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ABRE ASPAS

"O Axé Opô Afonjá é tanto um lugar de culto como um lugar culto"

Membro da Academia de Letras da Bahia, Muniz Sodré é o primeiro obá confirmado pela yalorixá Stella de Oxóssi

Por Marcos Dias

06/08/2023 - 10:00 h
Autor de livros como "Pensar nagô" falou sobre o título honorífico  de Obá de Xangô
Autor de livros como "Pensar nagô" falou sobre o título honorífico de Obá de Xangô -

Um dia desses, o professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia de Letras da Bahia, Muniz Sodré (nascido em Feira de Santana, em 1942), esteve na Feira das Yabás, em Madureira, no Rio de Janeiro, junto com um músico, para falar sobre samba. E a primeira coisa que disse foi que não era sambista, que tem um livro sobre samba [Samba, o dono do corpo ], mas iria falar sobre samba na visão de um obá do Ilê Axé Opô Afonjá.

"Foi para esclarecer que a visão tem partido, e meu partido não é politico, nunca fui de nenhum partido político, sou de esquerda mas nunca fui de nenhum partido político, eu sou mesmo do Axé Opô Afonjá", diz ele, que tem o título de Obá Aressá no Corpo dos Obás de Xangô do terreiro, e vai estar no próximo dia 10, ao lado de Ordep Serra, na Festa Literária Internacional do Pelourinho (Flipelô), às 19h, no Teatro Sesc-Senac, na mesa Mãe Stella: o feminino como potência.

Ele tem muito a dizer, afinal, foi o primeiro obá confirmado pela yalorixá Stella de Oxóssi, a homenageada nesta edição do evento. Nesta entrevista, o autor de livros como Pensar nagô, Claros e escuros, Reiventando a educação e o mais recente, A sociedade incivil: mídia, liberalismo e finanças, entre quase 40 títulos, incluindo os de ficção Bola da vez e a Lei do Santo, fala sua participação no evento, o que representa o título honorífico de Obá de Xangô – que já teve entre seus nomes personalidades como Dorival Caymmi, Vivaldo da Costa Lima, Carybé e Jorge Amado, entre outros – e também sobre literatura, ciências sociais e a experiência de ter tido covid e passado 48 dias internado.

Mãe Stella de Oxóssi vem de uma linhagem de yalorixás notáveis, que inclui Mãe Aninha e Mãe Senhora. O que mais marca a trajetória da sacerdotisa que ficou 41 anos à frente do terreiro e também era escritora?

Acho que Stella era uma intelectual orgânica do povo de santo. E ela deu continuidade, na verdade, a uma tradição dos terreiros keto-nagô. Aninha, que era a figura matricial fundadora do Axé Opô Afonjá, era uma intelectual também. Aninha era uma yalorixá de grande prestígio, numa época mais difícil que a que Stella pegou, que eram os anos 1930 na Bahia. Os candomblés eram perseguidos pela polícia, precisavam de permissão da polícia para tocar.

Aninha participou com uma comunicação no 2º Congresso Afro-brasileiro em Salvador, falava muitíssimo bem inglês, foi educada em escola anglicana na Nigéria, e falava muito bem também, claro, yourubá. E era uma mulher de posses, tinha duas casas de comércio da Ladeira da Praça, fazia comércio com a costa da África e tinha uma posição muito forte na Irmandade de Boa Morte, tanto em Cachoeira quanto aqui no Rio de Janeiro. Ela vivia entre o Rio e a Bahia. Então, Aninha acolheu no terreiro figuras intelectuais da Bahia e do Rio, inclusive durante a ditadura, durante o Estado Novo, como Édison Carneiro e outros.

Depois, Mãe Senhora fez a mesma coisa. Há um fio cultural para fora forte no Axé Opô Afonjá, ou seja, sempre foi uma casa, uma comunidade, voltada para um certo ambiente intelectual. Os intelectuais sempre foram ligados a essa casa, basta citar o episódio quando Jean-Paul Sartre esteve na Bahia ele passou o dia inteiro no terreiro. Não conversou muito com intelectuais aí, ele foi levado por Jorge Amado, ficou no terreiro com Mãe Senhora e depois declarou que a coisa mais extraordinária que ele viu no Brasil foi o Ilê Axé Opô Afonjá e a conversa com Mãe Senhora. Stella, que era enfermeira de profissão, uma mulher de boa escrita, culta, entrou nessa linha.

