se fala muito em judicialização da saúde e da educação. Na Justiça Federal, quase todos os dias nós julgamos ações de cidadãos que procuram o SUS, que não acham um medicamento, e vêm bater às portas da Justiça. O cidadão toma essa medida porque não há política séria para o SUS. Ele tem o direito à saúde e esse direito envolve o direito ao fornecimento de medicamento. A resposta do Estado corresponde a uma omissão constitucional. E, neste caso, estamos falando de um cidadão com nível de informação, pois aquele que não possui informação acaba recuando e não exercendo a sua cidadania. Uma vez provocado, o Judiciário precisa fazer valer a Constituição. E se o Estado diz que não tem dinheiro para bancar o remédio, o juiz pode, via liminar, solicitar o bloqueio da verba necessária para que esse medicamento finalmente possa ser comprado. Mas a judicialização da saúde ou da educação é péssima: revela que os órgãos políticos não estão funcionando.

Segundo estudo do projeto Comparative Constitutions (mantido pelas universidades de Chicago, Texas e Londres), nossa Constituição está em 10º lugar no ranking das que têm maior número de palavras. Essa verborragia explica o fato de que cada juiz brasileiro parece ter uma sentença na cabeça?

A nossa Constituição prevê a independência de cada juiz e os recursos das sentenças proferidas por cada juiz. Quando a gente fala na independência de cada juiz não significa que cada juiz deva julgar de acordo com a sua consciência. Existem parâmetros e eles vêm da Constituição e da legislação infraconstitucional (normas e leis que estão hierarquicamente abaixo da Constituição Federal). O juiz precisa fundamentar o seu julgamento. O direito não vem da consciência individual. O juiz tem independência, mas ele também tem que utilizar toda a argumentação jurídica. Além disso, os recursos servem para dar uma uniformidade a interpretação. Por exemplo, digamos que a Bahia tenha 60 juízes federais, cada um pensando de forma diferente. Pode haver 60 sentenças diferentes, só que todas elas vão gerar recursos que vão para um tribunal – e esse tribunal vai ter a oportunidade de uniformizar a interpretação sobre o tema que ensejou 60 sentenças diferentes. Se os tribunais divergirem, há o Superior Tribunal de Justiça, que é o órgão do Poder Judiciário que assegura efetivamente a uniformidade à interpretação da legislação federal. E, após isso, há o Supremo Tribunal Federal.

Comparada a de outros países, o que caracteriza a nossa Constituição?

Primeiro, a gente precisa esquecer o modelo dos EUA, que é um país liberal. Aquele célebre discurso de Kennedy – “não pergunte o que seu país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer por seu país” – é bem claro do modelo liberal. No Brasil, o modelo social, ainda que estejam tentando destruir, é diferente. Aqui, o Estado tem que provir as necessidades dos que precisam. Isso fundamenta a nossa nação. A lógica que norteia os EUA não é essa. Veja o caso do Obamacare. A maior vitória que o ex-presidente teve foi uma política social voltada para área de saúde. Até então era tudo plano privado. O modelo brasileiro deve ser comparado ao modelo de países que também adotam um Estado social, como Portugal, Alemanha, Espanha e Itália. Se compararmos a nossa Constituição com a desses países, a gente vai ver que a nossa é muito mais avançada.

Em que sentido?

No âmbito dos direitos sociais. A Constituição da Alemanha, que é de 1949, não prevê previdência e assistência. Isso não significa que não exista previdência. A Alemanha é declaradamente um Estado social, e está lá, no artigo 20 da Constituição deles, que o país deve amparar as pessoas. A nossa trata mais de benefícios para o cidadão do que as desses países.

Quais os riscos envolvidos na proposta de uma Assembleia Constituinte?

Não há, hoje, razão historicamente firmada para se convocar uma Assembleia Constituinte. A mudança da Constituição, neste momento, só tem um objetivo: reduzir direitos, garantias e transformar o Estado democrático de direito em um Estado mínimo, um Estado ‘guarda noturno’ – que só contempla, sem interferir. Uma nova Constituição para o Brasil pode resultar num retrocesso de mais de um século, principalmente via um Congresso que está até o pescoço envolvido em operações policiais. Como mudar uma Constituição que sequer foi colocada integralmente em prática? Uma constituição como a nossa, que ampara liberdades e direitos. Ela não está ultrapassada. Ela precisa ser colocada em prática.

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