Mas há algo que a distingue das demais, para o senhor?

Ela, diferentemente das outras, publicou livros, e os livros são valiosos, livros, eu diria, de pensamento também, não só livros que se refiram a aspectos exteriores da liturgia nagô, são provérbios, principalmente, reflexões sobre as folhas, e Stella fez uma coisa logo que chegou que fez uma marca que vou destacar na minha fala em Salvador: essa marcação divisória entre santos e orixás, porque a tolerância do candomblé aí na Bahia por parte da igreja e da burguesia baiana sempre se deveu ao fato de que se dizia que os orixás, as divindades negras, tinham uma correspondência entre os santos da Igreja Católica, portanto, esse sincretismo sempre foi muito louvável, e era, na verdade, uma garantia de existência dos orixás. E Stella fez um corte nisso: pode sincretizar quem quiser, mas não são sincréticos, os orixás têm estatutos litúrgicos diferentes, próprios.

Claro, na festa do Senhor do Bonfim, Oxalá é Senhor do Bonfim, isso é bem baiano, isso é gentil, ninguém quer mexer nisso, mas liturgicamente não é, Senhor do Bonfim não é Oxalá. São as analogias entre a altura da colina e Oxalá que permitem fazer essa comparação, mas têm estatutos, digamos assim, filosóficos, diferentes. E Stella fez esse corte. Inclusive pessoas do candomblé não aceitaram, porque não entenderam que isso era um gesto ao mesmo tempo litúrgico e político. Não é nenhuma teologia, é mais um gesto politico, que diz: isso aqui tem uma autonomia de pensamento, uma autonomia litúrgica, isso portanto é um gesto de uma intelectual orgânica do povo de santo. A partir daí, publicou livros, foi a primeira mulher de terreiro e mulher negra a entrar na Academia de Letras da Bahia, na cadeira 33.

Quando ela morreu, fui eleito para a Academia de Letras da Bahia, aliás, sem ter pedido a ninguém, eu fui convidado a me candidatar, me candidatei, fui eleito por unanimidade por um pleito tanto da academia quanto do terreiro, por minha relação com o terreiro como Obá, o primeiro Obá de Stella, como amigo de Stella também, embora morando aqui no Rio. Acho que Stella confirmou o lugar do Axé Opô Afonjá como um lugar de culto, de crença, mas também um lugar culto na cidade baiana, na pólis baiana. Acho que o Axé Opô Afonjá é tanto um lugar de culto como um lugar culto, e esse lugar culto, as mães de santo ilustres confirmam, Aninha, Mãe Senhora e Stella de Oxóssi.

O senhor tem o título de Obá Aressá no corpo de Obás de Xangô no Axé Opô Afonjá. O que isso representa para o senhor?

Eu sou o primeiro obá confirmado por Mãe Stella, em 1977, logo que ela assumiu a liturgia do Ilê Axé Opô Afonjá. Para mim, foi uma honra muito grande porque eu já morava no Rio. Foi uma questão mesmo de jogo de búzios, eu a conhecia indiretamente e fui confirmado obá. Entrei no terreiro de costas, de braço dado com Caymmi, que era obá também. Acho que é o titulo que mais me dá orgulho, que me dá alegria, mais do que os títulos acadêmicos.

Qual a função de um Obá de Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá?

Aninha e o babalaô Martiniano criaram os Obás de Xangô no Opô Afonjá. É uma recriação de uma instituição do reinado de Oyó. Eu sucedi a Camafeu de Oxóssi. A função do obá é que ele é um sujeito que tem um pé dentro e um pé fora do terreiro. A função é representar o terreiro, ajudar a governança da mãe de santo e isso os obás fazem efetivamente. Mesmo estando no Rio, participo de reuniões online e conferências, e participo das festas, como todos os obás participam, auxiliando, de várias maneiras. O obá é um corpo representativo para fora do axé, eu diria que é um corpo diplomático do Axé Opô Afonjá. A função do obá é falar para fora do terreiro e eu tenho feito isso a vida toda, não escondo meu pertencimento, boto com os meus títulos em qualquer lugar que vou, faço questão de dizer: Obá de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá. E, às vezes, eu falo: para falar do terreiro eu vou falar agora como Obá. É uma fala de dentro. Então, é isso, é ter um discurso mais ou menos coerente sobre o candomblé e, se precisar, defender também. Cada obá tem o nome de uma família tradicional da Nigéria.

Sua comunicação vai acontecer numa feira literária, e além de acadêmico e pensador renomado com vários livros publicados, o senhor também é ficcionista. Qual o maior desejo da sua ficção?

Tenho seis livros de ficção, um deles inclusive, O bicho que chegou a feira, feira é Feira de Santana, foi até quadrinizado e publicado na Bahia por uma equipe de Feira e ficou muito bonito. Jornalista por muito tempo, a literatura é uma paixão, é mais uma diversão, eu não tenho nenhuma pretensão de ser grande ficcionista, é uma paixão minha. A maioria dos meus livros, eu tenho quase 40 livros, são livros acadêmicos, e é um outro tipo de torção na cabeça, ouro tipo de nó que você dá na cabeça, fazer livros acadêmicos, livro de antropologia, filosofia. A ficção, para mim, é um entretenimento, é um prazer, mas eu não tenho feito nada de ficção. Sou colunista da Folha de S. Paulo e isso tem me tomado tempo, toda semana tenho que descobrir um assunto porque é no domingo, na página dos editoriais, já tem dois anos. Você me lembrou agora que sou ficcionista, já tinha esquecido.

Mas pensa que há relações entre sua produção acadêmica e a sua literatura?

Há. Eu acho que há porque o pensamento social, as ciências sociais, são um meio de contar histórias sobre a sociedade, só que são histórias ancoradas em fatos. O jornalismo é também uma narração de histórias, histórias ancoradas em fatos, mas são histórias sumárias e marcadas pelo cotidiano. Mas cada notícia, por mais que seja notícia, você vê ali uma estrutura narrativa, vê elementos de um romance ou de um conto numa notícia mais elementar. Então, com relação à sociologia e antropologia, também acho que você tem ali uma historialização da sociedade, só que uma historialização reflexiva, e eu, como baiano, gosto de ouvir e contar histórias.

O senhor teve covid, foi internado e intubado. Passada a experiência, algo mudou na sua compreensão da vida?

Na verdade, para quem é de terreiro, não. Quem é de terreiro sabe que vai morrer. Todo mundo sabe que vai morrer. A aceitação da morte é uma coisa difícil, ninguém quer morrer. E eu estive ali, digamos, à beira da morte, fui intubado duas vezes, e no início da covid não sabiam direito o que fazer, os médicos não sabiam. Eu não fui curado por remédio nenhum específico, porque não tinha remédio, a vacina veio depois, eu fui curado no hospital por cuidados médicos que ali me intubaram, eu pude respirar, mas não era propriamente alopatia.

Eu pude respirar e o corpo se curou. Passei 48 dias no hospital, o próprio corpo me curou, mas me curou também o que eu chamo a comunidade, o “comum”, porque é, para mim, uma surpresa, que em vários lugares do país formaram grupos que às 6 horas pediam por minha vida e estavam no terreiro do Opô Afonjá, estavam no Ilê Asipá, na Pituba, estavam com alunos meus, gente que eu não conheço em terreiros na Paraíba, em Alagoas, em São Paulo, foi impressionante. A comunidade é aquele lugar que assiste você nascer, também assiste você morrer, mas também é aquele lugar que lhe dá vida. A vida é uma doação que a comunidade lhe faz, então, essa lição eu aprendi, que a vida é doação para os outros, ela é biológica, mas ela também é uma doação afetiva do mundo a você. Saí com essa convicção.

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